40 anos do Zero sob sete olhares
Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC completa quatro décadas e voltará à redação presencial no primeiro semestre de 2022
Por Amanda Saori, Isabella Machado e Luana Moreno
Após dois anos (2020 e 2021) de um hiato pandêmico, o Zero poderá voltar a imprimir suas páginas e colocá-las em circulação com a volta do regime presencial na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mesmo ano em que completa seus 40 anos de existência.
De lá para cá, já foi disciplina optativa e obrigatória e passou por diversas coordenações que davam seu estilo ao jornal-laboratório. Houve edições temáticas, pautas premiadas e reconhecimento da comunidade universitária e florianopolitana.
O projeto, que é oferecido na sexta fase, costuma ser alvo de desejo dos alunos assim que ingressam no curso de Jornalismo da UFSC, pois funciona realmente como uma redação, com todos os seus “perrengues” e suas delícias.
Sempre funcionou como um jornal impresso e, por razão da pandemia da Covid-19, em respeito às recomendações de distanciamento social, a redação do Zero foi integralmente adaptada para o formato digital nas últimas edições. As redes sociais e o Medium se tornaram a casa do jornal-laboratório feito inteiramente de maneira remota, com entrevistas e apurações online.
A primeira edição do jornal Zero foi publicada em 1982 e deixou de circular apenas por um curto período de três anos, entre 1984 e 1985. Desde então, 40 anos depois, mais de 200 edições foram produzidas e por volta de um milhão exemplares foram impressos e distribuídos pelos campi da UFSC, Grande Florianópolis e por Correios Brasil afora.
Durante sua história, o Zero passou por diversas mudanças. Novas identidades visuais marcaram as edições físicas, os mais diferentes eventos foram cobertos pelos estudantes e estampados nas capas e o próprio formato acadêmico foi se alterando com o passar dos anos.
Independentemente do momento histórico ou da obrigatoriedade ou não do jornal-laboratório na grade curricular, é inegável dizer que os estudantes marcaram e foram marcados pelo Zero. Reportagens premiadas foram manchete das edições, além dele ter tido reconhecimento acadêmico pelo projeto gráfico e também pelas ilustrações.
Foi fechando as edições do Zero que os estudantes de Jornalismo da UFSC viravam noites entre cigarros e bebidas — época em que não era proibido seu consumo no ambiente institucional –, dentre eles os notáveis chargistas Zé Dassilva e Frank Maia. Também de lá saíram jornalistas de projeção regional e nacional, como Upiara Boschi, repórter de política, e Vitor Hugo Brandalise, premiado jornalista e atualmente coordenador de projetos na Rádio Novelo.
O jornal sempre se destacou pelo seu foco na comunidade da Grande Florianópolis. Suas páginas são sempre coloridas pela história local, reconhecendo aqueles que nem sempre estão na mídia tradicional. O Zero é um espaço de acolhimento, aprendizado e transformação. Pelo menos é o que sete ex-alunos que passaram pelo laboratório sentem e compartilham apesar da diferença de épocas.
Foram tantas denúncias e histórias contadas e exploradas pelo jornal que, até hoje, é difícil achar um tema sobre o qual os estudantes não tenham escrito. No Zero, as palavras e os alunos se juntam em uma experiência única para fornecer informação de ótima qualidade de apuração.
Zero como disciplina obrigatória
Nas décadas de 1980 e 1990, o Zero era uma disciplina optativa, a qual os alunos podiam cursar por até dois semestres, exercendo diferentes funções. POdiam atuar em texto, fotografia, edição e até como chargista, papel que Fred Carvalho, quando aluno, desempenhou.
Depois a disciplina passou a ser obrigatória e novamente optativa. Contudo, não existem registros desses períodos para se ter precisão de datas, uma vez que os documentos curriculares não eram sistematizados como acontece na atualidade.
O professor Ildo Francisco Golfetto, atual coordenador do Zero, juntamente com a professora Valentina da Silva Nunes, conta que, na época em que era estudante do curso de Jornalismo da UFSC, tomava conhecimento das disciplinas obrigatórias do semestre só na hora de fazer a matrícula.
Isso definitivamente mudou quando, em 2016, houve uma reforma nacional dos currículos de Comunicação no Brasil, e, com a adequação do Jornalismo UFSC a essa norma, o Zero se tornou de vez uma disciplina obrigatória.
Em 2020, com toda a universidade em regime de ensino remoto emergencial, por conta da pandemia da Covid-19, foi a vez de se intensificar na prática do Zero a interdisciplinaridade que já vinha sendo experimentada, somando os conhecimentos do jornalismo impresso (apuração, redação, edição, diagramação e fotojornalismo) aos conhecimentos do jornalismo online e das produções de vídeo e áudio.
Com esse formato, durante os dois anos mais intensos da pandemia, o Zero circulou apenas digitalmente. Ainda em 2018, o 10.o Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão teve como tema central a exploração sexual infantil e a pauta que levou o prêmio foi “Arquivos do silêncio”, publicado pelo jornal Zero e produzida pelas alunas do Jornalismo UFSC, Manoela Bonaldo, Carol Maingué e Eduarda Pereira.
A reportagem ganhou a capa da edição impressa, e dava destaque ao problema da falta de dados oficiais registrando casos de exploração sexual: cada órgão apontava um número diferente, os quais, no final, não condizem.
O tema da exploração sexual infantil é bastante delicado, ainda mais para a apuração jornalística. As alunas relatam que, por conta dessa condição, já sabiam, desde o início, que não poderiam entrevistar crianças, então o caminho foi procurar mulheres adultas que tivessem sofrido esse tipo de exploração durante a infância.
Manoela fala que Florianópolis é uma cidade muito ambígua, paraíso turístico que vende uma imagem de alto padrão de vida, ao mesmo tempo que, às escuras, acontece muita prostituição.
Para a apuração da matéria, as estudantes foram à casas de prostituição, por meio de uma conhecida delas que já fora trabalhadora sexual. Eduarda contou que a intermediária recomendou que fossem no final de semana à tarde, pois “é um dia em que homens vão muito às casas de prostituição, porque é muito fácil eles enganarem a esposa ou companheira. Dizer, por exemplo, que vão jogar um futebol”.
Manoela relata que na visita a esse espaço foi assediada, um “cliente” que estava lá queria usá-la e chegou a passar a mão em sua bunda mesmo após ouvir não, mais de uma vez. A apuração começou com histórias de mulheres, pois era difícil encontrar uma personagem, já que os casos de exploração sexual costumam ser ocultados.
No fim, o destaque da pauta foi o descompasso entre o número de denúncias no Ministério Público de Florianópolis e o de investigações, que eram diferentes. Florianópolis não tem um único sistema de registro, além de não diferenciar os casos de abuso sexual e de exploração.
Manoela diz que essa virada na pauta é jornalismo. “Se fizermos um trabalho que sai igual à pauta, para mim é muito estranho, porque é como se eu já soubesse a resposta que estou buscando.”
Os tempos de ouro do Zero
Enquanto o texto era o foco dos estudantes do Zero mais recente, entre 1980 e 2000 os tempos eram outros. Na época, participar da equipe era uma escolha a ser feita todos os dias pelos estudantes. Upiara Boschi, aluno do curso entre 1999 e 2003, conta que escolheu muitas vezes estar ali, algumas mesmo depois de aprovado na disciplina.
“Sempre entendi que o jornal-laboratório era um lugar para estar. Era até engraçado. O Barreto [professor supervisor da época] colocava no expediente “Editores Seniores”, que eram esses alunos que ficavam por ali, que tavam sempre ali e que não precisam estar.”
Ele explica que o ambiente era propício para essa atmosfera de construção coletiva, todos os caminhos levavam à redação do Zero.
“O jeito como o curso era montado, ele levava a gente para lá. Era um espaço de convivência. Onde é que eu tô se eu não tô na aula, não tô no projeto? Tô no Zero! A sala do Zero era um lugar para estar. Quem estava ali, ajudava a fazer.” Para Upiara, o aprendizado foi tão valioso que queria que fizesse parte do currículo de todos os colegas. “Sempre defendi que deveria ser uma disciplina obrigatória mais para o final do curso, que é justamente quando as matérias são mais teóricas e não tem mais tantas matérias de laboratório.”
Hoje repórter político, ele lembra do ano de 2002 como um forte marco. “No ano em que o PT ganhou a eleição, a gente fez um Zero muito especial sobre a vitória do Lula. Foi um dos Zeros que eu participei mais ativamente, foi a minha primeira grande experiência com jornalismo político dentro do curso.”
Entre muitas lembranças, ressalta a importância do jornal para a comunidade florianopolitana. “A gente pensava muito na questão local. Teve um Zero que foi maravilhoso, sobre a implantação do sistema de transporte integrado em Florianópolis. Antecipamos essa pauta em um ano, no ano seguinte que estourou tudo, mas a gente conseguiu falar com a prefeitura e antecipar o quanto isso ia dar problema, e deu. Foi um Zero muito bom, muito útil.”
Além das reportagens, afirma que o que ficou na saudade foram as noites de fechamento do jornal. “Era folclórico! Os alunos que vieram antes de mim vão contar histórias mais escabrosas que as minhas, mas, na época, quem não participasse das madrugadas de fechamento do Zero, tava errado.”
O gosto pelo clima de fechamento do jornal Zero é um fator em comum entre muitos alunos que passaram pela redação. Zé Dassilva, premiado chargista formado em Jornalismo pela UFSC em 1994, relembra que “na véspera da festa de formatura estava fechando o Zero, só faltava pegar o canudo”.
A história do cartunista não começou no jornal. Desenhava desde pequeno, rabiscava personagens nos versos dos cartões do jogo do bicho vendidos por seu pai. Já na faculdade, iniciada ao acaso, fez ilustrações para a Agência de Comunicação da UFSC (Agecom) e foi com esse trabalho que o professor Ricardo Barreto o chamou para participar também do jornal-laboratório. Desde então atuou como repórter e ilustrador das páginas do Zero.
Mesmo tantos anos depois, Dassilva relembra sorrindo do “clima de redação” que o espaço tinha. Queria entrar na equipe a partir do momento em que se viu como calouro em 1991. Acontece que o Zero era sinônimo de dar uma chance para a própria produção, “uma vitrine do seu trabalho”.
Frank Maia, renomado chargista formado em 1994, ressalta que “é muito gostoso você abrir o jornal e olhar o seu nome no expediente. Fica registrado para sempre. Quando um cara for enrolar um peixe, ele vai ver seu nome lá. Eu já comprei peixe com a minha charge enrolada”.
Sempre com um sorriso no rosto, o ex-aluno compartilha as histórias vividas dos tempos de faculdade. Foi pelo curso que ele viu um computador que escaneava pela primeira vez — “fiquei impressionado”.
Suas lembranças sobre o tempo de Zero mesclam-se com as memórias de Zé, principalmente com relação ao ambiente de redação. “A gente ficava até cinco ou seis da manhã fechando o jornal e saia uma baita edição”, relembra Frank citando a atuação do professor Luis Scotto, um dos editores-chefes, na hora de lapidar as produções textuais dos colegas.
A possibilidade de passar por diferentes áreas — fotografia, ilustração, diagramação e redação –, acrescentava muito na formação dos estudantes que faziam o Zero. Para Frank, isso se refletiu na possibilidade de passar até pelos “processos artesanais” de colagem do jornal. “A gente mais do que exercitar, nós aprendemos os ideais e valores, o que é apuração, o que é informação”, reforça Zé.
Assim como Zé Dassilva e Frank Maia, Fred Carvalho também dedicou parte do seu tempo ao Zero para criar charges e ilustrações. Hoje empresário do ramo de Design, conta que participou do projeto entre 1998 e 1999, mas não consegue precisar o ano — “minha memória é ruim”.
Até hoje, ele se lembra de chegar no curso e ouvir os veteranos falando do Zero e da “magia do Zero”. Acontece que o jornal tinha “uma aura em torno dele”, confessa Fred, e a emoção era tanta que até fila para entrar como voluntário tinha porque era uma “válvula de escape” para os estudantes.
Sobre sua experiência, seu único arrependimento é não ter escrito para o jornal. “O Zero é um espaço que os alunos têm para produzir que eu não enxergo em outro ambiente profissional. Os alunos têm uma liberdade fantástica de criar, de fazer, de propor a pauta e trabalhar em cima dela, tem tempo, o que é raro hoje.
Eu me arrependo amargamente de não ter escrito para o Zero, porque eu tenho Zeros guardados, tenho vários em casa e quando eu olho penso “poxa, poderia ter um texto lá que eu ia olhar e dizer, ‘que bacana!’”.
O ex-aluno relembra dos desafios que os estudantes tinham para deixar a reportagem com as suas individualidades. “Cada um defendia seu pedacinho”, diz referindo-se ao processo de edição que na época era realizado pelo professor Scotto. No final, “o Zero é uma provinha a cada edição”, mesmo entre erros e acertos.
Essa não seria a última passagem dele no Zero. Após a formatura, em 2002, retornou à UFSC duas vezes como professor substituto, em ambas foi responsável pelo jornal-laboratório. Para os alunos, recomenda que aproveitem ao máximo a experiência, “sou o maior incentivador! Eu fico pregando o Zero em sala de aula e pelos corredores, porque é o melhor produto que vocês têm para fazer algo diferente, experimentar, ver como é”.
A paixão e memória que Fred sente pelo jornal transpassa os meios digitais. Como só foi perceber a importância do Zero depois de já estar no mercado de trabalho, ele tenta repassar essa visão para os alunos que passam pelo seu caminho. Para ele, o jornal é um “pacote perfeito: você incentiva o aluno a pensar”, “faz a sua paixão acontecer” num formato e espaço que não existe em outros jornais.
O sonho de Fred é poder voltar ao curso de Jornalismo da UFSC, dessa vez no cargo de professor efetivo. Acontece que não conhece “um curso de Jornalismo tão bacana igual ao da UFSC” e o jornal Zero faz parte dessa diferença de currículo e oportunidades de experimentação que tornam a formação pela UFSC tão única.