Capacitismo de Estado: governo quer separar crianças com deficiência das demais; pais e educadores são contra

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8 min readOct 1, 2021

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Na contramão do conceito de inclusão, a proposta do governo é vista por especialistas como um retrocesso segregacionista

Por Ana Sophia Sovernigo

Ao chegar na creche pela primeira vez, com um ano de idade, em 2015, Alice Almeida encontrou um mundo onde era igual a todas as outras crianças. Tomava mamadeira, comia papinha e exigia os mesmos cuidados que as demais crianças da escola. No segundo ano de creche, começaram os rumores de que Alice precisaria de uma professora para acompanhá-la, mas isso não era oferecido na creche particular em que estudava em Florianópolis, Santa Catarina, mesmo sendo obrigatório por lei. Caso os pais quisessem mantê-la na creche, precisariam contratar um profissional por conta para acompanhá-la, o que era inviável para a família.

Alice possui paralisia cerebral e, depois de um tempo na creche particular, conseguiu uma vaga em uma creche da rede municipal de Florianópolis. Na nova escola, Alice teve logo de início uma professora auxiliar que ajudava a cuidar das suas necessidades. “Foi uma experiência muito boa. A gente ficou três anos ali, a Alice sempre teve professoras exclusivas, desde o primeiro dia. A assistência para ela era ótima, eram muitas professoras assim em função dela porque acaba que todas se envolvem”, comenta Aline Almeida, mãe de Alice. Ela lembra que no Dia dos Professores comprava cerca de 10 presentes, pois a filha tinha muitos professores que a ajudavam.

No início, a escola possuía uma rampa para cadeirantes que não estava em boas condições, o que logo foi solucionado com a chegada da aluna que necessitava de uma rampa de acesso. “Eles estavam sempre pensando na questão da acessibilidade, da inclusão, de inserir ela nas brincadeiras. Teve um professor de educação física que carregava Alice no colo pra fazer as brincadeiras, então foi uma época bem legal mesmo. Só tivemos um episódio negativo, em um ano em que um novo professor de educação física não dava muita bola para ela”, relembra a mãe.

Apesar do bom começo, a trajetória escolar de Alice não foi fácil. Aos 6 anos ela ingressou no ensino fundamental e a família mudou-se para Palhoça, município na região da Grande Florianópolis. Na nova cidade, a família procurou por escolas particulares para tentar deixar Alice mais um ano na pré-escola, por achar que ela não estava pronta para ingressar no primeiro ano. Na primeira escola visitada, uma escola da rede particular bem conhecida da região, a resposta foi negativa. “Quando eu falei que a minha filha tinha deficiência, a secretária já falou assim: olha a gente não dá professor exclusivo pra ela porque a gente não é obrigado. A gente chegou lá foi assim, meio que quase um pode ir embora, tá? Vocês não são bem-vindas aqui”. Essa é a realidade de muitas crianças e adolescentes com deficiência em idade escolar no Brasil.

Com a resposta negativa, Aline e seu companheiro conversaram com a psicopedagoga da escola que aconselhou-os a não colocar a filha naquela escola e procurar uma escola pública que teria melhores condições de incluir Alice. Depois disso, a família a matriculou na escola municipal CAIC Prof. Febrônio Tancredo Oliveira, em Palhoça, que é uma escola que tem cerca de 37 crianças com deficiência e é referência em inclusão.

Os dados do Censo da Educação Básica, levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), confirmam o relato de Aline. O estudo mostrou que o número de matrículas de crianças e adolescentes com deficiência é muito maior em “classes comuns” / escolas regulares do que em escolas ou classes ditas “especiais”. Isso ocorre nos três níveis de ensino básico: infantil, fundamental e médio. Em 2020, o número de novos alunos com algum tipo de deficiência ao adentrar no ensino infantil nas escolas regulares foi de mais de 102 mil e segue em ascendência desde 2009. Da mesma forma, as matrículas em escolas ou classes especiais na mesma modalidade de ensino e período vem diminuindo, com pouco mais de 7 mil novas matrículas em 2020.

Infográfico: Ana Sophia Sovernigo.

Um Estado a favor da exclusão

Apesar dos grandes avanços da Educação Inclusiva nos últimos anos, em setembro de 2020, o governo federal iniciou o processo de implementação do Decreto 10.502/2020, que traz novas diretrizes para a Política Nacional de Educação Especial (PNEE). A proposta foi suspensa temporariamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para analisar o mérito da questão.

A decisão dos ministros do STF se deu pela polêmica acerca das novas diretrizes, já que a proposta do governo federal é de que as crianças e adolescentes com deficiência sejam realocadas para escolas especiais, separando-os do convívio escolar com os demais alunos. O decreto vai contra o estabelecido na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência — Estatuto da Pessoa com Deficiência –, de 2015, que estabelece que a educação para pessoas com deficiência deve ser inclusiva em todos os níveis de aprendizagem, sendo dever do Estado assegurar esse direito.

Em entrevista ao programa Sem Censura, da TV Brasil, o atual ministro da educação, Milton Ribeiro, declarou que “alunos com deficiência atrapalham o aprendizado dos colegas na sala de aula”.

No dia 29 de agosto, o Ministério da Educação (MEC) publicou uma nota oficial dizendo que “O MEC não nega o direito de todas as pessoas, com deficiência ou não, estarem em escolas regulares, e jamais aceitará que haja retrocesso em relação a essas conquistas, ou que matrículas sejam criminosamente negadas nas escolas comuns”. Mais adiante, a mesma nota afirma que “o MEC não está retrocedendo, pelo contrário, está ampliando os direitos já conquistados: respeitando a legislação, incentivando a flexibilidade aos sistemas educacionais, promovendo a diversidade pedagógica e respeitando a liberdade de escolha, das pessoas com deficiência e de suas famílias, pela escola mais adequada para atender cada educando”.

Além disso, no dia 30 de outubro, os plenários da Câmara e do Senado aprovaram a Lei 2505/2021, conhecida como Reforma da Lei de Improbidade, onde foi revogado um artigo da Lei Brasileira de Inclusão que obrigava gestores públicos a cumprirem a exigência de requisitos de acessibilidade, sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa. Agora, prefeitos e governadores podem executar obras públicas sem o mínimo de acessibilidade, o que pode se refletir inclusive nas escolas, dificultando ainda mais o acesso dos estudantes com deficiência.

Pais e professores afirmam que a proposta da nova PNEE, assim como a Reforma da Lei de Improbidade, representa um retrocesso às políticas de inclusão construídas em nosso país e reforça o discurso do capacitismo. Para Rosemeri Linhares, pedagoga e professora há 40 anos, o decreto da nova PNEE trouxe uma discriminação ainda maior para aqueles que apresentam qualquer grau de deficiência.

“É muito triste que no Brasil, onde já havia avançado um pouquinho, nós tenhamos que regredir a tal ponto de separar essas crianças em escolas especiais”.

Rosemeri defende que os alunos com deficiência devem ter uma educação formal conjunta com os outros alunos, como acontece atualmente, para que possam desenvolver a sociabilidade e interação com crianças da mesma faixa etária, o que não exclui a possibilidade de, no contraturno, frequentarem uma escola dita especial. Apesar disso, reconhece que ainda há várias lacunas a serem preenchidas, como a necessidade de um segundo professor em sala para atender as crianças com deficiência, por exemplo — o que não é uma realidade para todas as escolas e turmas, mesmo havendo concursos públicos para contratação de profissionais da área de educação especial na rede pública de ensino.

Outro ponto que merece atenção é o preparo dos profissionais da educação, que muitas vezes não têm a formação necessária para atuar na educação especial. A professora comenta que é preciso que haja formação continuada para que os profissionais possam pensar em como adaptar o conteúdo para os diversos alunos que irão recebê-lo de diferentes formas dentro do mesmo ambiente escolar.

A professora explica que as crianças, assim como os adultos, aprendem de diferentes maneiras. Utilizando o tripé da educação, que diz que o aluno é auditivo, visual e cinestésico, o professor tem que adequar seu planejamento e estratégias para que seu conteúdo seja assimilado por todos.

Além disso, outra barreira para que a educação seja de fato inclusiva é a aceitação das famílias em relação às crianças que frequentam a escola, pois as diferentes reações podem dar margem a discursos capacitistas. “O olhar das crianças não tem nenhum tipo de preconceito, elas aceitam, elas brincam, elas interagem, elas ajudam e são solidárias. As crianças são muito mais inclusivas que os adultos”, comenta Rosemeri.

Na visão de Aline, mãe de Alice, as crianças precisam de contato com outras crianças com deficiência:

“Elas têm muito essa coisa da inclusão, né? As crianças típicas precisam de crianças com deficiência junto com elas porque elas aprendem muito mais. Eu sempre digo que a inclusão serve muito mais pras outras crianças do que pras próprias crianças com deficiência. Os colegas tinham muito apego com a Alice tanto na creche quanto na escola. Elas querem participar e ajudar. Era até uma briga para ver quem é que ia dar a comidinha pra ela, quem ia empurrar a cadeira, pra quem ia brincar com ela, então é muito legal a participação das outras crianças nesse processo”.

Por conta da pandemia de Covid-19, Alice ficou um ano e meio em casa e irá retornar ao ensino presencial na próxima semana, dia 5 de outubro, com uma nova professora auxiliar, reiniciando a adaptação depois de tanto tempo sem convívio escolar.

Aline acredita que se as escolas especiais tivessem toda uma infraestrutura para cuidar das crianças com deficiência, nos moldes dos Estados Unidos, por exemplo, com psicoterapia, fisioterapia e fonoaudiologia, seria uma boa opção para Alice. Porém, em sua visão, não é isso que o governo brasileiro pretende. “Nos moldes que eu sei que é o que vai acontecer aqui no Brasil, eu discordo totalmente dessas da escola especial. A gente já fez terapia na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE ) de Florianópolis e minha filha ficava jogada, por assim dizer, primeiro porque a gente era obrigado a estar junto, era preciso passar a tarde inteirinha com ela, mas quem é que tem tempo? Na época, em 2015, os brinquedos e materiais eram precários, mas não sei como é que está hoje em dia.”

Aline concorda com a visão dos especialistas da área sobre a nova PNEE. “Não existe opção de crianças com deficiência que são relativamente independentes irem para uma escola especial. Elas precisam estar na escola regular porque negar esse direito para ela seria como negar o direito de uma criança típica. Ninguém pode negar o direito de uma criança estudar. Então, a criança com deficiência também não pode ter esse direito negado”. No caso de Alice, como a família ainda não possui um diagnóstico sobre suas capacidades cognitivas, Aline acredita que uma escola especial poderia ser bem positiva, porém não da forma com que o governo pretende segregar as pessoas com deficiência.

Segregar os alunos com deficiência é uma prática que vai contra a legislação brasileira e, para profissionais como Rosemeri, é isso o que a Nova Política de Educação Especial pretende fazer. Ao lembrar de sua trajetória como educadora, a profissional reforça que “a gente tem que ir para frente, cada vez mais mudar a nossa mentalidade na questão do aprender: como é que eu aprendo? Para que eu aprendo? Onde é que eu uso a aprendizagem que eu tenho? A formação do ser humano tem que ser completa, a escola não pode existir só para formar pessoas que vão apertar botões, mas, sim, pessoas que vão viver em sociedade e que vão ajudar a melhorar cada vez mais e evoluir como seres humanos”.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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