Como o BRT passou de solução de mobilidade para mais uma obra sem data para acabar
Anunciado há seis anos, o sistema de ônibus rápido integraria diferentes regiões da Capital e municípios da Grande Florianópolis
Por João Scheller
Uma obra grandiosa, que revolucionaria a situação do transporte público na região da Grande Florianópolis, mas que se estende há anos, sem previsão de quando os primeiros quilômetros de via serão utilizados. É essa a situação do sistema de ônibus rápido da Grande Florianópolis, o BRT (do inglês, Bus Rapid Transit), anunciado ainda em 2015 como solução de integração entre as cidades da área metropolitana, além de diferentes regiões da ilha de Santa Catarina. Três anos após a data prevista para o funcionamento do primeiro trecho, as obras acumulam discussões sobre projetos, licitações rescindidas e previsões não cumpridas.
Em meio às obras não entregues, a rotina da estudante Lízia Bulin era diretamente afetada pela lógica do transporte coletivo, isso antes da pandemia, quando levava cerca de duas horas no ônibus para fazer o trajeto de 25 quilômetros entre a casa, em Palhoça, e a faculdade, no bairro Trindade, em Florianópolis. O tempo gasto comprometia desde os estudos até o tempo de lazer com os amigos. “Eu ficava na UFSC até no máximo às 20h, porque ficaria perigoso voltar sozinha tão tarde aqui na Palhoça”, conta. Por comparação, somente durante o trajeto diário de Lízia, indo e voltando da faculdade todos os dias, seria possível realizar um estágio de ao menos 20 horas semanais.
Essa situação preocupante da mobilidade em Florianópolis já foi pensada e repensada diversas vezes. Na lógica das grandes cidades mundiais o transporte público é um sistema ganha-ganha. O passageiro ganha tempo, ao utilizar o deslocamento de um lugar a outro sem precisar se preocupar com a direção. Além disso, ganha em velocidade, já que não precisa enfrentar o trânsito ao rasgar a cidade de ponta a ponta, seja sobre trilhos ou em faixas exclusivas. Junte isso a um custo relativamente mais barato em relação à manutenção de um veículo próprio e à integração com diferentes modais como as bicicletas e carros por aplicativo. Sem contar no maior tempo livre para atividades pessoais, menos estresse, maior qualidade de vida e, por consequência, mais saúde. É um cenário ideal para os grandes centros, mas não é o que acontece na Capital.
A mais recente investida em uma reestruturação do sistema ocorreu com o lançamento do Plano de Mobilidade Urbana Sustentável da Grande Florianópolis, o Plamus. Ele foi elaborado entre 2014 e 2015 pelo Governo do Estado, em parceria com os municípios da região da Capital. O relatório analisava desde o comportamento dos usuários de transporte público até os padrões de tráfego em diferentes vias. Foi a partir dele que se definiu o principal modal de transporte que integraria as diferentes cidades da região de Florianópolis, o BRT.
O Sistema de Ônibus Rápido nada mais é do que um aprimoramento do sistema atual com grandes ônibus articulados, com a diferença de ser integrado a faixas exclusivas, podendo ter estações elevadas em seu trajeto e uma lógica de controle do fluxo de linhas semelhante a dos sistemas de metrô. O BRT ganhou fama após a sua implementação na cidade de Curitiba pela gestão do então prefeito Jaime Lerner, ainda nos anos 1970, mas se expandiu para diferentes centros urbanos, principalmente na América Latina.
As principais vantagens para implementação do BRT, em comparação ao sistema de trilhos, giram em torno do seu custo e flexibilidade, já que mesmo com as faixas exclusivas, os ônibus podem se integrar à malha viária já existente nas cidades e os seus espaços podem ser utilizados por outros veículos. “A implantação de trilhos e toda a sua infraestrutura têm um custo absurdamente maior, da ordem de três ou quatro vezes maior [do que a implantação de um sistema de BRT]”, afirma Werner Krauss Junior, professor do departamento de Automação e Sistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em mobilidade.
Na apresentação do Plamus, em novembro de 2015, se apontava que da verba total de R$ 3 bilhões destinada ao plano, R$ 1,5 bilhão seria direcionado para implementação do novo sistema de ônibus ao longo de dez anos. O plano de integração viária ligaria municípios como Palhoça e São José ao centro da Capital e este mesmo centro a diferentes regiões da ilha. “Estamos estudando o modelo a ser implantado e a proposta é de que até 2018 o primeiro trecho esteja funcionando”, afirmava na época o então secretário de Planejamento de Santa Catarina, Murilo Flores. Três anos depois da data prevista, não há nenhum quilômetro de BRT funcionando em nenhuma das cidades da região metropolitana da Capital. Nem mesmo com a execução do plano ocorrendo somente na região central de Florianópolis, que corresponderia a uma primeira etapa do projeto.
A ideia seria focar no chamado anel viário do Morro do Cruz, uma faixa exclusiva que saísse do Terminal de Integração do Centro (Ticen) e seguisse via Avenida Beira-Mar Norte até a região da Trindade. Lá, contornaria o campus da UFSC e seguiria via bairro Pantanal até a Rodovia Aderbal Ramos da Silva, de onde retornaria ao centro. Após a vitória do então tucano Gean Loureiro, hoje filiado ao DEM, nas eleições municipais de 2016, a previsão da Prefeitura de Florianópolis era de que até o final da nova gestão, o anel viário já estivesse em funcionamento na cidade. Mesmo assim, até agosto de 2021, o único trecho pronto para a passagem do BRT tem menos de 900 metros de extensão e se encontra na Avenida Henrique da Silva Fontes, entre a Avenida Madre Benvenuta e o início da Rua Deputado Antônio Edu Vieira.
UM KM, DUAS DÉCADAS
Para entender os problemas envolvendo as obras do BRT, é preciso olhar para trás. Isso porque, muito antes das primeiras conversas sobre o Plamus existirem, as tratativas para uma das principais obras que envolvem o anel viário do Morro da Cruz já eram discutidas. O trecho de início da Rua Deputado Antônio Edu Vieira, que costeia o campus da UFSC na Trindade, é um dos principais pontos de congestionamento na região e parte vital para a consolidação do anel viário. Ao menos desde o final dos anos 1990, existe uma discussão envolvendo a duplicação desse trecho da via. “São extremamente precárias as condições de mobilidade e acessibilidade nos bairros que dão acesso ao campus da Trindade”, já observava, em 1996, um relatório elaborado pela universidade. Ali já se apontava que “o sistema viário do campus, hoje, não comporta mais o fluxo crescente de veículos nos horários de pico”. A solução seria a cessão de parte do terreno da UFSC para obras que pudessem melhorar o fluxo na Edu Vieira.
Após anos de reuniões envolvendo universidade, prefeitura e moradores da região, além de projetos que iam desde o alargamento da via até a construção de um túnel pelo local, a comissão que aprovaria a cessão do terreno à administração municipal foi finalmente formada. Era o ano de 2010. Discussões envolvendo o Conselho Universitário, a Prefeitura de Florianópolis e até o Ministério Público Federal, seguiram até 2015, quando a universidade assinou um termo da chamada cessão onerosa da área.
“Foi feito um levantamento na época do custo aproximado do terreno [cedido] e a prefeitura, baseada neste valor, retribuiria em obras para a universidade ou para a comunidade”, recorda Paulo Roberto da Luz, secretário de Obras, Manutenção e Ambiente da UFSC.
Isso incluía, por exemplo, a pavimentação de áreas do campus, melhorias na iluminação, além de obras necessárias para a própria duplicação da via, como a demolição de um pequeno prédio do Centro de Desportos (CDS), que se encontra bem no meio de onde a nova Edu Vieira passaria. A supervisão dos detalhes técnicos do projeto por parte da UFSC ficavam a cargo do Departamento de Projetos de Arquitetura e Engenharia (DPAE).
Desde então, três empresas diferentes já estiveram à frente das obras. A primeira iniciou as operações em 2016, mas teve o contrato rescindido pela própria prefeitura, após pedir um aditivo de cerca de 10% sobre os R$ 37 milhões inicialmente estabelecidos para a obra. A segunda empresa assumiu as operações em 2019, mas também teve o contrato rescindido ao entrar em processo de falência. A construtora mais recente retomou as obras em julho deste ano, com expectativa de terminá-las até janeiro de 2022. O novo contrato foi fechado pelo valor de R$ 8,3 milhões, o que levantou questionamentos de membros do DPAE sobre a complexidade das obras realizadas no local e sua semelhança com o projeto inicialmente estabelecido. Mesmo depois da cessão do terreno e do início efetivo das obras, os problemas continuaram.
“Desde 2016, a gente não tem troca com a prefeitura, isso deve ficar muito claro”, explica Carolina Cannella Peña, Engenheira Civil do DPAE. Ela conta que diferentes problemas vinham sendo apontados no projeto desde a cessão do terreno. Eles envolviam pontos como a criação de faixas elevadas para pedestres e obras que evitassem problemas para a estrutura atual da universidade — como a criação de isolamento acústico em prédios que ficariam à margem da nova rua e a demolição, e reconstrução, do prédio do CDS. Além disso, o DPAE aponta que estudos de macrodrenagem na região deveriam ser realizados, já que a nova área asfaltada diminuiria significativamente o espaço de permeabilidade da água da chuva. Todos esses problemas se somam ao fato de a prefeitura não ter entregue as obras de contrapartida na universidade, e do contrato de cessão assinado em 2016 ter expirado ainda em 2020 e não ter sido renovado. “Como que podemos ter obra num terreno onde não temos nada que está regendo essa cessão?”, questiona Carolina.
Mas o DPAE é o órgão responsável pela análise técnica das obras na UFSC. As tratativas diretas ficam por conta da reitoria da universidade, que não parece disposta a tomar ações mais enérgicas contra a administração municipal.
“Nós temos cobrado da prefeitura, desde muitos anos atrás, oficiado e feito reuniões. Mas é importante que se mantenha o diálogo institucional para que não seja necessário algum tipo de ação de outra ordem, judicial ou embargo”, afirma Áureo de Moraes, chefe de gabinete da reitoria.
O secretário de Mobilidade e Planejamento Urbano, Michel Mittmann, preferiu não comentar os impasses nas obras da Edu Vieira, alegando ser um assunto de responsabilidade da Secretaria de Infraestrutura do município. O Zero tentou contato durante semanas com a pasta e com o próprio secretário Valter José Gallina, mas não houve resposta aos pedidos de entrevista, nem aos questionamentos levantados pela reportagem, até o fechamento desta edição. Desde o início das operações em 2016, as obras na Rua Deputado Antônio Edu Vieira são alvo de ações do Ministério Público Federal (MPF-SC), referentes à recuperação de cursos d’água afetados pela duplicação da rua e da segurança viária das vias do entorno do campus.
ALÉM DA EDU VIEIRA
Apesar dos impasses referentes às obras na UFSC, o trajeto que envolve o contorno viário do Morro da Cruz, tem uma extensão bem maior. “O trecho da UFSC é um trecho curto, ele definitivamente não traz uma solução global”, afirma o secretário Michel Mittmann. Mesmo assim, a duplicação da Rua Deputado Antônio Edu Vieira é a única etapa licitada e com obras em andamento. “Os próximos virão na sequência”, explica Michel. As obras que ainda devem ser analisadas incluem a expansão do trecho final da Edu Vieira, até o encontro com a Rodovia Aderbal Ramos da Silva, toda a extensão da Avenida Beira-Mar Norte, além dos trechos que passam pelo túnel Antonieta de Barros e a chegada e saída do Ticen.
Quando falamos sobre os trechos de integração entre Florianópolis e as demais cidades da região metropolitana, a questão é ainda mais complexa. Isso porque, de acordo com a Política Nacional de Mobilidade Urbana, sancionada em 2012, as políticas de mobilidade são responsabilidade de cada município, o que requer um esforço integrado para a implementação de movimentos entre diferentes cidades, como em uma região metropolitana. Além disso, o Plamus começou a ser elaborado em outro contexto econômico, alguns meses antes do início da crise que se instalaria no país a partir de 2015.
Com a chegada da pandemia, a situação ficou ainda mais crítica. “Hoje a gente está transportando 42% [dos passageiros] de antes da pandemia”, explica Mittmann, mostrando que os gastos da prefeitura de Florianópolis com o transporte público aumentaram no último ano, mesmo que somente para manter as operações viáveis. A prefeitura espera que, com o retorno dos passageiros ao sistema, a situação se normalize nos próximos meses e que, com isso, aumente a margem para investimentos no setor. Mittmann também adiantou que um novo programa de investimentos no transporte público deve ser lançado em breve, contando com uma série de obras que começariam na atual gestão. Mesmo assim, nenhum detalhe foi revelado sobre a relação desse pacote de obras com o sistema de ônibus BRT, nem com novas obras do anel viário do Morro da Cruz.
Para o professor Werner Krauss Junior, somente a boa estruturação de um sistema de transporte público coletivo metropolitano resolveria os gargalos da mobilidade na Grande Florianópolis. Frente a um sistema de transporte público deficiente, é natural que as pessoas priorizem o transporte individual quando têm condições, mas o problema vai além. “A sociedade, por enquanto, não tem liderança política, e não tem vontade detectável em nível social, para a estruturação de um sistema como esse”, explica. Há forte resistência da sociedade em relação a ações que priorizem os veículos de transporte coletivo na lógica urbana, sem contar com os subsídios para a manutenção e expansão do sistema.
A mudança não é simples, mas cabe aos agentes políticos o movimento inicial destas ações de priorização do transporte coletivo — e os bons exemplos não estão tão distantes. “No centro de Curitiba, na joia da coroa, o cara fala: aqui é transporte público por ônibus”, comenta Werner, como exemplo do poder que a administração pública tem de moldar as lógicas que alterem a dinâmica urbana nas grandes cidades.