Casa de Apoio de São José já atendeu mais de 100 mil pessoas em sete anos

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10 min readOct 16, 2024

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Instituição fornece estadia gratuita a acompanhantes e pacientes do Hospital Regional, sem financiamento do estado, sobrevivendo através de doações

Sofia de Melo Leal (sofiademeloleal@gmail.com)

Fazer um tratamento de saúde longe de casa pode desencadear estresse emocional pelas longas distâncias percorridas, sentimentos de solidão por saudades da família e insegurança financeira em relação aos possíveis custos durante o tratamento. A regulamentação do Ministério da Saúde (MS) para o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) — encaminhado por médico vinculado ao SUS –, determina que paciente e acompanhante devem receber ajuda de custo para transporte, alimentação e hospedagem, que varia conforme distância percorrida, meio de transporte e tempo de tratamento. Mas nem sempre é garantido.

A realidade dos 158 hóspedes atendidos pela Casa de Apoio São José durante o mês de agosto é um exemplo disso. Vindos de 79 cidades diferentes de Santa Catarina, os pacientes e seus acompanhantes não tiveram acesso a alimentação e hospedagem custeadas pelo estado, e encontraram na Casa de Apoio uma alternativa. Segundo Elisangela Boing (44), professora de psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “as pessoas vêm de outras cidades e às vezes precisam permanecer, mas não estão internadas, ou o acompanhante precisa permanecer e não tem a possibilidade de ficar no hospital. Elas precisam desse recurso, e muitas vezes a única possibilidade de receber é através dessas casas de apoio”, explica.

A Casa de Apoio São José fica a 500 metros do Hospital Regional, e oferece estadia e refeições aos pacientes e acompanhantes que não têm onde se alojar durante o período de internação e tratamento. Silverio Santuches (75) é uma das pessoas que encontrou acolhimento na Casa, por três vezes. Residente de Itá, no Oeste de Santa Catarina, o agricultor sofre de descolamento da retina, e frequentemente precisa viajar grandes distâncias para se tratar. “Pro meu problema da vista, eu peguei uns médicos de Concórdia que disseram que eu tinha que fazer uma cirurgia de urgência. Aí o Itá Saúde me encaminhou para Fraiburgo, e os médicos de lá falaram que não faziam a cirurgia, só em Florianópolis. Quando abriu vaga, eu vim pra cá”. Hoje, Silverio é paciente do Hospital Regional de São José e percorre 500 quilômetros em carros da Prefeitura Municipal de Itá (PMI) para o tratamento, mas não precisa voltar no mesmo dia, permanecendo na Casa de Apoio.

Terreno: Apesar da falta de investimento financeiro da Prefeitura Municipal de São José na Casa de Apoio, o imóvel segue sendo sua propriedade imobiliária em contrato. Foto: Sofia Leal

Para os pacientes, nos processo de tratamento, as noites podem virar meses, por isso a importância da estadia em um espaço como esse. Com oito quartos, lavanderia, cozinha, capela e espaços de integração, a Casa de Apoio já atendeu mais de 100 mil pessoas, encaminhadas pelo Serviço Social do Hospital Regional. Segundo Cleia Abreu de Almeida (51), que foi funcionária administrativa da instituição e missionária, uma das maiores dificuldades é dizer não. “Principalmente porque a gente poderia atender muito mais pessoas. A realidade [da quantidade de pedidos] é muito grande, o que atendemos é trabalho de formiguinha”, pontua. Apesar do limite de espaço físico, negar a estadia para alguém é sempre a última opção. Em outras ocasiões, ao extrapolar o número de treliches disponíveis, a equipe da Casa de Apoio já precisou colocar colchões na capela e em outros cômodos do imóvel na tentativa de não deixar de atender ninguém.

A casa de dois andares recebe, em média, 25 pessoas por dia, tem estrutura para acolher até 50 hóspedes e fornece quatro refeições diárias para todos os usuários. “Na minha vida, eu fui educado voltado para essas questões mais sociais e hoje eu sou muito realizado nesse sentido. Tanto é que eu optei por morar aqui na Casa de Apoio mesmo, porque me realizo assim, no meio das pessoas”, diz Almir José de Ramos (54), capelão do Hospital Regional e administrador da Casa de Apoio desde a sua inauguração, em 2017.

Anteriormente, o imóvel era uma casa de apoio para pessoas em situação de rua, administrado pela Prefeitura Municipal de São José (PMSJ), durante o mandato da ex-prefeita Adeliana Dal Pont (PL). O projeto foi encerrado devido a uma série de problemas, desde a falta de funcionários até a deterioração do espaço por mau uso. A oportunidade de ser transformado em algo novo surgiu com o processo de criação da Casa de Apoio São José, uma empreitada difícil, mas que a motivação em ajudar o próximo se fez presente. “Como eu morava em um apartamento ali próximo do Hospital, eu levava para lá [minha casa] alguns pacientes, só que era um apartamento pequeno, então não dava para levar muita gente. Foi bem espontâneo e eu senti que tinha que responder a essa necessidade”, conta Almir.

Durante essa busca pela ampliação e melhores condições de acolher pacientes em recuperação, o padre passou a procurar casas próximas à região para alugar e dar início ao projeto. “Foi quando eu me dei conta de que aquela casa estava desativada, aí entramos em contato com a Prefeitura e eles cederam o imóvel”, explica. Foi a partir de um contrato de comodato com a Ação Social Arquidiocesana (ASA) que a construção passou a ser a Casa de Apoio para pacientes do Hospital Regional de São José, em 2016. Atualmente, Almir desempenha suas atividades como funcionário público concursado do Hospital na Casa de Apoio. Ele conta que, no processo de reestruturação do espaço, ao conseguir a cessão do local na PMSJ, “na hora eles já disseram que a partir daquele momento eles não teriam mais nada a ver com a casa, então tudo de melhora e reformas eu tive que me virar”.

A falta de apoio financeiro foi generalizada. Institucionalmente, o Hospital Regional, a ASA e a Prefeitura não financiaram as obras avaliadas em R$ 250 mil para a recuperação e as modificações na casa. Apesar disso, o padre reuniu uma equipe pequena de pessoas para ajudar nesse processo, dentre as mais memoráveis, a diretora do Hospital Regional na época, o secretário executivo da ASA, a “Tia Chica”, dona do clube Maré Alta, e os estudantes de engenharia do Instituto de Ensino Superior (IES) da Grande Florianópolis — que fizeram gratuitamente o projeto estrutural da reforma. “No dia 11 de setembro de 2017, foi que os pedreiros entraram aqui e começaram a trabalhar”, lembra Almir, e completa ao relatar que “então começamos [a atuar] no dia 11 e inauguramos no dia 13 de dezembro de 2017. Foi muito rápido. Do jeito que ela estava, era serviço para quase um ano”.

Mas as dificuldades ultrapassam o limite do espaço físico. Atualmente, o maior desafio para a Casa de Apoio, segundo Almir, é obter a verba necessária para a remuneração dos cinco funcionários, que se distribuem entre plantonistas para manutenção de jardim e horta, serviços gerais de zeladoria e limpeza, cozinheiras, administração e o atendimento no Brechó do Padre — fonte de renda alternativa. “A casa hoje se mantém basicamente com doações. Se não tivéssemos [que remunerar] nenhum funcionário a gente conseguiria manter a casa, a parte de alimentação e algumas despesas tranquilamente”. Dentre essas doações, a Casa de Apoio recebe muitas roupas, e assim surgiu o “Brechó do Padre”, uma iniciativa de arrecadação do dinheiro necessário para pagar os trabalhadores. O brechó começou em um dos cômodos do imóvel e à medida que se tornou popular, conquistou espaço próprio em uma sala alugada bem ao lado da Casa de Apoio.

“Como a casa se tornou bastante conhecida como a ‘Casa do Padre’, eu achei por bem colocar o nome ‘Brechó do Padre’ também, para aproveitar a propaganda e vincular com a casa”, conta Almir, entre risadas. Apesar de ser uma solução criativa, a inconsistência de vendas na loja faz com que sejam necessárias outras estratégias de arrecadação de verbas. “Vidro de conserva, plástico, papelão, a gente vende tudo. Eu consigo quase pagar a carne que a gente consome aqui com a venda dos vidros”, afirma o capelão. Uma das alternativas em vigor é uma ação social envolvendo um Fusca — a maior fonte de renda no momento.

Renda alternativa: Localizado na Rua Constâncio Krummel, 950, o Brechó Solidário da Casa de Apoio São José vende roupas, calçados e acessórios novos e seminovos para ajudar no pagamento de salário de seus funcionários. Foto: Sofia Leal

Além de iniciativas independentes, a Casa de Apoio também participa de projetos e editais para o seu sustento. Um deles é o “Sesc Mesa Brasil”, promovido pelo Serviço Social do Comércio (Sesc). Toda quinta-feira, funcionários da Casa de Apoio vão até a Central de Abastecimento do Estado de Santa Catarina (Ceasa), em São José, e pegam frutas e verduras distribuídas pelo programa. A cada semana os alimentos fornecidos são aleatórios e podem não suprir as expectativas e necessidades atuais dos hóspedes. Apesar disso, a equipe busca possibilidades diferentes de aproveitamento, como a produção esporádica de geleias para venda e a criação de uma composteira para a horta. Por meio de editais, a Casa de Apoio já teve cinco projetos aprovados e conseguiu instalar placas de energia solar, ar-condicionado, portas de vidro, novos beliches e treliches e, na segunda semana de setembro de 2024, conseguiu a verba de reforma da despensa para adequá-la aos padrões da Vigilância Sanitária. A maioria dos projetos são inscritos em editais da Central de Penas e Medidas Alternativas de Florianópolis e também do Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil (Sicoob).

Saúde integral

A psicóloga Elisangela Boing chama atenção para a importância de iniciativas como a Casa de Apoio, partindo principalmente do conceito de saúde integral. “A saúde integral deve olhar para o ser humano, para o paciente, com singularidade. Entendendo que ele vem de um contexto, que ele vem com demandas, e que a vida toda dele faz parte do processo de adoecimento e também precisa fazer parte do processo de acompanhamento, de tratamento”, diz Elisangela. Para ela, o período de internação pode ser uma oportunidade de reflexão, ressignificação da vida e melhoria das relações, mas isso só é possível com uma rede de atenção à saúde. “A Casa de Apoio certamente é um grande recurso comunitário, um recurso dessa rede de atenção da saúde. Essas parcerias são fundamentais, é nessa integralidade e nessa conexão do serviço entre as pessoas que se permite uma atenção integral à saúde e a olhar para a pessoa não só no momento em que ela está internada”, explica.

É o caso de Viviane Deitos (46), usuária da Casa de Apoio desde 2019. Ao descobrir um câncer de útero, era inviável para a moradora de Lages fazer viagens de oito horas, três vezes na semana, para realizar seu tratamento no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU-UFSC), na Trindade. “Naquela sexta-feira eu entrei no ônibus e comecei a chorar, aí pesquisei na internet por lugares que eu poderia ficar e encontrei o número do padre Almir. Ele pediu para eu me acalmar e contar a minha história, depois disse para arrumar as minhas coisas e que poderia ir para a Casa de Apoio na segunda-feira”. Três anos após sua chegada, Viviane começou a atuar como voluntária e atualmente trabalha na Casa recebendo uma ajuda de custo. Hoje ela superou o câncer, mas ainda sofre de osteomielite crônica e fibromialgia, condições que causam muito cansaço e dores no corpo.

Mudança de vida: Após sair de sua casa, em Lages, Viviane Deitos desempenha atividades como cozinheira e também contribui com a limpeza da Casa de Apoio. Foto: Sofia Leal

Durante a última visita do paciente Silverio, entre os dias 6 e 8 de setembro de 2024, ele veio com seu irmão Antônio Santuches (64), mas outros familiares do agricultor já o acompanharam e conheceram a Casa de Apoio. “Meu filho já até comprou umas coisas no brechó aqui do lado, umas roupinhas, é muito legal ali”, lembra. Em sua terceira ida a Casa de Apoio, ele já está acostumado com o ritmo do lugar e com os funcionários, mas não deixa de valorizar o serviço prestado com entusiasmo. “A gente aqui se sente em casa, claro que se não precisasse vir pra saúde [tratamentos], seria melhor ficar na casa da gente. Mas assim, aqui é cem por cento para mim”, e completa “o diferencial daqui é porque o atendimento é bom, pessoal tudo gente boa, quem trabalha aqui”.

Além das trocas entre pacientes e usuários da Casa de Apoio, os funcionários são frequentemente afetados por essa convivência. “Tem histórias que me marcam bastante e tem pessoas que acabam vindo aqui na Casa e eu acabo fazendo amizade. A pessoa vai eu fico, mas a gente troca de telefone e tudo, é muito bom”, diz Viviane. Segundo a psicóloga Elisangela, um ambiente acolhedor é essencial para uma boa recuperação e estilo de vida. “Essa identificação, essas semelhanças de vivências, quando num ambiente acolhedor e com possibilidades genuínas de trocas espontâneas e de conversas, tem grande potencial terapêutico e muita promoção de saúde e de prevenção de agravo”, explica.

Cleia, a ex-funcionária da instituição, também foi marcada pelas pessoas que passaram por seu período como missionária lá. Para ela, a situação mais impactante foi a de uma família com um filho que nasceu com microcefalia, uma condição que se caracteriza pela redução da circunferência da cabeça. “O pulmão dele estava sendo perfurado por causa da estrutura óssea, e os pais trouxeram ele muito felizes porque o filho ia se livrar dessa situação”, explica. Cleia conta que se alegrava com a família em cada processo do tratamento e como foi impactante quando descobriu a morte do garoto. “Na noite da cirurgia ele teve uma infecção generalizada e veio a óbito. A mãe e o pai chegaram aqui na manhã seguinte e ela se jogou no chão ali na frente e os dois se abraçaram chorando”. Durante o ocorrido, a missionária prestou apoio emocional para a família.

Cleia acredita que esse suporte é importante principalmente para famílias que vêm de outras cidades e não tem rede de apoio próxima no momento. “A pessoa está sozinha naquele momento, ela está longe de tudo. Nós damos um tempo para a pessoa, se ela precisar ficar aqui por mais dois dias, três dias, não importa”, e completa dizendo que “isso faz uma grande diferença, porque muitas vezes a pessoa pensa que veio aqui para comer, dormir e não é só isso”.

Serviço:

  • Como doar: Você pode fazer doações de alimentos ou recursos para a manutenção da Casa presencialmente ou doar pela chave PIX 48984524901
  • Como se voluntariar: Basta comparecer presencialmente na Casa de Apoio e fazer sua inscrição
  • Website: www.asafloripa.org.br/casa-de-apoio-sao-jose/
  • Contatos: (48) 3224–8776 / (48) 2012–3434/ @casadeapoiosaojose
  • Endereço: Rua Constâncio Krummel, 950 — Praia comprida — São José — SC

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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