Colégio de Aplicação enfrenta pressões por fim do ensino remoto emergencial

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12 min readJul 27, 2021

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Grupo de pais, políticos e imprensa defendem retorno presencial, ignorando a vacinação incompleta de professores e técnicos, verbas escassas e vínculo com a UFSC. Dos 16 Colégios de Aplicação do Brasil, nenhum voltou às atividades presenciais. Retorno ao semipresencial depende de avaliação de comitê científico da universidade

Reportagem por: Vinicius Claudio

Fachada do Colégio de Aplicação da UFSC, fechado para atividades presenciais desde março de 2020 | Foto: Vinicius Claudio

Quase um ano e meio após a suspensão das aulas presenciais em função da pandemia da Covid-19, professores e técnicos do Colégio de Aplicação (CA) e do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da UFSC enfrentam agora pressão de alguns pais, da imprensa e até do poder legislativo para que abram suas portas novamente.

A vacinação dos profissionais da educação começou em Florianópolis na última semana de maio. Na ocasião, as doses da Astrazeneca — que demandam três meses entre a primeira e segunda aplicação — eram o principal lote disponível. Dessa forma, o ciclo vacinal dos docentes e técnicos deve estar completo apenas em meados de agosto.

Além disso, a pandemia no município é classificada atualmente pela Secretaria Municipal de Saúde sob alerta de risco potencial grave. Com isso em vista, a última portaria da UFSC sobre o tema prorrogou, até 2 de outubro de 2021, a suspensão das atividades presenciais de ensino em todos os níveis e em todas as unidades da instituição.

A instituição de ensino abriga um dos 16 Colégios de Aplicação (CAs) vinculados a universidades federais no Brasil e submetidos às suas normativas. Todos esses CAs seguem com o ensino remoto emergencial, de acordo com um levantamento do Conselho de Dirigentes das Escolas Básicas das Instituições Federais de Ensino Superior (CONDICAp). Com essa modalidade, os alunos não ficaram sem atividades nem atendimento pedagógico e os professores e técnicos, segundo relatam, para adequar tudo, chegam a acumular mais horas de trabalho do que no método presencial.

A realidade dessas instituições ligadas à rede federal as distinguem das redes estadual, municipal e das escolas privadas. Os colégios de aplicação são, também, um espaço dentro das universidades para formação de professores, realização de estágios, desenvolvimento de pesquisas e projetos de extensão. Porém, a comparação com as outras escolas tem provocado críticas, pressões e ataques nas redes sociais, em que se cobra o retorno presencial nas duas escolas da UFSC.

Em Florianópolis, colégios privados voltaram a funcionar de forma presencial ou híbrida desde 1º de fevereiro e a rede estadual desde 18 de fevereiro. Na rede municipal, as aulas estavam previstas para retornar em 24 de março, mas voltaram apenas no fim de maio, após 67 dias de greve dos trabalhadores. Os profissionais de educação cobravam vacinação, equipamentos de segurança e condições sanitárias para trabalhar.

Contudo, segundo pesquisadores vinculados à Rede de Pesquisa Solidária, que analisaram políticas de estados, municípios e do governo federal em 2021, os protocolos sanitários utilizados na reabertura das escolas no Brasil não foram suficientes para garantir a segurança de alunos e trabalhadores, o que representa riscos à saúde pública.

Pais se manifestam

Um perfil criado nas redes sociais e atribuído a um grupo de pais com filhos matriculados no Colégio de Aplicação tem manifestado publicamente a insatisfação com a decisão da UFSC. Nas postagens, o perfil se dirige a “genocidas da educação” e pede para que “não usem nossos filhos como escudo político”. São marcados nas publicações veículos de imprensa e perfis de políticos, de deputados estaduais do PSL e Novo, tradicionalmente favoráveis à retomada de todas as atividades de ensino. O grupo também repercute entrevistas concedidas à mídia local e compartilha preocupações com a saúde mental dos filhos. Além do perfil nas redes sociais, uma petição online contra a decisão da UFSC soma cerca de 240 assinaturas e defende “o retorno das aulas presenciais ao menos no sistema híbrido, com protocolo de segurança e dando direito às famílias que ainda não se sentem seguras de que seus filhos permaneçam no EAD, se assim preferirem”.

O diretor do colégio, Edson Azevedo, afirma que recebeu a petição. No documento, Edson conta que parte das assinaturas era de fora da região de Florianópolis, onde a escola não possui alunos matriculados. “Tomei como base que aquela petição continha, também, pessoas que não eram os responsáveis legais pelos nossos estudantes”. De acordo com o diretor, em seguida lhe foi entregue, por uma mãe, uma planilha com pouco mais de 50 nomes — entre pais, mães e estudantes. O Colégio de Aplicação possui 998 alunos matriculados.

Professor de Língua Portuguesa e Literatura há 10 anos no Colégio de Aplicação da UFSC, George França ressalta o esforço da equipe para viabilizar as aulas e atividades remotas e destaca que as transições entre as diferentes modalidades de ensino não são tão simples quanto podem parecer. “Nesse tempo, a gente teve que estruturar e colocar um sistema em pé, fazer esse sistema funcionar, trabalhar e agora temos que nos preparar para outro. Isso demanda tempo, estudo e discussão”, argumenta o docente.

Mãe de duas filhas em idade escolar e também professora, Ana Carina Baron enxerga as várias faces da situação. “Eu compreendo a aflição e a demanda das famílias que veem os filhos sofrerem, adoecerem e não terem a infância que a gente tanto preza. Entendo perfeitamente porque vivo isso dentro da minha casa”, diz a docente que leciona no Colégio de Aplicação desde 2018. Com o marido também em home office, ela conta que a logística familiar permite conciliar o cuidado da casa, das crianças e do trabalho. “Não é um arranjo perfeito, está longe de ser o ideal. E também causa seus sofrimentos. Mas para nós é muito claro que isso não tem relação com o fato das escolas não estarem abertas. Isso tem a ver com o fato de estarmos em uma pandemia mal gerida”, enfatiza.

Impasses financeiros

Para esclarecer o que está sendo feito e quais as condições de retorno, o Colégio de Aplicação realizou uma reunião aberta com as famílias no fim do mês de junho. No encontro, o diretor Edson Azevedo abordou outro tema que desafia a volta ao presencial: as finanças da escola.

Em 2021, a verba do colégio por estudante é de R$ 629,91 ao ano. Uma redução de 33% em relação a 2020. Abrir a escola requer, neste momento, uma série de investimentos. Entre eles, estão reparos e manutenção dos prédios, aquisição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e contratação de 60 estagiários para atendimento dos estudantes. O próprio ensino remoto trouxe gastos específicos. Além da impressão e envio de materiais de apoio, em 2020 foram concedidas 40 bolsas de auxílio internet para alunos em situação de vulnerabilidade. Em 2021, são 76 estudantes que têm acesso ao benefício. A medida tenta evitar a evasão escolar, grave consequência do período de escolas fechadas no Brasil.

Na reunião com os pais, Edson também reforçou a importância de que todos os profissionais estejam com o ciclo de imunização completo. Um levantamento feito com os 112 professores e os 48 técnicos-administrativos constatou que 27% deles possuem alguma comorbidade. O mesmo levantamento ainda deve ser feito com as famílias.

Ao final da exposição, a maioria das manifestações por parte dos pais e mães era de apoio aos profissionais do CA. “Creio que nossos esforços seriam melhor direcionados na luta pela redução do contágio da doença, cobrando ações mais enérgicas e mais verbas para garantir a segurança do retorno. Nossa luta deveria ser por vacinas para todos e assim tudo começaria a voltar ao normal”, disse um dos pais no relato que encerrou a reunião.

O que diz o comitê científico

Elaborado por uma comissão que envolve famílias, professores e técnicos, o Plano de Contingência do Aplicação prevê as ações necessárias para que, até o dia 2 de outubro, a modalidade semipresencial esteja devidamente preparada e possa ocorrer. A data marca o prazo final da portaria que suspende as atividades presenciais, mas o retorno ainda não é garantido.

Tudo depende da fase em que a pandemia da Covid-19 estará. Os critérios para o retorno das atividades presenciais na instituição foram desenhados por um subcomitê científico composto por pesquisadores e especialistas de diversas áreas — entre eles epidemiologistas e imunologistas. As atividades estão organizadas em três fases, que podem ser reversíveis de acordo com determinados indicadores epidemiológicos.

Atualmente, a UFSC se encontra entre a primeira e a segunda fase. Nesse cenário, o retorno híbrido já está sendo planejado e as tarefas de organização essenciais, como visitas aos centros, são permitidas. A fase 2, quando as atividades semipresenciais poderão ocorrer, é caracterizada pelo comitê científico como o “cenário em que o número de novos casos diários e óbitos na macrorregião de cada campus apresenta decréscimo nas duas semanas anteriores, com a ocupação de leitos de UTI no SUS inferior a 60%”.

Para estruturar o retorno no CA, um formulário elaborado pela escola já circula entre as famílias dos estudantes para identificar a intenção de adesão ao ensino híbrido.

Atividades pedagógicas pensadas com as famílias

Para reduzir as perdas na aprendizagem em uma situação excepcional como o ensino remoto emergencial, é preciso dedicação constante de todas as partes envolvidas. Por isso, o CA e seus professores vêm se utilizando de aulas síncronas e assíncronas, grupos de estudo de reforço, acompanhamento psicológico, adequação dos profissionais e alunos às plataformas virtuais.

No Núcleo de Desenvolvimento Infantil também foi necessário que a comunidade escolar se reunisse para estruturar um calendário equivalente ao que é o ensino remoto nas demais etapas da educação básica. A unidade atende 212 crianças na faixa etária dos 3 meses aos 6 anos de idade. O termo equivalente , como ressalta a diretora da escola, Juliane La Banca, se explica porque a exposição às telas não é recomendada e não há previsão legal na educação infantil para se aplicar o ensino remoto, nem emergencialmente, por conta das características específicas dessa faixa etária. “Desde então, o que tem sido feito são atividades de aproximação virtual que são pensadas junto com as famílias de cada grupo de crianças”, explica Juliane. Para a pedagoga Paula Moreira Dias, mãe de alunas do NDI, as voltas ao parque passaram a ter outro sentido depois dessas atividades, além de escapar por alguns instantes do isolamento social: ela agora se dedica a mostrar pássaros e seus ninhos para as filhas Carolina, de cinco anos, e Beatriz, de dois anos. As aves foram a temática de uma das tarefas facultativas propostas pela escola para manter contato com as crianças.

A formação em pedagogia e o tempo relativamente livre auxiliaram Paula na mediação desse processo. Ela e o marido estão trabalhando em casa e alternando as demandas para dar atenção às filhas. “Toda a situação que a gente está vivendo favorece muito essa ponte. O que talvez não aconteça com outras famílias que não têm esse suporte nem as mesmas condições”, pondera.

Com a suspensão das aulas presenciais, Paula participou de uma comissão de comunicação e acolhimento das famílias do NDI — uma das cinco criadas em maio de 2020 para organizar o período longe da escola. Paula conta que entrou para a comissão para ajudar a preencher um vazio deixado pelos primeiros meses de suspensão. A ideia era retomar um vínculo que estava se perdendo. A filha mais velha já não lembrava quem eram seus colegas ou a professora da turma.

Algumas particularidades da educação infantil ainda reforçam as preocupações diante da ameaça de uma doença infecciosa como a Covid-19. Demonstrações de afeto com base no toque, abraços e compartilhamento de objetos são alguns exemplos do cotidiano pedagógico que permeia os anos iniciais.

Alesc e MPF

No fim de junho, o assunto chegou também ao legislativo catarinense. O deputado Jessé Lopes (PSL) propôs uma moção de repúdio contra o Colégio de Aplicação, o NDI e a própria UFSC, chamando seus profissionais de “vagabundos sem vergonha na cara”, em plena sessão da Assembleia Legislativa (Alesc). A deputada Luciane Carminatti (PT) saiu em defesa da escola. “O foco central não é esse. Se nós tivéssemos vacina a essa altura do ano, nós não estaríamos discutindo essa moção. Nós estaríamos com todas as escolas e universidades abertas”, argumentou.

Uma nota de esclarecimento emitida pela Associação de Pais e Professores (APP/CA) foi lida durante a sessão. A associação ressalta que a decisão de não retomar as aulas presenciais é da Administração Central, amparada na ciência e com concordância das instâncias administrativas da universidade. “Destacamos ainda que as aulas remotas em todo o país estão autorizadas pelo próprio ministro da educação, Milton Ribeiro, até dezembro de 2021, através de parecer do Conselho Nacional de Educação”.

Entidades sindicais também se manifestaram em apoio à escola e aos profissionais. O Sindicato dos Professores da UFSC (Apufsc) disse em nota que “a cautela adotada pelas universidades para evitar a aglomeração de alunos e profissionais da educação desequipados em um ambiente escolar sanitariamente frágil é um cuidado para salvar a vida das pessoas. É isso que distingue uma instituição da ciência daquelas que se amparam no senso comum em tempos de pandemia”.

Para o Sindicato dos Trabalhadores da UFSC (Sintufsc), os profissionais “são sorrateiramente atacados, tidos como responsáveis pelo fato de o Colégio de Aplicação não ter retornado às aulas, ainda que os números relativos à pandemia continuem a manifestar o descontrole da situação em nosso estado e no país”.

Existem, de fato, perdas significativas durante o ensino remoto, mas seus impactos podem ser atenuados. A avaliação é do membro da diretoria do Sintufsc, Renato Milis, que é também psicólogo escolar no Aplicação. Ele explica que existe um conjunto de dificuldades no contexto atual, mas que a escola tem feito, mesmo remotamente, um processo de reflexão junto com os estudantes sobre o período que estamos vivendo.

Sobre as críticas mais duras e os ataques recebidos, Renato afirma que o momento tem sido delicado. “Há uma parte das famílias de quem a gente entende a ansiedade. A gente sabe que o remoto não substitui o presencial. Há muitas famílias que têm dificuldades, que estão trabalhando presencialmente e não tem com quem deixar os filhos. São problemas concretos. Mas há também muito oportunismo nesses ataques à escola”, diz Renato.

Para o diretor do Colégio, algumas das questões que ganharam espaço na mídia e no parlamento catarinense são “falsas, assediosas e caluniosas contra a escola’’. Edson defende que “podem existir pontos que a escola precisa melhorar, mas a maioria dessas afirmações são assediosas contra os docentes e técnicos do colégio”.

A moção de repúdio proposta acabou aprovada pelo plenário da Alesc. Esse não é o primeiro episódio em que o parlamentar ataca a instituição. Em outubro de 2019, o deputado entrou na escola se identificando como representante de um grupo de pais. O colégio estava com seu cronograma ajustado em função de uma greve estudantil que protestava à época contra cortes de verbas do governo federal. O pesselista teria sugerido à direção que os alunos da Educação Especial — que eram acompanhados por estagiários que estavam em greve — fossem dispensados para regularizar o cronograma dos demais alunos. O deputado ainda gravou imagens internas sem autorização, utilizando-as nas redes sociais em tom intimidatório.

Além de ser pautada no legislativo, a demanda pelo retorno das aulas presenciais foi levada ao Ministério Público Federal. O procurador da República Marcelo da Mota decidiu abrir um inquérito civil após representações de algumas famílias. No texto, o procurador cita a necessidade de “realizar diligências para averiguar a situação narrada nas representações” e checar dificuldades enfrentadas pelos alunos no decorrer do ensino remoto.

Após ser notificada, a universidade e as escolas encaminharam ofícios, portarias embasadas na avaliação do Comitê de Combate à Pandemia do Covid-19 na UFSC, assim como o Plano de Contingência para Retorno das Atividades Presenciais (Placon) do Colégio de Aplicação.

Sentimento de injustiça

O professor George França ressalta o sentimento de injustiça diante de algumas críticas. “Sinto que todo o trabalho que a gente faz acaba sendo invisibilizado. Uma das coisas mais tristes que acontece é saber que você está movendo todos os esforços na direção de fazer o melhor que é possível nessas circunstâncias e isso não ser nem visto por algumas pessoas”.

O desânimo e estresse pelas críticas de que são alvo vêm se juntar às frustrações que atingem o corpo docente e técnico desde o início da pandemia, como observam os diretores do CA e do NDI. Edson relembra projetos de extensão desenvolvidos pela escola que estão suspensos, como a manutenção de uma horta, uma brinquedoteca, confrarias literárias, intercâmbio com estudantes da Argentina, viagens de estudos, entre outros. “Eu tive professores que entraram em depressão em função dos projetos que estavam indo super bem e tiveram que parar”, afirma.

No NDI, Juliane conta que estar no cargo de direção tem feito com que ela se sinta pressionada por todos os lados. “Me sinto muito desrespeitada e deslegitimada quando vejo alguns tipos de comentários. Porque desde que assumimos a gestão, temos atuado com muito compromisso e transparência”.

A professora Ana Carina já lecionou nas redes municipal e estadual e também já deu aula em escolas privadas. Ela destaca que, por ter tido essa experiência, consegue notar a diferença em participar de uma instituição onde pais e professores têm voz para uma construção coletiva e, no quadro atual, podem tomar decisões com respaldo científico. “A gente se sente mais responsável em fazer nosso melhor, pensando nos nossos colegas de profissão que não têm escolha”, relata, ao mencionar profissionais da educação que tiveram que sair de casa mesmo em momentos de alto risco de contaminação e colapso nos sistemas de saúde. “Eu lamento profundamente e eu não queria dizer que essa minha condição é uma condição de privilégio. A gente passou a chamar erroneamente de privilégio certas circunstâncias que na verdade deveriam ser direitos de todas as pessoas”, enfatiza.

Ela faz parte de uma das quatro comissões internas instaladas pelo Colégio de Aplicação que estão trabalhando e pensando nos detalhes do formato semipresencial que a escola adotará após o aval da universidade. “Professor quer encontrar estudante, quer poder olhar olho no olho, nem que seja de máscara. Eu não vejo a hora de poder conhecer os meus estudantes. Eu dou aula para estudantes sem rosto. Quando estivermos seguros, de acordo com aquilo que a UFSC estabeleceu como seguro, nós voltaremos, sem dúvida. Se tem um dia que é aguardado por nós, é esse.”

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