Reabertura da fronteira promete recuperação para a economia regional. Cidades gêmeas assumem protocolos sanitários, mas contaminação por Covid-19 aumentou no lado brasileiro
Por Gabrielle Schardosin
Depois de 215 dias fechada, a Ponte Internacional da Amizade — que faz a conexão entre as cidades irmãs de Foz do Iguaçu, no estado brasileiro do Paraná, e Ciudad del Este, capital do departamento paraguaio do Alto Paraná –, foi reaberta para circulação de moradores dos municípios fronteiriços no último dia 15, momento em que o Brasil chega a mais de 160 mil mortos pela Covid-19 e o Paraguai a cerca de mil e cem óbitos.
Na primeira etapa da reabertura, que teve duração de duas semanas, os moradores de Foz do Iguaçu estiveram autorizados a cruzar a fronteira para Ciudad del Este (CdE) apenas em veículos, das 5h às 14h. Desde o dia 30 de outubro, a Direção-Geral de Migração do Paraguai liberou o acesso de turistas, moradores e estrangeiros residentes durante 24 horas, sem restrição de pedestres. O governo brasileiro não aplicou restrições de entrada de moradores do país vizinho desde o primeiro momento.
De acordo com dados de dezembro de 2019, levantados pelo Parque Tecnológico de Itaipu, cerca de 100 mil pessoas e 40 mil veículos circulavam diariamente pela fronteira mais movimentada do Brasil. Estimativas aproximadas da Receita Federal brasileira, calculadas por amostragem de apreensão de mercadorias, demonstram que os produtos trazidos do Paraguai representam um valor anual de R$14 bilhões. Aproximadamente 90% do público consumidor do centro comercial do país vizinho é composto por turistas e sacoleiros brasileiros.
A Ponte da Amizade foi fechada pela primeira vez na história no dia 18 de março de 2020, por decreto do governo paraguaio. A medida visava bloquear o avanço da Covid-19, que começava a contaminar a população brasileira e se disseminar pelo território nacional. No dia seguinte, quando foram registrados 621 casos confirmados da doença, o governo do Brasil divulgou a Portaria nº 125, que decretou a proibição da circulação de pessoas pelas fronteiras internacionais por rodovias e meios terrestres.
Fronteira fechada, desemprego em alta
Com o fechamento da Ponte Internacional da Amizade, aproximadamente dois mil iguaçuenses que trabalhavam no comércio da cidade vizinha ficaram desempregados, de acordo com estimativas da Câmara de Comércio de Ciudad del Este. O número não leva em consideração os cerca de 24,8 mil munícipes economicamente dependentes do comércio de Ciudad del Este e do turismo de compras, como demonstra o estudo divulgado pelo Portal da Cidade Foz do Iguaçu. Um alto número de trabalhadores informais e autônomos das áreas de turismo, transporte e comércio, bem como funcionários de hotéis e restaurantes, também perderam seus postos de trabalho após o bloqueio da Ponte.
Mateus Dias, 21 anos, designer gráfico e videomaker, trabalhava para uma das maiores lojas de games e tecnologia da América Latina, situada no centro de Ciudad del Este. Mateus nasceu em Foz do Iguaçu, onde sempre morou,mas seus primeiros passos profissionais foram dados no lado paraguaio da fronteira. “Foram mais de dois anos dependendo do Paraguai profissionalmente e financeiramente”, conta o designer, que mantinha o hábito de frequentar o centro de CdE desde muito antes de começar a trabalhar lá.
Depois do fechamento da Ponte, Mateus chegou a desenvolver sua função remotamente por algumas semanas, mas não demorou a ser demitido. Por não possuir graduação em Design ou Audiovisual (realizou apenas cursos livres), teve medo de não conseguir se inserir no mercado brasileiro e chegou a ser persuadido pela mãe a mudar de área de atuação pelas poucas oportunidades que encontraria no Brasil.
Com a reabertura da Ponte da Amizade no último dia 15, a expectativa é de retomada da economia e das principais atividades da região: o comércio e o turismo de compras. Como medida de segurança sanitária para evitar a disseminação do coronavírus, é obrigatório o uso de máscaras. Além disso, os moradores de Foz do Iguaçu que acessarem Ciudad del Este só estão autorizados a circular por um raio de 30 km da Ponte e barreiras sanitárias foram instaladas nas saídas do município paraguaio para controlar o acesso dos brasileiros ao interior do Paraguai.
Do lado brasileiro da fronteira, a Itaipu Binacional investiu mais de R$ 25 milhões no enfrentamento à Covid-19, para criação de leitos nos hospitais da região oeste do Paraná, distribuição de insumos e equipamentos para as unidades de saúde locais. Apenas em Foz do Iguaçu, 45 novas vagas de UTI foram criadas no Hospital Municipal, que agora conta com 75 leitos. As medidas buscam preparar o sistema público de saúde para um possível aumento no número de casos da doença, decorrente da reabertura.
Mesmo com a possibilidade de voltar a trabalhar no Paraguai, agora com a fronteira livre, Mateus preferiu buscar uma oportunidade em território nacional. Atualmente, o designer atua em uma agência de marketing em Foz do Iguaçu, mas pretende criar um empreendimento próprio na área audiovisual. O fato de ter sido demitido de maneira súbita despertou em Mateus a insegurança de “ficar à mercê do empregador”.
Consequências sanitárias são distintas nos dois lados da fronteira
Três semanas após a reabertura da Ponte Internacional da Amizade, os números referentes à contaminação pela Covid-19 não aumentaram no distrito sanitário de Alto Paraná, onde Ciudad del Este está localizada. Os novos casos no município paraguaio estabilizaram-se em torno de 20 a 50 por dia — metade da média móvel de novos contágios registrados em Foz do Iguaçu. A cidade do lado brasileiro da fronteira já ultrapassa as dez mil ocorrências da doença.
Em entrevista coletiva concedida à imprensa no dia 30 de outubro, o ministro de saúde pública do Paraguai, Julio Mazzoleni, destacou a baixa ocupação de leitos em hospitais da região, em função do respeito às normas de segurança sanitária que têm permitido o controle da situação.
O médico Hugo Kunzle, diretor da 10ª Região Sanitária do país vizinho, em entrevista para o jornal paraguaio Ultima Hora, reforçou a preocupação sobre o retorno da passagem de pedestres pela Ponte da Amizade. “Sempre que há oportunidade de aglomeração, há preocupação, então temos que continuar insistindo nas medidas sanitárias, no uso correto da máscara, na distância de mais de dois metros, desde o momento em que entram no país e na lavagem frequente das mãos”, afirma o médico.
Em Foz do Iguaçu, foi observado um aumento significativo no número de casos ativos da doença (além dos números absolutos): em três semanas, o valor subiu de aproximadamente 200 para 441. A situação é considerada de emergência, com incidência de 4.081 contaminados pela Covid-19 para cada 100 mil habitantes.No estado do Paraná, a incidência é de 1.923 casos por 100 mil habitantes.
A taxa de ocupação de leitos nos hospitais do município paranaense, contudo, não apresentou elevação, mantendo-se em torno de 60% de vagas UTI ocupadas e 70% nas enfermarias. Apesar de reconhecer a reabertura da Ponte da Amizade como fator determinante para o aumento da contaminação pelo novo coronavírus em Foz do Iguaçu, a assessoria de imprensa da Prefeitura Municipal nega a intenção de montar barreiras sanitárias na cidade, já que elas “se mostraram ineficazes”. Também não há a possibilidade de lockdown. Do lado paraguaio, lojistas estão na expectativa de alta das vendas em uma Black Friday antecipada para meados de novembro.
Fakenews binacionais
Assim como acontece no Brasil, o Paraguai passa por uma onda de notícias falsas “tanto em relação à própria Covid-19, quanto em relação à pandemia e medicamentos”, diz o biólogo paraguaio Cecílio Correa, 27 anos. Ele está sempre atento às notícias, já que é uma referência em assuntos relacionados à saúde para sua família, checando as informações que recebe para poder repassar a eles.
Nesse sentido, Cecílio afirma que percebeu, durante a pandemia, o quanto a desinformação consegue se propagar em meio ao medo. “A minha preocupação enquanto biólogo e cidadão é o crescimento do negacionismo científico, no Brasil e no Paraguai, que são os dois países aos quais pertenço e tenho conexões”. Ele busca disseminar o conhecimento científico que adquiriu no meio acadêmico para amigos e familiares como uma forma de ajudá-los a tomarem os cuidados necessários nesse momento.
Apesar da estabilidade e diminuição da pandemia em todo o território paraguaio, Cecílio não pretende retornar para Concepción antes das festas de fim de ano. A cidade natal de Cecílio, onde viveu toda a infância, adolescência e parte da vida adulta, é a capital do distrito homônimo, localizado na região Oeste do Paraguai.
A cidade de Concepción fica a aproximadamente 600 km de distância de Foz do Iguaçu. Uma viagem de ônibus para lá costuma durar, em média, dez horas.
Cecílio passou a viver em Foz do Iguaçu em 2012, ano em que foi admitido no curso de graduação em Biologia da Universidade Federal da Integração Latinoamericana (UNILA). Atualmente, ele cursa o mestrado em Biodiversidade na mesma instituição. O biólogo conta que, durante a faculdade, já havia passado períodos longos sem visitar a família.
Contudo, a pandemia e o fechamento da Ponte da Amizade fizeram com que Cecílio perdesse “qualquer chance de voltar ao Paraguai”. Ele comenta que a família ficou bastante preocupada por estar distante, em um país diferente e com as fronteiras fechadas. A avó, com quem o biólogo sempre viveu, está sob cuidados de outras pessoas da família desde que veio para o Brasil.
De acordo com Cecílio, a cidade de Concepción foi uma das últimas a apresentar casos de contágio pela Covid-19. Entretanto, assim que o vírus chegou ao local, a doença espalhou-se rapidamente, o que fez aumentar a preocupação do rapaz que tem se comunicado com a família via WhatsApp. Ele conta que faz o possível para “desmentir ou corrigir informações falsas e equivocadas” que chegam pelo grupo da família.