Cabul sob o Talibã: a primeira semana de quem ficou no país
Em entrevista exclusiva ao Zero, o ministro da saúde do Afeganistão, Wahid Majrooh, conta como está sendo gerir o único ministério de Estado em funcionamento na semana em que o grupo extremista assumiu o poder. Conversamos, também, com um cidadão de Cabul que busca sobreviver e fugir com a mulher e o filho recém-nascido
Por Gabriel Guimarães
Em meio ao caos e ao medo generalizado que se espalha por Cabul, a capital do Afeganistão, onde o grupo extremista Talibã retomou o controle de quase todo o país no dia 15 de agosto — exceto pela província de Panjshir –, os hospitais surpreendem por resistir às ameaças, com sua rotina de atendimentos.
Em um deles, o afegão Khalil*, de quase 30 anos, conseguiu imunizar seu filho recém-nascido dois dias depois da invasão dos extremistas, apesar do histórico anti-Ciência e antivacina, especialmente contra a poliomielite, do Talibã. “Todas as atividades estavam acontecendo como antes”, declarou surpreso, pelo contraste em relação ao que viu pelas ruas da capital. “Cabul está uma bagunça. Bancos estão fechados, caixas eletrônicos estão fechados, mercados estão fechados, postos de gasolina estão fechados…”.
Khalil trabalhou com os estadunidenses enquanto estiveram presentes no país. No domingo procurou abrigo em uma embaixada, mas assim que o governo do outro país anunciou a evacuação do prédio, Khalil teve que voltar para sua casa, temendo que o prédio fosse invadido e vasculhado pelo Talibã. Algo que poderia acontecer a qualquer momento. Enquanto aguarda o visto de uma representação diplomática para deixar Cabul com a família, não acredita na condução respeitosa aos direitos humanos e às mulheres, conforme a primeira declaração do porta-voz talibã Zabihullah Mujahid. Para que esse discurso mude, segundo ele, bastará a saída das últimas tropas dos EUA — que estão em regime de evacuação de seus cidadãos e de aliados.
O responsável pelo “oásis de normalidade” que Khalil encontrou no hospital tem nome: Wahid Majrooh, 36, Ministro da Saúde do Afeganistão. Poeta e colecionador de diplomas acadêmicos na área da saúde e da ciência política, o jovem ministro está no cargo desde o início da pandemia e, por enquanto, é o único que se mantém na função. A previsível invasão Talibã à capital do país o assombrava há meses. Quando se concretizou, no final de semana de 14 de agosto, o ministro já tinha sua decisão tomada: ficaria em Cabul e continuaria trabalhando no seu ministério. “Eu não deixarei o setor da saúde nessa situação. Eu sei que no momento — não o dia — mas no momento em que eu deixasse o escritório, o Ministério estaria vazio. E eu não posso deixar isso acontecer”, conta o ministro em entrevista exclusiva ao Zero.
Honrando o cargo, diferentemente do presidente do Afeganistão, o ministro da Saúde, Wahid Majrooh, decidiu permanecer em Cabul após a invasão talibã e apelar para que sua equipe voltasse aos postos de trabalho.
Por conta disso, durante toda a semana, o Ministério da Saúde foi a única instituição do governo afegão que continuou funcionando. Wahid vai todos os dias ao seu escritório, onde trabalha com sua equipe, convencida por ele a voltar ao trabalho. “Há decisões importantes que precisamos tomar antes que isso afete seriamente as vidas e a saúde das mães, das crianças, e do meu povo”, explica o ministro. Enquanto trabalham, funcionárias e funcionários do Ministério são observados de perto por membros do grupo extremista que fazem parte da Comissão de Saúde do Emirado Islâmico do Afeganistão — nome dado pelo Talibã.
A junta foi criada para que houvesse uma transição entre a gestão de Wahid para um novo ministro que será indicado pelo novo governo. O anúncio da criação da Comissão foi feito ainda na segunda-feira, 16 de agosto, quando Wahid apareceu na televisão afegã ao lado de talibãs, suplicando a volta dos profissionais de saúde ao trabalho, inclusive as mulheres. “Ainda estou comprometido, e pedi a minha equipe para dar a eles o suporte que eles precisarem. Se eles precisarem, e se eles nos quiserem”.
Os pais, a esposa e a filha de um ano e dois meses do ministro também ficaram em Cabul, mas não foi fácil convencê-los disso. “Eles estão estressados, deprimidos… Eles me fazem perguntas a todo instante. ‘O que vai acontecer?’, ‘Você tem certeza de que quer continuar arriscando nossas vidas e a sua?’”. Mas a decisão é clara: “Não poderia deixar meu ministério desmoronar, minha equipe se desesperar”, explica pontuando com um suspiro resignado. Além da pandemia da Covid-19, outros problemas impactam a saúde da população.
Durante a invasão de Cabul, nas ruas da cidade ouviam-se tiros por toda parte, relata Khalil. Alguns de seus parentes se dirigiram ao aeroporto da cidade, onde um tumulto se formava. Somado ao terror promovido pelo grupo extremista, que se sobrepôs a qualquer outra crise, antes mesmo da invasão da capital, a população afegã já sofria com outros problemas. O país vive uma seca histórica: no dia 22 de junho, o então presidente Ashraf Ghani anunciou que mais de 80% da população vive sob algum grau severo de escassez de água. Com as plantações de comida esgotadas, a fome se alastra pelo país. Segundo o último estudo de Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC, em inglês, Integrated Food Security Phase Classification), publicado em março deste ano, pelo menos 13,1 milhões de afegãos passam fome. E, claro, a pandemia não acabou.
O pico do número de mortes e novos casos de Covid-19 foi em junho deste ano. Os hospitais por todo o país estavam lotados e chegou a faltar oxigênio para os pacientes em estado grave. De acordo com dados oficiais, por volta de sete mil pessoas morreram pela doença desde que a pandemia começou, e a vacinação caminha lentamente. Além da dificuldade de conseguir doses — muitas delas doadas por outros países –, a geografia montanhosa afegã dificulta a logística para fazer com que elas cheguem a todas as pessoas. Menos de 3% da população está totalmente imunizada. Para piorar, segundo o jornal indiano Hindustan Times, existem relatos de que o Talibã teria paralisado a vacinação na província de Paktia, ao leste. Esse é apenas mais um indício de que as perspectivas para uma melhora na imunização não são positivas.
Ciclo de violência
Caminhando pelas ruas vazias e silenciosas, Khalil reflete sobre Cabul definitivamente não ser a mesma. Com o filho no colo ele percebe que a história se repete. Há quase três décadas, ele era o bebê de quem os adultos protegiam os ouvidos do barulho de tiros e bombas que ressoavam por Cabul. “Minha mãe conta que uma intensa batalha acontecia enquanto eu vinha ao mundo. E agora, quase três décadas depois, meu filho vive a mesma situação. Desesperador!”, lamenta.
A batalha da qual a mãe de Khalil se referia fazia parte da Guerra Civil Afegã que, nos anos 1990, teve no recém-criado Talibã um de seus protagonistas. Mulçumano sunita, o Talibã é formado essencialmente por pashtuns, a etnia predominante no país, e de onde vem o seu nome (Afeganistão, em persa, significa “Terra dos Pashtuns”). Foram as sucessivas invasões que moldaram a história do país e fomentaram o surgimento do grupo. Mais especificamente, as raízes do Talibã se ligam aos grupos que lutaram contra a URSS no final da Guerra Fria. Após a expulsão dos soviéticos, ficaram para trás os escombros e grupos altamente armados e treinados pelos EUA.
Então, estudantes — Talibã, no idioma pashto –, de escolas muçulmanas paquistanesas se organizaram em grupos armados para tomar o poder do país. Baseados na Patchtunwali, um código de conduta nacionalista pashtum mais antigo que o Islã, e em uma visão fundamentalista do Alcorão, o Talibã ganhou força até chegar ao poder pela primeira vez em 1996.
“Entre os grupos que guerreavam na Guerra Civil, o Talibã era o único que não violentava as mulheres e nem saqueava as cidades. Então ele acaba sendo visto como um grupo correto, digamos assim, e tem certo apoio popular”, explica o professor de Relações Internacionais da Unicuritiba, Andrew Traumann. Mas essa postura não durou, e seguiram-se cinco anos de um regime marcado pelas violações dos direitos humanos, especialmente das mulheres e das etnias minoritárias. O Talibã foi derrubado do poder com a invasão estadunidense, que instalou um novo regime e se manteve no país por duas décadas com intensa presença militar.
O acordo entre o governo Donald Trump e o Talibã de retirada das tropas dos EUA até setembro de 2021 foi feito dois anos antes e, desde então, preocupava especialistas. Mantendo a decisão da gestão anterior, Joe Biden iniciou a desocupação em maio deste ano, e a ascensão do grupo extremista foi inevitável. Em poucas semanas o país estava tomado pelo grupo.
Para o professor Andrew, a diferença entre o Talibã de 2021 e o de 1996 é que, agora, ele terá um discurso mais brando e serão mais discretos no que diz respeito às violações dos direitos humanos, para não chamar atenção da comunidade internacional. “Eles não vão fazer das punições corporais espetáculos, como fazia o primeiro Talibã, que executava pessoas em campos de futebol, açoitava pessoas em público…”, explica. Mas, na sua opinião, não há nada que os outros países possam fazer. “O mundo logo vai esquecer esse assunto, e as potências ocidentais só vão cogitar intervir se o grupo voltar a abrigar grupos terroristas que possam atacá-los”.
Risco constante
O maior medo de Khalil é que o grupo extremista descubra seu envolvimento com os EUA durante o tempo da ocupação. “Eu estava trabalhando com eles [os estadunidenses], e agora eles me deixaram para trás”, conta o afegão. Na quinta-feira, o marido de sua irmã recebeu um e-mail do governo francês convidando o casal ao aeroporto para serem levados ao país europeu. Isso, de alguma forma, o deixou aliviado.
Enquanto procura formas de conseguir um visto para fugir do país com sua esposa e seu filho, o afegão trabalha em home office e não se arrisca a sair de casa. Como os bancos seguem fechados, ele estava ficando sem dinheiro para o básico. “Estamos desesperançosos, tentando ir embora, mas não há vistos”, relata. Depois de quinta-feira, ele não voltou a responder à reportagem.
Tendo que sair todos os dias para trabalhar, o ministro Wahid também vive em constante risco, mesmo colaborando com o Talibã. Na tarde de terça-feira, quando dirigia de volta para casa, foi parado por homens fortemente armados, próximo ao aeroporto de Cabul. Violentamente, ordenaram que ele saísse do carro. Os homens queriam levar o veículo, uma vez que pertencia ao Estado afegão. Por sorte, deixaram-no voltar para casa com o carro. Naquela noite, Wahid passou a noite em claro.
No dia seguinte, ao tentar sair de seu condomínio para ir ao trabalho, pela manhã, foi detido na portaria por talibãs. Wahid tentou argumentar com os homens armados, mas foi inútil. Ligou, então, para os membros do grupo extremista que trabalhavam com ele no Ministério. Com a chegada dos “colegas”, a discussão continuou acalorada. Por fim, o ministro teve de devolver o veículo ao estacionamento e pedir um táxi, chegando muito atrasado no trabalho.
Ao terminar o cansativo expediente, teve de procurar outro táxi mas, agora, faria o trajeto sozinho, sem qualquer segurança. O celular vibrava a todo instante com as mensagens da esposa, que quer estar informada de cada passo que o marido dá enquanto está fora de casa. O medo o acompanhou durante todo o caminho, e só o diminuiu quando Wahid encontrou a esposa, que o esperava à porta. “É um compromisso arriscado”, suspira, “temos alguma outra opção? Não. Os pacientes precisam de nós. Não fui indicado para ser ministro só para os dias bons. As pessoas precisam de mim hoje. Mais que nos dias ensolarados”. Naquela noite o ministro-poeta se deitou com a esposa olhando para o céu. Passaram a madrugada conversando, como se adiassem o sono para não ter que lidar com o dia seguinte. “Não temos qualquer pista do que pode acontecer”, reflete.
*Nome fictício criado para proteger a identidade do entrevistado.