“Na minha pesquisa, posso ajudar uma criança que ainda no útero da mãe foi detectada com doença óssea ou má formação.” Fabiane Nascimento, mestranda no Programa de Pós-Graduação de Biologia e Desenvolvimento Celular da UFSC.

Brasil pode reviver “fuga de cérebros”

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6 min readAug 29, 2019

Ameaça a pesquisas faz estudantes pensarem em futuro no exterior ou viver incerteza no país

Texto por Ana Ritti & Emily Leão

O Laboratório de Células-Tronco e Bioengenharia localizado no Centro de Ciências Biológicas (CCB), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no bairro Córrego Grande, é praticamente uma segunda casa para Fabiane Nascimento, de 23 anos. Sem férias e sem hora para ir embora, é lá que a mestranda em Biologia Celular e Desenvolvimento passa a maior parte de seus dias. Formada em Biotecnologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), desde 2018 ela vive em Florianópolis para se dedicar a uma pesquisa sobre regeneração óssea.

O objetivo é desenvolver um método que seja menos invasivo para o tratamento de pessoas diagnosticadas com doenças ou problemas ósseos, como a geno varo, popularmente conhecida como “perna de alicate”, uma condição onde os joelhos se mantém afastados mesmo quando a pessoa consegue encostar um tornozelo no outro. Isso normalmente acontece porque a tíbia não fica corretamente alinhada com o fêmur, dando uma forma diferente à linha da perna. “Minha pesquisa é essencial, porque eu posso conseguir transformar uma criança que ainda no útero da mãe foi detectada com alguma doença óssea, alguma má-formação”, afirma a pesquisadora.

O trabalho de Fabiane é um exemplo das milhares de linhas de pesquisa que ajudam a resolver os mais diversos problemas relacionados não apenas à saúde, mas também a outras áreas como tecnologia e sociedade, produzidas nas instituições de ensino brasileiras: só as universidades públicas representam 95% das pesquisas realizadas no país, segundo artigo reproduzido pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Com 87 programas de pós-graduação, a UFSC aparece em 8o lugar entre as instituições nacionais que realizam pesquisa, aponta o Ranking Universitário da Folha de 2018. Apesar do destaque, o corte de bolsas anunciado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o bloqueio de verbas em instituições federais ameaçam a continuidade de pesquisas fundamentais para a produção científica no Brasil.

Como órgão do Ministério da Educação, a Capes é responsável pelo acompanhamento e avaliação de cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) em âmbito nacional para garantir e ampliar a qualidade das pesquisas desenvolvidas nas instituições de ensino. Durante o processo avaliativo, que acontece a cada quatro anos, os programas de pós-graduação em funcionamento no Brasil recebem notas na escala de um a sete: aqueles que alçarem nota igual ou superior a quatro continuam regulares e, em contrapartida, os que obtiverem nota inferior ou igual a três são desativados. A partir da próxima avaliação, a Capes utilizará três critérios gerais para avaliar as pós-graduações: Programa, Formação e Impacto na sociedade. Segundo o site da instituição, no quesito Programa, serão avaliados o funcionamento, a estrutura e o planejamento da pós-graduação em relação ao seu perfil e aos seus objetivos. Em relação à Formação, a análise incluirá qualidade das teses, dissertações, produção intelectual de alunos e professores e das atividades de pesquisa, bem como a avaliação do egresso. Já no quesito Impacto na Sociedade, a avaliação vai se ater ao caráter inovador da produção intelectual, os efeitos econômicos e sociais do programa, internacionalização e visibilidade.

A UFSC possui atualmente 20 programas de pesquisa considerados de excelência com notas seis e sete. Em maio, foram cortadas 70 bolsas consideradas “ociosas”, ou seja, sem uso durante o mês de abril em programas de nota três, quatro e cinco de mestrado, doutorado e pós-doutorado da UFSC. As bolsas, no entanto, não estavam realmente ociosas e novos bolsistas estavam em processo de seleção para ocupá-las, como explicou o superintendente da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Juarez Vieira do Nascimento. Em junho, a Capes anunciou o corte de bolsas de programas que tiveram nota três nas duas últimas avaliações realizadas pela instituição em 2013 e 2017. Essa medida não atinge nenhum programa de pós-graduação na UFSC. Em julho, o anúncio foi de congelamento de recursos de programas de pesquisa que tiveram redução de nota de cinco para quatro nas últimas avaliações, decisão que atingiu os cursos de pós-graduação em Educação, Física e História da UFSC. Outra medida foi o congelamento de bolsas em programas que tiveram nota quatro nas duas últimas avaliações, atingindo os cursos de Administração, Agroecossistemas, Ciências Médicas, Jornalismo, Nutrição, Odontologia e Biologia Celular e Desenvolvimento.

Fabiane continuará recebendo o auxílio até fevereiro de 2020, quando está previsto o fim de seu mestrado. Ainda assim, ela se preocupa e percebe no dia a dia dificuldades para desenvolver seus estudos. Um exemplo é a falta de equipamentos e espaços adequados para desenvolver as análises de células-tronco, que têm capacidade de autorrenovação e de diferenciação em diversas categorias funcionais de células, ou seja, as células-tronco têm capacidade de se dividir e se transformar em outros tipos de células. Elas podem ser programadas para desenvolver funções específicas, uma vez que se encontram em um estágio em que ainda não estão totalmente especializadas. Esse trabalho é importante para tratamentos de regeneração óssea, podendo evitar inúmeras cirurgias ou o uso de ferros em uma fratura. O osso é um dos poucos órgãos do corpo humano capazes de se regenerar por conta própria. Uma das alternativas encontradas para seguir a pesquisa mesmo sem novos materiais é reutilizar utensílios laboratoriais, como, por exemplo, pipeta e vortex, que deveriam ser descartados. Nessas condições, a análise feita não pode ser lançada no mercado e nem como produto, servindo apenas para conhecimento próprio e produção de artigos científicos. Ela conta que “é muito complicado estar investindo, me qualificando para trabalhar em um país que eu sei que não vai me dar devido retorno”, por isso considera no futuro trabalhar no exterior.

A estudante de doutorado Cecília Augusta Vieira, 30 anos, teve a oportunidade de pesquisar no exterior e perceber a estrutura e valorização do trabalho de pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Lá, ela desenvolveu sua pesquisa sobre variação linguística do português brasileiro e europeu em cartas pessoais dos séculos XIX e XX. A ideia de seguir essa linha de estudos veio das vivências que teve durante a graduação como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) e como voluntária no Projeto Variação Linguística na Região Sul do Brasil (Varsul), onde desenvolveu projetos semelhantes de investigação da língua. Desde que ingressou no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC — nota seis pela Capes e um dos seis melhores do país na área — a estudante recebe bolsa para se dedicar exclusivamente à pesquisa, inclusive enquanto esteve em Portugal. Em março de 2020, Cecília entrega a tese de conclusão de seu doutorado e mesmo com as incertezas em relação à Universidade ela se mantém positiva. “Estamos lutando”, garante ela, em referência às manifestações contra os cortes da educação.

Mesmo sem conhecimento sobre o destino de suas pesquisas, as perspectivas de Fabiane e Cecília sobre o futuro se esbarram. Ambas acreditam que os cortes não afetam somente a conclusão de suas pesquisas, mas também a sociedade como um todo. “É dar um tiro no pé, você tirar esse investimento da educação e ainda defender esses cortes”, reforça Fabiane. Mesmo afirmando que se considera privilegiada por ter acesso à educação de nível superior, ela reitera que precisa existir um contato maior entre a academia e a população para que haja a difusão do que é produzido dentro da universidade. Para Cecília, seus dias são dedicados a terminar sua tese e defendê-la. Seu objetivo é um só. “O meu sonho é ser professora da UFSC, tenho consciência de que, talvez, isso não venha tão cedo. Mas eu quero ser professora e isso é o que importa.”

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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