Bruxas, boitatás e benzedeiras invadem Centro de Florianópolis

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9 min readDec 13, 2023

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Após hiato de quatro anos, Grande Baile Místico retorna às ruas da Capital de SC

João Monteiro (jotavcmonteiro@gmail.com) e Lucas da Hora (lucasdahora10@yahoo.com.br)

A festa das bruxas já estava programada. Elas enfim poderiam sair à luz do dia para celebrar o seu protagonismo na história da Ilha de Santa Catarina e desfilar no grande cortejo alegórico. Tudo organizado, acordado até mesmo com o diabo — convidado e relegado ao papel de mero coadjuvante em um carnaval de roteiro marcado: o grande baile seria delas. Se houve algum impasse na organização, foi com São Pedro. As chuvas que assolaram o Sul do país no mês de outubro não davam trégua e adiaram, por mais de uma vez, o cortejo alegórico pelas ruas de Florianópolis. A primeira apresentação do desfile ocorreu em 2019 e não aconteceu nos anos seguintes por conta da pandemia da Covid-19. Logo, para quem esperou e sobreviveu aos últimos quatro anos, aguardar o sol sair de novo não seria nenhum martírio.

Participantes se reuniram em frente a Catedral Metropolitana para dar início ao cortejo alegórico. (Foto: Jota Monteiro)

Seja lá qual tenha sido o combinado, ou feitiço lançado, deu certo. Apesar das previsões contrárias, o tempo limpou e, no dia 29 de outubro, o Grande Baile Místico tomou as ruas da capital catarinense. Por volta das três horas da tarde daquele domingo, pessoas de todas as sortes se reuniram em frente à Catedral Metropolitana de Florianópolis. A instituição, que um dia foi marcada pela intolerância, perseguição e preconceito, o que, de certa forma, contribuiu paradoxalmente para a propagação dos mitos bruxólicos, agora veria seu entorno ocupado pelos mais variados seres fantásticos. No largo da Catedral, dezenas de pessoas incorporavam personagens do folclore manezinho, ou seja, oriundo de Florianópolis, que foi reunido e aperfeiçoado pelo pesquisador da cultura popular local, Franklin Cascaes. Nada de Halloween, Harry Potter ou Disney, a mitologia da Ilha de Santa Catarina foi concebida e consolidada muitos anos antes.

Ao menos por uma tarde, a procissão folclórica transportou adultos para a infância de novo e proporcionou que crianças fossem apenas crianças, brincando em um teatro a céu aberto. Gostosuras e travessuras estavam liberadas, mas sem máscaras de filmes de terror hollywoodianos. Varinhas de condão e chapéus pontudos deram lugar a cabeças gigantes de animais — de mentirinha, é claro. Não se via abóboras talhadas e sim barbas de velho — planta presente em muitas das fantasias. Bruxas que trocaram vassouras por bicicletas fizeram as honras, abrindo o caminho e guiando o público, em êxtase coletivo, pelas ruas Tenente Silveira e Deodoro. Abençoando o trajeto, benzedeiras agitavam suas ervas mágicas, provendo graças e boas venturas aos seres desventurados que viriam logo em seguida. Sob o olhar de Cascaes e Meyer Filho, ilustrados na fachada de prédios do centro, desfilavam criaturas como o Galo Místico e o Boitatá Marciano, que desceu dos céus para bailar incandescente junto aos homens, ao som dos tambores ritmados do grupo Cores de Aidê. Os batuques guiaram o cortejo até o largo do Mercado Público, onde a apoteose ficou por conta do menestrel Valdir Agostinho e sua banda, encerrando o evento e fechando, momentaneamente, o portal — que por uma tarde reuniu seres humanos e extraordinários em um festim pela cultura popular.

A imigração das bruxas para a Ilha de Santa Catarina

A mitologia bruxólica de Florianópolis chegou de navio, em meados do século XVIII, junto com os fluxos migratórios açorianos para o Brasil. O Arquipélago dos Açores era uma região peculiar — um território ultramarino português, isolado da metrópole, onde ainda resistiam algumas crenças e comportamentos medievais –, pois vale lembrar que nessa época a Inquisição ainda acontecia na Península Ibérica. Portanto, o medo e a repulsa do desconhecido estavam enraizados no povo açoriano e isso foi trazido para o sul do litoral brasileiro.

“A própria condição geográfica da Ilha de Santa Catarina também favorecia uma dispersão territorial da população migrante. É uma região longilínea, relativamente grande para as condições do século XVIII. Esse isolamento entre as freguesias açorianas, associado à falta de comunicação e à dificuldade de acesso à medicina e demais tecnologias, contribuíram para a sobrevivência e para a manutenção de valores e crendices medievais”, explica Rodrigo Rosa, historiador da Fundação Catarinense de Cultura (FCC).

As bruxas açorianas nascem da ignorância e da negação em acreditar, entre outras coisas, que doenças poderiam ser curadas com fórmulas caseiras e métodos pouco convencionais. Com a população masculina composta majoritariamente por pescadores, coube às mulheres da antiga Nossa Senhora do Desterro — como Florianópolis era chamada –, as tarefas domésticas e agrícolas. O que elas faziam, pensavam e falavam enquanto os homens passavam as madrugadas em alto mar, era motivo de desconfiança e fofoca. Se alguém adoecia, se algum animal fugia, a culpa era delas. Assim, as bruxas se tornaram o bode expiatório perfeito dos fenômenos complexos demais para a compreensão humana. Além disso, as bruxas eram usadas como figuras amedrontadoras para manter os filhos jovens em casa à noite e com isso garantir que eles colaborassem nas tarefas da freguesia no amanhecer dos dias. Não eram raras as histórias de embruxamentos nos caminhos que seus filhos percorriam para encontrar os amigos.

Até o século XX, esse simbolismo místico e mítico não era valorizado pelos poucos produtores de conhecimento de Florianópolis. “Não havia uma preocupação em se registrar o conhecimento vulgar [popular]. Isso não era documentado e se eventualmente houvesse algum tipo de documento, não era um documento oficial”, ressalta Rodrigo. As narrativas folclóricas estavam restritas ao seio das províncias e pouco interessavam para a historiografia nacional.

“Os açorianos que vieram para cá eram ruins de tudo — de tecnologia, de letramento –, eram apegados a tais crenças e medos. Já as pessoas que vieram da Europa, 100 anos depois, não”, registra o historiador. Ele continua: “Então se constrói um discurso do pescador como um homem simples, um personagem ignorante, que só come peixe e mandioca, que acredita em bruxa, que mora nessa ilha e nunca saiu dela… Enquanto que em Blumenau os caras comem trigo e usam terno.”

Apenas a partir dos anos 1940, surge uma produção intelectual que busca estudar a cultura popular açoriana. Com a instalação da Comissão Catarinense de Folclore, pesquisadores como Doralécio Soares e Walter Piazza passam a registrar práticas do cotidiano ilhéu. Um pesquisador em especial não tinha a mesma formação intelectual dos outros historiadores, mas pertencia à comunidade, além de ser um excelente observador: Franklin Cascaes brincava de pau de fita e boi de mamão e falava o dialeto “manezês”.

Grupo ‘Isteporas Bruxólicas’ desfilaram com figurinos baseados nos desenhos de Cascaes. (Foto: Jota Monteiro)

Ilustre mané

Franklin Cascaes era uma figura singular: seu estudo sobre a cultura da Ilha era realizado diretamente em contato com os moradores locais, visitando as casas e comunidades e registrando a cultura por meio de entrevistas e da escuta de relatos. Para documentar tanto conhecimento cultural, Cascaes eternizou o que ouvia em esculturas, desenhos, livros e jornais.

Ainda em vida, Cascaes enfrentou problemas com a classe acadêmica erudita. Muitos profissionais deste meio duvidavam de sua credibilidade como pesquisador, com o argumento de que ele não utilizava os rigores da ciência para seu trabalho. Franklin Cascaes sequer foi convidado para o Primeiro Congresso de História Catarinense (1948), apesar de ser frequentemente convidado a participar de manifestações culturais da comunidade manezinha, como a Festa do Divino. Estes relatos estão na dissertação Rompendo Silêncios: A trajetória do professor Franklin Cascaes na Escola Industrial de Florianópolis (1941–1970), escrita por Denise Araújo Meira, defendida em 2009, em Educação/Hístória/Historiografia da Educação, na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

O reconhecimento do trabalho e da trajetória de Franklin Cascaes como pesquisador da tradição cultural catarinense foi acontecer apenas próximo de sua morte, em 15 de março de 1983. “Cascaes tenta se aproximar do mundo acadêmico já nos anos 1960, com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mas, ainda tem uma certa dificuldade. O reconhecimento veio só após sua morte. Seu acervo tornou-se o principal do Museu da UFSC e seu presépio de natal virou referência internacional”, cita Rodrigo Rosa.

O legado de Cascaes foi passado adiante mesmo após seu falecimento. Gelci José Coelho, o Peninha, foi um dos que absorveram e transmitiram os conhecimentos do artista. Museólogo, historiador, amigo pessoal e aprendiz de Cascaes, Peninha veio a falecer no dia 16 de março de 2023, um dia após a morte de seu amigo e mestre completar 40 anos. Peninha é considerado um dos responsáveis por expandir a cultura e o folclore da Ilha de Florianópolis, mas não foi o único.

O Boitatá de Cascaes — uma das fantasias criadas pelo artista plástico Jone Cezar de Araújo para o desfile. (Foto: Jota Monteiro)

Palavras mágicas

A jornalista Isabel Orofino, conhecida como Bebel, é professora e doutora especializada nas áreas de Comunicação e Artes. Bebel trabalhou com Peninha na catalogação do acervo de Franklin Cascaes. Desde 2019, ela colabora na preparação das festividades do Baile Místico, além de desfilar no cortejo alegórico. Em 2023, Bebel lançou o livro Palavras Mágicas, repleto de contos infantis sobre a cultura e mitologia da Ilha.

“Faltava criar histórias infantis e contar para as crianças. Daí eu fiz uma adaptação, com contos que falam dos nossos mitos, utilizando os espíritos da natureza e dos elementos água, terra, fogo e ar” explica Bebel. A autora destaca que o livro é organizado com base nos quatro elementos da natureza. “O ar representa os seres que voam: as bruxas que se transformam em animais voadores — por exemplo, mariposa e gaivota. Com a terra, temos o lobisomem, a fauna e flora local. Com a água, as ondinas. E com o fogo, o boitatá (mito de origem indígena, protetor dos campos), esclarece Bebel.

Uma das principais organizadoras do Baile Místico é Patrícia Amante. Ela conta que o cortejo surgiu em 2019, a partir de um conselho de artistas da Ilha com o desejo em comum de querer trazer à tona o folclore de Cascaes e reviver as memórias da cidade. O grupo criativo contou com o apoio do Museu da Escola Catarinense (Mesc) para viabilizar e colocar na rua o primeiro Grande Baile Místico.

“Eu creio que o Baile Místico surge de um movimento de adormecimento da cidade para as nossas coisas e para as nossas identidades. Ele surge com essas pessoas querendo fazer alguma coisa, reviver esse mito e magia na arte catarinense, a magia que nos rompe. Esses seres mitológicos precisam ser vistos e a nossa cultura merece ser conhecida, porque as gerações de agora não conhecem nada disso”, reflete Patricia.

Grupo de artistas locais encenou mito das bruxas de Itaguaçu para o público presente. (Foto: Jota Monteiro)

Outra pessoa que entrou na missão de homenagear a cultura manezinha foi Alessandra, ou Ale, Gutierrez. Ale criou, em 2022, as Isteporas Show, espetáculo de dança e teatro inspirado nas vedetes, figuras femininas emblemáticas dos cabarés. Um dia, Bebel Orofino, que acompanhava uma dessas apresentações, deu a ideia de adaptar o trabalho de Ale para o folclore local. “A Bebel me convidou para um desafio, que foi fazer as Isteporas Bruxólicas. Eu já participava do Baile Místico como coreógrafa, com os figurinos inspirados nas obras de Cascaes. Então, topei a ideia e criamos uma história contando a origem das Isteporas e como elas chegaram à Ilha”, recorda Ale.

As Isteporas Bruxólicas estrearam neste ano, durante o Outubro Místico. Na história, as bruxas vieram durante a época da migração do Arquipélago dos Açores, dentro dos porões, ficam amigas e depois são espalhadas por todas as freguesias para não terem contato. Os figurinos do espetáculo são baseados nos desenhos de Cascaes: há a bruxa de três pernas, a bruxa grande, bruxa urubu… Ale explica que uma das maiores inspirações para seu trabalho é espalhar o conhecimento da cultura local. “Além dessa questão do entretenimento, do teatro, da dança, também tem a questão educativa sobre a cultura e o folclore açoriano para as crianças, que muitas vezes não têm contato. Aí você vê a importância de passar esse conhecimento adiante”, conclui.

Participantes do cortejo reivindicaram maior acessibilidade ao acervo das obras de Cascaes. (Foto: Jota Monteiro)

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC