Casan despeja esgoto nas dunas da Lagoa para economizar

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16 min readDec 22, 2021

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Pesquisadores atestam que o nível de poluição causado pela deficiência no tratamento de esgoto mata flora e fauna locais; consequências são incalculáveis

21/12/2021 | Por Camila Cunha e Marcela Catelan.

Lagoa da Conceição vista de cima, após o rompimento da barragem da Casan. Acervo: Comissão de atingidos pela barragem da Casan.

“A concentração de nitrogênio e fósforo [na Lagoa] várias vezes ultrapassou os valores estabelecidos na nossa legislação, assim como foram ultrapassados os limites para coliformes fecais, ou seja, eles não estão tratando direito” afirma o PhD em Ciências Biológicas e professor da UFSC, Paulo Antunes Horta Junior. Ele alega ainda que “os laudos [da Casan] mostram que não. [Contudo] Isso fica claro quando chove muito, o volume aumenta, a ineficiência do tratamento fica clara.” O esgoto sem tratamento está sendo despejado há aproximadamente seis meses no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, para evitar outro transbordamento como o que aconteceu em 25 de janeiro de 2021.

No mesmo dia do rompimento, equipes terceirizadas da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) entraram nas casas para retirar os móveis, fazer um inventário e encaminhar objetos para caminhões de lixo. Mais tarde, os moradores teriam que provar quais eram os itens que possuíam, mas nem todos conseguiram — já que seus pertences foram retirados repentinamente. Notas fiscais, documentos, celulares, computadores e outros registros que serviriam de comprovação se perderam. “Para mim foi uma das partes mais difíceis. Tu começa a lembrar de coisas que tinham um valor afetivo enorme. Imagina, fotos de infância eu tive que colocar nos meus bens materiais, mas aquilo não é algo que tem valor [monetário]”, lamenta Thaliny Moraes, professora de Letras e uma das atingidas pela barragem.

Objetos afetivos danificados pelo rompimento da barragem da Casan. Acervo: Comissão de Atingidos pela Barragem da Casan.

“Denunciaram antes de acontecer, eles chamaram a Casan e vieram técnicos, disseram que não era nada e que estava tudo sob controle, na quinta-feira antes do rompimento” relata Andréa Vieira Zanella, que é professora de psicologia aposentada pela UFSC e uma das atingidas pela barragem.

Mensagens de morador para oficial da Casan que visitou o local dias antes do rompimento e recebeu aviso do aumento do vazamento.

A lagoa de evapoinfiltração, presente nas Dunas da Lagoa da Conceição, rompeu por não ter sido planejada para comportar uma quantidade de chuva como a daquele período. O transbordamento prejudicou diretamente cerca de 140 pessoas, entre proprietários de imóveis e inquilinos, de 79 unidades habitacionais — deixando sete edificações impossibilitadas para moradia –, além de 10 animais domésticos mortos ou perdidos. Esses dados foram compilados pela Comissão de Atingidos pela Barragem da Casan, que se reúne desde janeiro reivindicando seus direitos após o incidente.

O Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição é uma reserva ambiental que está nessa situação devido a medida de caráter emergencial da Casan, para evitar que aconteça novo rompimento de barragem. “Eles [a Casan] dizem que outras alternativas são economicamente inviáveis. Então, a justificativa é de que a solução é economicamente viável, só que não necessariamente ambientalmente correta, nem socialmente justa”, afirma Michele Dechoum, professora do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Michele começou a visitar o local no final de junho de 2021, quando teve conhecimento da situação do Parque, junto a uma equipe de pesquisadores da Universidade que se mobilizou para verificar o que estava acontecendo de fato. A partir das inspeções foram formulados relatórios sobre a situação da água, das plantas e outros elementos da área. A professora explica que as plantas nativas foram soterradas ou morreram pelo excesso de nutrientes que vêm do efluente sanitário, pois estão adaptadas ao terreno de areia — que é pouco nutritivo. Michele enfatiza que a situação está piorando muito. ”As plantas que estão substituindo as nativas são características de áreas degradadas. Aquilo ali é realmente um espaço poluído deixando de ser conservado.”

Caso de vida ou morte

O processo de tratamento do esgoto sanitário ocorre em três níveis de separação: no primeiro há a remoção de sólidos como graxa e óleos, no segundo a extração de matéria orgânica e nutrientes como nitrogênio e fósforo e o terceiro a retirada dos poluentes que não foram removidos no tratamento secundário. A lagoa de evapoinfiltração faz parte de uma estação de tratamento onde o esgoto doméstico da região é depositado depois da segunda etapa do processo de retirada de resíduos.

O acúmulo de fósforo e nitrogênio ocasiona o processo de eutrofização artificial que tem como resultado a floração de algas e desenvolvimento de espécies tóxicas de algas, além da diminuição de oxigênio na água e, como consequência, a morte de vegetais nativos e animais aquáticos.

Paulo Horta é um dos pesquisadores da área que está sendo poluída e analisa os impactos desse despejo de efluentes no Parque das Dunas. Segundo ele, há ainda a possibilidade de eventos como esse acontecerem novamente, mesmo com o bombeamento de efluentes no Parque para evitar o transbordamento da lagoa da Casan. Com o verão se aproximando, o aumento da temperatura e a maior quantidade de pessoas na Ilha, automaticamente a quantidade de esgoto vai aumentar provocando uma carga maior de nitrogênio e fósforo, complicando ainda mais o tratamento.

“O que se está fazendo agora é um crime ambiental. Existem tantas outras soluções, como, por exemplo, bombear o efluente de volta para a estação de tratamento através de caminhões pipa. Enfim, tem muitas alternativas, mas são mais caras.” O professor Paulo Horta reafirma o que Michele também constatou: a Casan escolheu a “forma mais barata que produz um dano incalculável ao Parque. Isso não deveria ter acontecido, mas, infelizmente, aconteceu, agora tem que reparar o dano. Alguém vai ter que pagar o prejuízo”, argumenta.

Economia e males

Medida emergencial de contenção com sacos de areia na lagoa de evapoinfiltração, após o rompimento da barragem. Acervo: Comissão de atingidos pela barragem da Casan.

Engenheiro agrônomo, vereador e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista dos Vereadores do Brasil, Marquito (PSOL) tem acompanhando de perto a situação do Parque Natural das Dunas da Lagoa da Conceição e das famílias que foram atingidas pelo rompimento da barragem. Ele diz que junto à sua equipe já havia um olhar crítico a respeito destes equipamentos instalados na unidade de conservação. “É controverso o que eles têm feito. Pois, com anuência do órgão ambiental municipal, eles têm feito intervenções que são de alto impacto e tratado como se fosse de baixo impacto ou de ‘interesse público’. E essa é a grande questão”.

O vereador e engenheiro agrônomo afirma que há falta de estudos de impacto aprofundados sobre as consequências que podem surgir a partir destas intervenções na natureza, sem esquecer também da desconsideração da importância que uma unidade de conservação tem.

Paulo Horta afirma que muito antes de isso acontecer, já era previsto um perigo de desastre. E para tentar evitar isso, foram feitas diversas reuniões com a Casan e até mesmo discussões públicas na Câmara de Vereadores “Nós ‘quebramos a cabeça’ tentando fazer as coisas junto com a Casan e a Floram [Fundação Municipal do Meio Ambiente], com todo mundo. Mandamos planos de trabalho, projetos, com tudo direitinho, orçamentos. A UFSC mandou mais de 30 propostas de projetos de pesquisa. Eles estão ‘cozinhando a gente que nem galinha velha’ até hoje. Nem um projeto desse, que eu tenha conhecimento, saiu do papel e está produzindo por exemplo a recuperação da Lagoa ou das áreas de duna que foram destruídas.”

Esses projetos foram formulados a partir de uma “encomenda” da Casan para as pró-reitorias de Pesquisa (Propesq), de Extensão (Proex), de Graduação (Prograd) e de Pós-graduação (PROPG) da UFSC. Os pesquisadores formularam um relatório de propostas passíveis de serem empregadas na Bacia Hidrográfica da Lagoa da Conceição. O plano abrange cinco eixos, sendo: (1) governança; (2) caracterização e diagnóstico; (3) monitoramento; (4) remediação, mitigação e restauração; e, (5) comunicação.

O projeto foi protocolado em abril deste ano e enviado à Casan por meio do professor Sebastião Roberto Soares, pró-reitor de pesquisa da UFSC. Ao todo, o relatório contou com 34 propostas, entre elas, a gestão compartilhada e horizontal da Lagoa da Conceição. Haveria assim a participação ativa da comunidade local, pesquisadores e gestores ambientais e municipais, a avaliação e proposições para otimização do tratamento de efluentes e remoção com mais eficiência da matéria com carbono, dos nutrientes e dos elementos sólidos, o diagnóstico molecular de florações de algas e suas toxinas, além da modelagem de um novo sistema de saneamento básico.

Após o rompimento da barragem, o professor e os participantes do projeto Ecoando Sustentabilidade da UFSC foram até a área poluída desenvolver atividades de restauração, por meio do plantio de Spartina, que é um capim-marinho. “O pessoal da Floram e Casan foi lá e capinou tudo.” conta o professor.

A Casan alega que o sistema emergencial de bombeamento foi instalado para garantir a segurança dos moradores afetados pelo rompimento da barragem e para a continuidade da operação de esgotamento sanitário na Lagoa da Conceição. A equipe de Superintendência e Gerência de Meio Ambiente da Casan explica que o sistema, que é acionado em caso de chuvas excessivas, foi aprovado pelo órgão ambiental de Florianópolis e faz o lançamento em uma área capaz de infiltrar o efluente tratado. Segundo eles, esse esgoto já passou por todas as etapas de depuração e atende aos parâmetros estabelecidos na legislação vigente.

Começo de um suplício

Moradora atingida pela barragem da Casan em janeiro. Acervo: Comissão de atingidos pela barragem da Casan.

Os moradores da servidão Manoel Luiz Duarte, uma das vias transversais da avenida das Rendeiras, na Lagoa da Conceição, acordaram em meio ao caos no dia 25 de janeiro deste ano. Aproximadamente às cinco horas da manhã eles acordaram com suas casas sendo invadidas pelo esgoto da lagoa de evapoinfiltração.

Thaliny Moraes, conta que não estava em sua casa no dia, mas os seus pais sim. De manhã cedo ela ouviu sua tia em uma ligação e então se dirigiram para a Lagoa. A única informação que as duas tinham é que havia ocorrido uma enchente muito grande, que tinha atingido todas as casas. “Eu sabia que em relação a Lagoa só podia ser sobre meus pais.” A professora relata que a água invadiu o quarto do casal, seu pai foi arrastado até o fim do quintal e jogado contra o muro. Mesmo assim, ele conseguiu voltar para resgatar a esposa que não sabia nadar. Nesse momento, a cama já estava flutuando com ela se equilibrando em cima junto com o cachorro de Thaliny. Eles conseguiram subir em um canteiro no quintal e jogar uma caixa para o outro lado do muro, no sentido das dunas, pularam e foram em direção ao posto policial mais próximo do local para avisar o ocorrido.

A jovem lembra de sua reação quando retornaram ao local ainda no dia do rompimento e viram a água tomando toda a rua: “Eu sofria aquela angústia de não saber dos vizinhos e de ver as coisas das casas todas destruídas também, né?”. Thaliny diz que o primeiro contato com a Casan foi ainda no dia 25, por meio dos funcionários terceirizados que foram ao local fazer a limpeza das casas e da rua.

Devido a exigência de um inventário, os moradores enfrentaram dificuldades no acesso às suas residências. Devido a quantidade de sedimentos tóxicos e de água, era preciso roupas adequadas e botas, que foram disponibilizadas apenas para os funcionários. Os moradores deveriam fazer uma lista dos pertences, mas não conseguiam acessar a casa pela falta de equipamentos de proteção individual (EPIs). Thaliny fala que precisaram insistir para conseguir itens básicos, pois tiveram que “brigar” para que trouxessem botas, filtro solar e tudo mais, mas teve muita coisa. E especialmente os equipamentos de proteção “Eu percebi que foi muito da doação de voluntários, os equipamentos e as primeiras alimentações que a gente teve.”.

“Eles jogaram lama na nossa casa, com patógenos e metais pesados, a própria pesquisa feita pelo pessoal do projeto Ecoando [Sustentabilidade da] UFSC mostra isso”, afirma Andréa. Ela relata que a nota técnica divulgada pelos pesquisadores, no dia 25 de janeiro deste ano, mostrou que os efluentes derivados do tratamento do esgoto doméstico apresentaram elevada concentração de nitrogênio e fósforo, além de componentes nocivos como metais pesados, fármacos, microplásticos e patógenos.

Paulo Horta explica que o efluente que foi despejado é tratado, mas analisando os laudos disponibilizados pela Casan, há uma quantidade de vírus que ultrapassa o recomendado pela legislação mundial “Essa questão dos vírus não está na legislação brasileira, infelizmente. Mas a nossa legislação está ultrapassada e aí eles ficam se ‘amarrando’ nessa desculpa”.

Para Thaliny, a pandemia foi um fator de peso que complicou ainda mais a situação. No começo do ano, houve um pico de contaminação pela Covid-19 e, com o rompimento, todos os itens de proteção haviam sido perdidos. Andréa reforça que passar por isso durante a pandemia foi muito difícil e que grande parte dos funcionários contratados para fazer a limpeza logo após o desastre não estavam usando a máscara — um dos principais equipamentos de proteção contra o vírus. “A Casan não trouxe uma máscara pra gente, eles encheram cem trabalhadores aqui sem uma máscara e a gente em plena pandemia. Ou seja, além de todo o risco eles botaram a gente em mais um.”.

Edital pega ratão

Três dias depois do transbordamento foi lançado o primeiro edital para os atingidos. A equipe da Casan declarou que os editais para ressarcir os danos foram feitos com acompanhamento dos moradores, junto de profissionais que orientaram o que fazer e qual era a documentação exigida. “Todos os procedimentos foram executados buscando o bem-estar das famílias atingidas e a legalidade que precisa ser cumprida por uma empresa pública, que deve prestar contas a órgãos como Tribunal de Contas do Estado quanto a seus procedimentos.”

Andréa afirma que este edital era uma tentativa da Casan de apagar rapidamente o dano causado às famílias: “Parecia que eles queriam limpar a sujeira deles e pagar todo mundo, quieto, pronto e vida que segue. Eles jogaram todas as coisas das pessoas fora, literalmente, botaram na caçamba e mandaram embora e depois lançaram esse edital.”.

Uma das casas da servidão Manoel Luiz Duarte inundada por lama com patógenos e metais pesados. Acervo: Comissão de atingidos pela barragem da Casan.

Em relação aos danos materiais, para o ressarcimento dos itens extraviados foram utilizados os inventários feitos pelos funcionários da Casan no dia do desastre e o dos moradores, por meio de fotos, vídeos e notas fiscais. Thaliny tinha o costume de fazer vídeos pela casa e registrar no Instagram, que acabou servindo como banco de dados para comprovar seus itens de casa. Mas outras pessoas perderam absolutamente tudo, já que havia gente que não possuía celular ou publicações em redes sociais antes do desastre, então não tinha esse tipo de arquivo.

“Foi um tratamento muito violento. E baseado na perspectiva que eles [a Casan] tinham, então nós tivemos o ônus de comprovar que a gente tinha aqueles bens, mas muitas pessoas não tinham como comprovar, porque ninguém fotografa o que tem em casa e nem se lembra exatamente do que tem em casa.” Andréa fala também sobre a dificuldade em recuperar o que foi perdido e como foi requisitada a comprovação dos itens pela Casan. Para a professora de Psicologia, o processo foi extremamente injusto.

O advogado popular e coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Rodrigo Timm Seferin, tem acompanhado as famílias atingidas pela barragem da Casan desde janeiro. O MAB auxilia os moradores por meio de assembléias, reuniões e representação jurídica, reivindicando os direitos das pessoas atingidas.

O rompimento aconteceu numa segunda-feira (25) e na quinta-feira (28) a Casan lançou o primeiro edital, que ditava os critérios e parâmetros de indenização de bens materiais. Rodrigo Timm acredita que a proposta era injusta já que “esse edital era muito problemático, tinha vários problemas. Ele colocava ali um ‘pega ratão’ aos moradores sugerindo que eles teriam acesso a um adiantamento de R$ 10 mil, que seria descontado da indenização final”. Alguns dos moradores aceitaram as primeiras propostas de ressarcimento da Casan e acabaram prejudicados depois.

O MAB esteve auxiliando diversas famílias e uma das conquistas foi retirar do edital o termo de quitação para danos morais, pois “a Casan queria tratar de danos materiais, mas no termo de quitação constava danos morais, aquilo era um absurdo!”. A partir do momento que a pessoa assinasse o contrato, não apenas os materiais seriam quitados, mas junto os morais, patrimoniais, entre outros.

“A Casan também se utilizou dizendo que aquele bombeamento era em benefício dos moradores, então eles tinham que concordar com aquilo, quando na verdade se tornou uma medida necessária diante da desorganização geral [dos órgãos competentes]”, aponta Rodrigo sobre a situação do bombeamento de efluentes para o Parque Natural Municipal da Lagoa da Conceição, da perspectiva dos afetados da servidão Manoel Luiz Duarte. O advogado também conta que nos períodos de chuva os residentes no local seguem tendo traumas, com medo que a barragem volte a romper.

As consequências derivadas desse desastre foram muitas, afetando também a saúde mental dos atingidos. Thaliny conta que no dia do acontecimento a Casan disponibilizou um psicólogo da companhia, mas ninguém se sentia seguro para conversar com ele. Somente depois de sete meses foi estabelecido um serviço de psicologia aos atingidos. Nesse meio tempo, muitas pessoas já haviam ‘incorporado’ os traumas e até mesmo desenvolvido problemas graves de saúde derivados do estresse. Alguns dos casos relatados pela Comissão dos Atingidos pela Barragem são infartos, acidente vascular cerebral de uma pessoa que já enfrentava um câncer, doenças psiquiátricas, dermatológicas e psicológicas.

“A Casan foi lançar um edital para atendimento psicológico em agosto, sete meses depois. Isso é imperdoável.” Andréa falou sobre a batalha dos moradores para lidar com todas as perdas que foram impostas. A alimentação também foi um problema, segundo Thaliny e Andréa, pois só depois de uma semana a Casan começou a fornecer alimentação. Enquanto isso, a maior parte do que comeram foi fruto de doações da comunidade, dos restaurantes e de instituições como a Defensoria Pública do Estado e o Exército.

Há aproximadamente um mês, a Companhia encerrou o edital de danos morais, causando, mais uma vez, a revolta dos atingidos. “Baixíssimo, baixíssimo, um valor que não paga nem o que eu tô pagando de terapia pra minha filha, não paga nem o que a gente tá pagando na medicação, sabe? Não paga nem o que a gente paga em um mês de medicação para lidar com o próprio trauma.” Andréa fala indignada sobre o resultado do edital de danos morais, que estabelece um valor máximo de R$ 3 mil reais por pessoa pelos prejuízos causados.

Poluição da Lagoa da Conceição

Pescador tarrafeando na Lagoa da Conceição com água coberta por espuma, formada pelos efluentes da barragem. Acervo: Monitora Lagoa.

Moradores da Lagoa da Conceição também têm sentido os efeitos do rompimento da barragem. Um deles foi a morte em abundância de peixes e outros animais aquáticos em 25 de fevereiro deste ano, um acontecimento marcante para os habitantes da região. Nando Pereira, morador da Costa da Lagoa, é integrante da ONG Costa Legal, que desde 2017 participa de ações relacionadas à zoneamento territorial da Costa da Lagoa, assistência para pessoas em necessidade socioeconômica, projetos ambientais, entre outros.

Nando, que participa da ONG desde março de 2021, conta que a partir da situação de mortalidade dos peixes, moradores da Costa se organizaram para entender o que estava acontecendo e o que podia ser feito. Nessa busca de informações conheceram o professor e pesquisador Paulo Horta, do projeto Ecoando Sustentabilidade e desde então têm sido parceiros nesta causa.

Mas antes desse acontecimento, a Associação de Moradores da Costa da Lagoa já tinha um canal de comunicação com a Casan por suspeitarem que havia um vazamento em uma tubulação de esgoto na região. Segundo Nando, a Casan se comprometeu a fazer uma visita técnica no local no dia 23 de fevereiro, dois dias antes do aparecimento dos animais mortos. “Até hoje a Casan não fez essa verificação e nos deixou também esperando, não respondeu nossos questionamentos.” Os integrantes da ONG já tentaram contato com a Casan diversas vezes, relata Nando, mas até ter algum resultado efetivo — o que não houve — , a comunidade desenvolve atividades internas de preservação do meio ambiente.

Na região da Costa da Lagoa há forte tradição da pesca.Os moradores que se ocupam da atividade pesqueira acompanharam a situação desde o início. Nando que mantém contato com esses trabalhadores dá conta de relatos da perda de até três toneladas de peixes. Depois do ocorrido, a Floram e Instituto do Meio Ambiente (IMA) recomendaram que fosse evitado o contato com a água do local para banho, atividades de lazer, pesca e consumo até que as condições voltassem ao normal.

Nando conta que alguns, pela necessidade, continuaram a pescar por subsistência — para consumo próprio ou para venda –, mesmo sabendo da poluição. Eventos como a mortandade de peixes na região da Lagoa da Conceição ocorreram antes, mas não nesta dimensão, alega ele. “No começo ficou uma situação de muita insegurança, eles não sabiam o que viria depois”. Somente após 40 dias os órgãos ambientais notificaram que era possível retomar as atividades.

Paulo afirma que os peixes da Lagoa da Conceição já estão contaminados com metais pesados, implicando em consequências para as pessoas que dependem deles, já que “muitas doenças podem vir a surgir na população que depende da lagoa, especialmente as que têm o pescado como fonte de proteína. Além desse sofrimento há a somatória da falta de qualidade ou da insegurança que representa esse alimento.”.

A nota técnica apresentada projeto Ecoando Sustentabilidade em fevereiro, afirma que a mortandade dos peixes estava relacionada ao rompimento que ocorreu em janeiro e que o evento “está relacionado com um cenário complexo que envolve inclusive o deságue de efluentes da lagoa de evapoinfiltração da ETE-Casan [Estação de Tratamento de Esgoto da Casan], ocorrido no dia 25 de janeiro de 2021”.

Também é explicada na nota a causa da morte dos peixes dizendo que “este evento somado a um conjunto de outros fatores observados ao longo do período consecutivo levaram ao processo de intensificação da eutrofização e ampliação das áreas de baixas concentrações de oxigênio para a região norte da Lagoa”.

Ação civil pela Lagoa

Uma ação civil pública liderada pelo Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco (GPDA/UFSC) com co-autoria da ONG Costa Legal, foi movida na justiça para implementar um sistema de governança socioecológica de controle, fiscalização, gestão e proteção da Lagoa da Conceição.

Essa ação civil pública foi deferida em junho pelo juiz Marcelo Krás Borges, da 6ª Vara Federal de Florianópolis, que decidiu instituir a Câmara Judicial de Proteção da Lagoa da Conceição, com o objetivo de garantir a integridade ecológica do local. O sistema seria formado por uma Câmara integrada por 15 representantes de órgãos públicos, da comunidade acadêmica, além dos autores da ação civil. Na ação, é utilizado como fundamento legal o artigo 133, da Lei Orgânica do Município de Florianópolis, que trata da natureza como sujeito de direito.

No entanto, esta Comissão ainda não está em ação. Segundo Paulo Horta, atualmente há a espera de uma decisão do juiz. O projeto da formação deste grupo de trabalho seguiu para segunda instância e foi dado ganho de causa para o GPDA e a Lagoa e seus direitos foram reconhecidos. “Nega-se que existe um problema e portanto nega-se a culpa. Estamos tratando de saúde pública, ambiental e bem-comum. Portanto, a prefeitura [de Florianópolis] e a Casan são lesadas”, opina o pesquisador quanto às ações do Poder Público.

Para ele há chances de recuperação do ambiente degradado, mas é necessário força política, engajamento, investimento e parar de atrapalhar a natureza. “As Dunas podem se recuperar e a Lagoa também, mas vai precisar de intervenção humana, ou pelo menos ‘sair da frente’ e deixar que a natureza se recupere.” Para Paulo, a única forma de solucionar esse problema é “trazer” as instituições para dentro do problema e construir soluções em conjunto, antes de que seja tarde demais.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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