A peneira do futebol

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Das milhares de crianças que sonham em ser jogadores profissionais, 1,5% chegam lá

Texto por Dominique Cabral e Maria Eduarda Dalponte

“Um dia eu tava na escola e a professora pediu pra mim fazer o desenho do que eu sentia saudade. Desenhei meus pais e amigos e comecei a chorar, eu tava com muita saudade de casa. Liguei pra mãe e ela falou pra eu ir na psicóloga do Clube. Fui e ela me acalmou. Não sabia que a psicóloga conversava com a gente, eu tinha medo de ir”. Vinícius*, com menos de 12 anos, saiu do interior de um estado brasileiro para jogar em um clube de futebol em Florianópolis. No começo, a mudança foi muito difícil, ele não conhecia ninguém e alternava seus dias entre duas responsabilidades: os treinos e as aulas. “Mas eu sou muito falador, logo já fui fazendo amigos. Saudade de casa sempre tem, né!?”. A saudade de casa faz parte da rotina dos aspirantes a jogador profissional no Brasil.

Como explica a psicóloga do Figueirense, Josielly Pinheiro Westphal, “a cultura do futebol no Brasil coloca os meninos longe do que a gente considera saudável para o desenvolvimento”. A convivência familiar, os vínculos fortalecidos e a permanência nos locais são as condições saudáveis, mas grande parte das crianças e adolescentes está longe da família, dos amigos de infância, da comunidade a qual pertencem e dos hábitos diários. Esses atletas passam a conviver em alojamentos com jovens de faixas etárias diferentes e com pessoas que inicialmente não conhecem.

“A gente vê foto da família ‘tudo’ junto indo em aniversário e bate uma saudade. Mas a gente tem que pensar lá na frente, pensar no nosso sonho”, diz com a voz embargada Geliel Souza, de 16 anos, meio campo do Figueirense Juvenil. “ O que a gente plantar aqui é o que a gente vai colher. Então, a gente abre mão. Mas é complicado”, revela Pierre Santos, colega de Geliel e volante do Figueirense Juvenil. Durante a noite, a saudade bate mais forte nos meninos. “Não é difícil achar casos de depressão na idade deles, é um acúmulo de responsabilidades muito grande. Eles precisam de ajuda”, explica a assistente social, Josiane Antonio Resende.

A pressão imposta aos atletas não condiz com a idade que eles têm, como explica a psicóloga. “Tem menino de 14 anos que está aqui para sustentar a família, em que os pais colocaram e depositaram a confiança do futuro da família. Como você lida com uma criança com tamanha responsabilidade?”. Artur Chaves, zagueiro do Sub 20 do Avaí, acredita que a pressão permanente é prejudicial aos atletas. “É uma constante cobrança por rendimento, tem que estar 100% bem fisicamente e mentalmente para atingir um alto nível de rendimento e isso me deixa estressado”, conta o jogador.

Alguns técnicos também cobram responsabilidades incompatíveis com a idade dos meninos. “Do ponto de vista psico-afetivo, social e neuromotor, o excesso de treinamento em uma modalidade pode prejudicar o desenvolvimento em demais áreas do indivíduo. A maneira como a criança vai assimilar o treinamento físico de alto rendimento pode gerar distúrbios emocionais e comportamentais. É necessário acompanhamento multidisciplinar”, afirma Daniel Carvalho, ortopedista e traumatologista.

A rotina de treino dos jovens atletas exige muito esforço e dedicação. No Avaí, os treinos acontecem de segunda a sábado do Sub 14 ao 20. Sub 10 e 11 treinam três vezes e o Sub 13 quatro vezes por semana. Arthur Chaves, jogador do Avaí do Sub 20, afirma que seu dia a dia é bem puxado. “Recebemos a programação semanal no domingo e às vezes o treino é de tarde, às vezes de manhã. Existem ocasiões em que às 21h eles mandam alteração e aí temos que nos readaptar”.

O futebol afasta muitos jogadores por lesão e a recuperação leva tempo. “Às vezes eles estão no auge e eles precisam se afastar. Ficam longe do grupo, a composição corporal muda: são fatores que influenciam bastante no estado psicológico”, explica a psicóloga. O jogador do Figueirense Geliel machucou o joelho em outubro de 2018 e passou por cirurgia na véspera de Natal. Após nove meses, ele voltou a treinar. “Tinha que fazer fisioterapia e ver meus amigos jogando”.

Os mais jovens que treinam três vezes por semana enfrentam rotina não menos complicada. Karyna Pereira, mãe de Natália Pereira, jogadora do Sub 10 do Avaí, revela que a maioria das crianças que joga nessa categoria ainda treina em outras escolinhas durante a semana. Desde pequenos, eles são ensinados a ter o esporte como prioridade número um, à frente de eventos da escola, da família ou de confraternizações.

No Figueirense, os jogadores têm uma cartilha a seguir com horários de chegada e saída e precisam cumprir todos os seus compromissos. “Eles vieram aqui só para duas coisas: treinar e estudar. Cobramos uma postura de trabalho. Eles também têm que ter horários de lazer e passeios, mas é um regime rígido”, explica Felipe Gil, coordenador de futebol do clube. No Avaí, eles tentam alcançar o equilíbrio entre a seriedade e a responsabilidade com os Subs 10 e 11, mas, da mesma forma, os atletas precisam seguir a rotina de trabalho. “Tentamos oferecer descontração e brincadeiras sempre, para que não fique muita cobrança, mas eles sabem que têm uma rotina de trabalho”, afirma Lucas Colturato, técnico do Sub 10 e 11.

Os atletas amadurecem desde cedo, devido a essas responsabilidades. “Eles criam resiliência, eles vão para frente apesar de todas as dificuldades. Esses meninos são mais preparados do que pessoas que moraram sempre com os pais. Eles passam a ser mais autônomos”, revela a psicóloga Josielly.

Para compensar a rotina e a distância familiar, os jovens jogadores procuram referências no clube. Para Pierre, a assistente social Josiane é uma dessas referências. “Ela sempre tenta deixar o ambiente mais familiar possível”. Os meninos do Figueirense não discordam. “Ela é uma mãe para a gente”. A psicóloga Josielly enfatiza que o treinador também é uma figura importante para guiar os meninos, apesar da rotatividade de profissionais. “O mundo do futebol é muito volátil, o Sub 17 e 20 trocaram de treinadores de 3 a 4 vezes só este ano. Isso é ruim porque eles perdem a referência, eles precisam de alguém que os direcione”.

Escola sem perspectiva

O sonho de Ryan era ser lutador profissional, mas o destino mudou seus planos. Um dia, ao ir assistir seu amigo em um treino de futebol, o treinador o convidou para “quebrar um galho”, já que o goleiro do time havia faltado. O menino foi tão bem que, depois disso, nunca mais saiu do gol. Começou a viajar com o time de sua cidade e, algum tempo depois, estava pegando o ônibus em Rondônia com destino a Florianópolis. Com apenas 12 anos, Ryan morava sozinho na Capital Catarinense, ia para escola, fazia as refeições e treinava sem seus pais por perto. Só depois de um ano sozinho, sua mãe e seus irmãos conseguiram se mudar para a ilha catarinense. “Agora só falta o meu pai”, conta Ryan.

O pequeno goleiro de Rondônia, que aos 13 anos mede cerca de 1,80m, não pensa em ter outra profissão, o sonho é ser jogador de futebol e ponto. O menino ainda brinca:, “minha mãe fala que eu não tenho muito futuro na escola não, o jeito é ser jogador de futebol”. Os clubes de futebol no Brasil, segundo o art. 29, inciso V, da Lei Pelé, devem exigir que as crianças e adolescentes estejam matriculados e frequentando regularmente a escola, com bom aproveitamento. A realidade, porém, é de que muitos deles não veem os estudos como uma perspectiva para o futuro.

Os clubes de Florianópolis lidam diariamente com diferentes situações relacionadas aos estudos. “Já aconteceu de a gente ter um menino que era muito bom jogador, mas não frequentava a escola. Daí o Conselho Tutelar nos procurou e mandamos ele embora”.

A responsabilidade dos cuidados escolares no Figueirense é da assistente social Josiane, que supervisiona desde a matrícula dos jovens que vêm de fora até a monitoria do dia a dia nas aulas. “Há meninos que estão na série correspondente e outros que estão com 17 anos no Ensino Fundamental. Nesses casos, a resistência para os estudos é grande”. Ela ainda diz que a legislação é uma aliada para manter os meninos nos estudos: “as leis ajudam muito porque se não fossem elas a gente não teria o controle”.

A dificuldade para conciliar estudo e futebol é comum no Brasil. Arthur, morador da Grande Florianópolis, treina no clube Avaí desde seus 11 anos. Mesmo com a facilidade de estar perto de casa, teve que mudar de colégio para estudar no período da noite e poder conciliar treinos e estudos. “Eu mudei para um colégio que tinha um ensino mais fraco. Acabei perdendo o contato com meus amigos e isso me magoa, porque eram amigos que eu queria ter levado adiante. Mas são coisas do futebol que temos que abdicar para levar nosso sonho adiante”. Arthur é um ponto fora da curva, ele acredita que ter uma segunda opção é fundamental. “Jogador de futebol é um carreira incerta. Por mais que as pessoas digam que você tem futuro, qualquer coisa pode mudar isso. Desde pequeno soube que eu tinha que ter um plano B, eu quero ter uma vida além do futebol”.

A estatística contraria o incentivo

Sol forte e mães sentadas em cadeiras de praia. O mar não está na frente delas, mas sim, o Campo do Inter, onde acontece o treino do Sub 10 do Avaí. Enquanto algumas crianças viajam para outros estados e moram sozinhas para treinar em um clube, outras possuem apoio constante da família nos treinos e nas competições, principalmente, as de 9 a 13 anos. Esses atletas normalmente estão vinculados a mais de um time. Nessas situações, os pais precisam modificar suas rotinas para conseguir acompanhar os pequenos jogadores no dia a dia. É o caso da mãe da Nati. A menina passa, em um mês, três semanas treinando no Avaí e uma em São Paulo, no Centro Olímpico.

“O cansaço é nosso. A gente fica na função durante a semana, para levar aos treinos e, nos finais de semana, o dia inteiro nas competições”, conta Karyna, que diariamente adapta seus compromissos. “Para a gente é complicado, temos que adaptar a nossa rotina de trabalho. Tudo pelo sonho deles, que passa a ser o nosso”, revela Clarice Mafra, mãe do João Marcelo Mafra, jogador do Sub 10.

Os pais, além de apoiarem os filhos durante as competições, passam a ser psicólogos. “Depois dos jogos, a gente entra no carro e ‘vai de psicóloga’ até em casa. Porque às vezes eles ficam no banco de reservas, acontece alguma coisa e a gente tenta confortar, tem muita pressão”, acrescenta Clarice.

Os pais incentivam, o atleta se esforça, mas as estatísticas não mentem. De acordo com uma pesquisa brasileira, dos médicos Antonio Jorge Gonçalves Soares e Leonardo Bernardes Silva De Melo, a formação de um atleta tem duração aproximada de 5 mil a 6 mil horas de trabalho duro. A chance de um atleta se tornar profissional é de 1,5%. No futebol brasileiro, há cerca de 10 a 15 mil postos de trabalho. Na verdade, o número de posições disponíveis na elite do futebol é bem menor, por volta de 520 lugares na disputa do Campeonato Brasileiro. De acordo com os dados do levantamento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em 2016, mais de 80% dos jogadores no Brasil ganhavam menos de mil reais de salário.

Jonathan Garcia, de 20 anos, apesar de ter conseguido se profissionalizar no time Imbituba, do sul do estado, hoje está desempregado há um ano, fora do mundo futebolístico. O atleta carrega uma lista de clubes nas costas, passando pelo Avaí, Guarani da Palhoça, Atlético Tubarão e Goiás. O menino sempre quis “jogar bola”, mas admite que seguir carreira no futebol é feito por altos e baixos. “Se tu não tiver bem, o amiguinho do lado vai estar. Então o corpo e a mente têm que estar sempre bem, porque o nosso corpo é nossa ferramenta de trabalho”, explica. “É bastante desmotivador”, admite o atleta.

Para ele, além de não conseguir um emprego na área, ainda há mais um motivo que o desanima. “Já passei por vários lugares e sei que hoje meninos com talentos deixam de entrar para entrar jogadores com gente influente por trás. Isso foi a coisa que mais me frustrou”. Mas Jonathan não para com seu sonho por aí. “Eu ainda tenho o sonho de fazer faculdade e trabalhar no meio do futebol como técnico, fisioterapeuta, preparador ou formador de jovens. Se o futebol não der certo, vai ser meu próximo passo”, aspira o jogador.

Rodrigo Fernandes Valete, mais conhecido como Fernades, é o ídolo master da torcida do Figueirense e conhece bem essa jornada. O jogador se aposentou, em 2013, com uma marca de mais de 100 gols pelo clube. Para ele, o começo no futebol é difícil, assim como a aposentadoria precoce. “Encerrei minha carreira com 35 anos e depois eu falei ‘poxa e agora? o que eu vou fazer?’. Precisei me reinventar. Hoje tenho uma escolinha de futebol no Estreito, a F10, e sou gerente de futebol no Figueirense”. Para o atleta, se reinventar foi uma tarefa difícil. Fernandes ficou seis meses parado após sua aposentadoria e fechou três das quatro empresas que abriu.

O jogador veterano Fernandes teve um começo atípico no futebol: iniciou a carreira com 19 anos, idade considerada elevada para introdução no esporte. O atleta conta que quando era criança tinha uma família humilde e sua primeira bola foi um amontoado de meias. Para ele, uma das piores coisas do futebol era ter que ficar longe dos pais. Quando começou sua carreira não conseguia se comunicar com sua família, as cidades eram distantes e a única forma de contato era por cartas ou orelhão. Então, sua mãe foi até a prefeitura da cidade, conversou com o prefeito argumentando que seu filho era jogador e pediu que ele colocasse um orelhão na frente de sua casa. Fernandes se diverte ao contar as experiência dessa vivência: “às vezes o vizinho atendia e eu falava ‘aqui é o Fernandes, filho da dona Adelaide, chama ela ali para mim?’. Só ouvia ele gritando ‘Dona Adelaide, seu filho no telefone’”.

Ser o artilheiro de um time, se profissionalizar, jogar uma Champions League e participar de uma Copa do Mundo. Esses são alguns sonhos dos aspirantes a jogador de futebol profissional. Desde pequenos o sonho é grande, mas a caminhada é longa: peneiras, treinos, competições e muitos “não” durante a trajetória. Apesar do sonho, é necessário ter um novo horizonte e pensar em uma segunda opção. E se não der certo? Como as estatísticas comprovam, pouquíssimos atletas conseguem chegar ao alto nível. “Se não der certo, o mundo cai. A escola é o que vai dar a possibilidade de ter outras oportunidades. Mas trabalhamos para eles aprenderem sobre frustrações”, enfatiza a psicóloga Josielly.

Apesar dos obstáculos e dificuldades, os aspirantes se espelham nas figuras que chegaram lá e que hoje estão felizes, realizaram seus sonhos e mostram que é possível. Fernandes, que atingiu seus objetivos na carreira, deixa uma mensagem: “não faça nada por dinheiro, mas sim pelo amor que você tem pelo futebol”.

Para as meninas, a base é ainda mais difícil

Desde pequena, Nati é apaixonada por futebol. Seu pai viu nela uma perspectiva de carreira e, por vontade da atleta, passou a procurar times que aceitassem meninas. Depois de um tempo, Nati passou no peneirão do Avaí e se consagrou a primeira menina a passar em uma peneira de categoria de base masculina de um clube profissional do Brasil.

Quando se fala em futuro no futebol, Nati possui mais um empecilho. Por ser menina, pode jogar em categorias de base masculinas até o sub 13 e, após essa idade, precisa migrar para uma categoria feminina, que ainda não existe em Santa Catarina. “Ela vai ter que pedalar muito para ficar no Avaí até os 13, não vai poder baixar rendimento. E com 13 anos, ela tem que ir embora para outro estado se ela quiser continuar jogando futebol”, enfatiza Karyna.

Além desse obstáculo, mesmo se Natália conseguir se profissionalizar, ela precisará ter outras formas de se manter. “Hoje em dia, o futebol feminino não consegue sustentar a jogadora. A não ser que ela chegue no auge e se torne uma celebridade”, revela a mãe. Natália pensa em outras perspectivas além do futebol. “Eu quero fazer uma faculdade, porque quando eu parar de jogar futebol, vou ter que trabalhar com outra coisa”.

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