O preço do produto é o mais alto em 26 anos e obriga mudanças alimentares nas mesas dos trabalhadores
“Querido Papai Noel, meu sonho é ganhar uma carne para passar com a minha família”, assina Hector, de sete anos, morador de Arroio Grande, no Rio Grande do Sul. A cartinha foi publicada antes das comemorações de final de ano de 2021, nas redes sociais da mãe, Patrícia Froz de Braz, de 35 anos. Ela revelou em entrevista ao G1 que seu filho é “fã de churrasco”, mas que a última vez que comeu carne assada foi no Natal de 2020, quando a família recebeu uma doação. Em um ano, o preço da carne bovina teve aumento inflacionário de mais de 25%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
A compra do produto está cada vez mais rara não só na família do pequeno Hector, mas em muitos lares do Brasil. As famílias mais afetadas pela crise agravada pela pandemia da Covid-19 estão consumindo ossos, miúdos e pedaços menos nobres de frango por falta de opção, comenta Ivani Muller, sócia do mercado Ideal, de um bairro de classe média em Chapecó, oeste de Santa Catarina. Segundo ela, “o preço da carne, que não para de subir, está reduzindo as vendas drasticamente”.
Segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o consumo de carne vermelha no Brasil é o menor dos últimos 26 anos. O principal motivo é mesmo o aumento do preço. Jaqueline Scandolara Silvério, diretora adjunta da Escola de Educação Básica Municipal Prefeito Reinaldo Weingartner, em Palhoça, conta que ouviu de um aluno: “Não se come mais carne. Lá em casa não tem carne, na escola não tem carne”. Jaqueline confirma que a escola não tem recebido carne bovina, substituída por carne de porco, frango, omelete, ou ovo mexido com legumes.
Cenário de inflação, gera desemprego e fome
Lauro Mattei, pró-reitor e professor de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que o aumento dos preços afeta todas as camadas sociais. No entanto, “os consumidores de baixa renda são sempre muitos afetados, especialmente nos casos quando o aumento inflacionário é puxado por itens que pesam mais no consumo dessas famílias. A situação no momento revela esses aspectos, uma vez que a cesta alimentar, juntamente com os gastos em transportes e energia, são os grupos de produtos que mais estão estimulando a expansão da inflação”, explica o professor.
Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid-19 no Brasil em 2020, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, apenas 44,8% dos domicílios brasileiros dizem ter segurança alimentar. Isso significa que menos da metade das casas conseguem comprar alimentos com a certeza de que não irão faltar no final do mês.
A pesquisa aponta que a perda de emprego e o endividamento da família são as principais causas de redução de compras de alimentos durante a pandemia em 2020. O motorista Eduardo Vieira conta que consumia carne bovina todos os dias da semana, hoje precisou reduzir para no máximo cinco dias, devido à alta dos preços.
O problema ocorreu no país logo após a Reforma Trabalhista, aprovada em 13 de julho de 2017, intensificada pelo atual governo de Jair Bolsonaro, em 2021. O professor Lauro lembra que os “defensores afirmavam que bastava fazê-la para gerar imediatamente três milhões de empregos. No entanto, o que se viu desde então foi que as taxas de desemprego não pararam de crescer, antes mesmo da incidência da pandemia”.
Diante desse cenário, o índice de pessoas com insegurança alimentar grave — em que as pessoas precisam reduzir a quantidade de refeições e não sabem se terão alimentos para o dia seguinte –, atingiu seu ápice: 19,8% da população brasileira, cerca de 42 milhões de cidadãos. Destes, 19 milhões tiveram que conviver com a fome diariamente.
Ainda segundo o Inquérito, outros 43,4 milhões de brasileiros não contavam com alimentos suficientes para atender suas necessidades. O estudo os classifica como tendo insegurança alimentar moderada, isso significa que, apesar de fazer as refeições todos os dias, mudanças precisaram ser feitas. A carne não está presente em todas as refeições e produtos do dia a dia: leite, pão, frutas, etc, foram reduzidos.
Produtos in natura contra ultraprocessados
O impacto direto da falta de consumo de alimentos se reflete no nível nutricional, principalmente das crianças em idade escolar. A nutricionista e doutora em Nutrição, Cristiane Pagliosa, explica que “todo o desequilíbrio leva ao comprometimento da saúde. A falta de um nutriente pode desencadear problemas para o aprendizado, sobre o sistema nervoso central, causar instabilidade emocional, dificuldade para dormir, irritabilidade, indisposição, falta de atenção, desencadear doenças.”
Os problemas são evidenciados nas escolas, onde muitas fazem as principais refeições. A diretora de escola pública, Jaqueline afirma que não é raro situações de crianças com mal estar por falta de alimentação adequada. “A gente foi descobrir que [uma aluna] tinha vindo para a escola sem almoçar. Eram 14h da tarde, ainda não estava na hora do lanche e a criança já estava passando mal”, relata.
Com preços mais altos e inacessíveis, hortifrutis e alimentos frescos são substituídos por produtos industrializados. A nutricionista Cristiane destaca que os embutidos, como salsichas, são as opções mais procuradas pela população carente. E isso impacta diretamente na saúde, por serem alimentos “considerados calorias vazias”, ou seja, que possuem densidade calórica elevada, devido à grande concentração de gorduras e açúcares. A absorção é, por isso, mais rápida, não prolongando a saciedade. Já a concentração dos demais nutrientes — minerais, vitaminas, proteínas e entre outras substâncias como compostos fenólicos, fibras etc. –, é quase insignificante. Cristiane também alerta que esse tipo de alimento pode desencadear obesidade.
As escolas acabam se tornando importantes aliadas para reduzir esse impacto negativo. A diretora Jaqueline acrescenta que “nas sextas-feiras, quando sobram frutas na escola, a gente distribui para os alunos. Alguns perguntam se podem levar para as mães, irmãs etc.” Esses pedidos evidenciam a fragilidade dessas famílias em que uma fruta pode fazer diferença no cardápio em casa. Não é difícil compreender essa atitude olhando dados do IBGE. Os custos mensais com alimentos superam 21%. O quilo da banana aumentou 22% no último ano, por exemplo, além de itens básicos como arroz e açúcar, que tiveram aumento de 39% e 38%, respectivamente. Enquanto é possível encontrar pacotes de biscoitos por menos de R$ 1, a laranja já supera R$ 3 em feiras de Florianópolis, capital de Santa Catarina.