“Coutinho nos ensina a gostar do Brasil”

Zero
5 min readAug 16, 2024

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Em entrevista, João Moreira Salles reflete sobre a simplicidade e a profundidade do cinema de Eduardo Coutinho

Pablo Brito (pabloolavebrito@gmail.com), Robson Ribeiro (ribeiro.robson.grad@gmail.com) e Vanessa Luppi (vluppis@gmail.com)

Na visão de Salles, Coutinho reinventou o documentário ao focar na palavra falada. Foto: Vanessa Luppi

O nome de Eduardo Coutinho ecoa na história do cinema brasileiro. O cineasta criou um estilo próprio de documentário, que vai muito além da busca por fatos e evidências. Começou na ficção e, com o golpe de 1964, se viu obrigado a migrar para o jornalismo. Foi quando descobriu a força da palavra falada e a capacidade de transmitir experiências sem artifícios. Abraçou o cinema não-ficcional para virar um dos maiores expoentes do gênero.

Explorando temas universais e atemporais, foi ensinando a plateia a gostar do Brasil, e dele. O diretor de “Cabra marcado para morrer” (1984), “Santo Forte” (1999) e “Edifício Master” (2002) fez de seu cinema um exercício da gramática mínima, se livrando de tudo que era possível e ficando apenas com a essência do cinema. Um desses espectadores que se encantou por Coutinho, foi João Moreira Salles, documentarista, produtor de cinema brasileiro e fundador da Revista Piauí.

Os dois se conheceram antes de Babilônia (2002), o primeiro filme de Coutinho em que Salles atuou como produtor. A parceria durou até 2014, ano da morte de Eduardo Coutinho. Em Florianópolis, para ministrar uma masterclass sobre Coutinho, o Jornal Zero entrevistou Salles, que falou sobre a importância do trabalho do documentarista para o cinema brasileiro e sua capacidade de capturar a essência do país.

Zero: Coutinho, no início da carreira, fazia um cinema muito mais próximo do jornalismo. Depois, ele foi se afastando de alguma maneira. Jornalismo e cinema sempre estiveram muito próximos e, ao mesmo tempo, com fronteiras bem definidas. Como você vê essa conexão?

Salles: Coutinho começou como um diretor de ficção e roteirista. Com o golpe, ele não pôde mais fazer cinema porque, por um tempo, ninguém podia. Foi trabalhar no Jornal do Brasil e depois na Rede Globo, onde fez episódios do Globo Repórter e um específico do Globo Esporte. Ali, ele descobriu algo que mudou sua vida: a capacidade de transmitir uma experiência de vida apenas pela fala, sem necessidade de comentários adicionais, trilha sonora, planos de corte ou ilustração. A voz basta, dependendo de quem está diante da câmera. Se a pessoa é um bom narrador, a voz é suficiente. Nessa experiência, ele descobriu que queria ser um documentalista, já com quase 40 anos. A partir disso, ele começou a abandonar determinadas ferramentas do jornalismo para criar um documentário focado na palavra falada, que é radicalmente diferente do jornalismo, apesar de ter origem nele. Jornalismo e documentário podem ser a mesma coisa em alguns casos, como em documentários que são basicamente reportagens filmadas. No entanto, documentários como os de Coutinho têm pouco a ver com jornalismo. O jornalismo essencialmente lida com fatos e evidências. As coisas precisam ser demonstradas, você não pode afirmar algo sem provas. No cinema de Coutinho, essa necessidade de provar o que foi dito é completamente abandonada. Ele não está interessado na verdade factual, mas sim na experiência vivida como ela é narrada.

Zero: Então, Coutinho estava mais interessado na experiência narrada do que em provar algo factual?

Salles: Exatamente. Ele acreditava que a memória e a imaginação transformam a experiência vivida. A pessoa não está mentindo, mas não está necessariamente descrevendo exatamente o que aconteceu. Coutinho não queria a verdade factual, ele queria a verdade da experiência narrada. Essa é uma diferença clara em relação ao jornalismo, que precisa de evidências e comprovações. Essa abordagem se reflete na evolução da carreira dele. No começo, Coutinho ainda usava muitas ferramentas tradicionais do cinema, como trilha sonora e narração. No entanto, ele foi progressivamente abandonando essas ferramentas até chegar a um cinema minimalista, onde uma câmera parada e a voz do entrevistado eram suficientes. Quando ele levou “Santo Forte” para o Festival de Gramado, o filme foi consagrado pelo público, o que marcou um renascimento na carreira dele.

Para Salles, Coutinho não só se beneficiou da inteligência da plateia brasileira, como também a elevou. Foto: Vanessa Luppi

Zero: E como você vê a inteligência da plateia brasileira ao longo do tempo, especialmente após a morte de Coutinho?

Salles: Acho que Coutinho se beneficiou da inteligência da plateia e, ao mesmo tempo, a plateia se tornou mais inteligente por causa dele. Países que valorizam o cinema geralmente têm plateias melhores. No Brasil, essa relação entre plateia e cinema ainda é complexa, mas a capacidade de ver qualquer filme hoje em dia, graças às plataformas digitais, aumentou o repertório das pessoas. No entanto, a experiência comunal do cinema, de assistir a um filme numa sala cheia, está se perdendo. Isso afeta a cinefilia, que depende do diálogo e da convivência.

Zero: Falando sobre o cinema brasileiro, enfrentamos uma pandemia e um governo que acelerou a crise no setor. Como você vê o futuro do cinema no Brasil?

Salles: A volta da pandemia foi ingrata com o cinema em várias partes do mundo, não só no Brasil. Eu não quero ser “Poliana” e dizer que as coisas estão bem. O governo Bolsonaro, como todo governo que combate a cultura, cria anticorpos e cria resistência. O cinema se tornou mais importante com o governo Bolsonaro, porque virou uma trincheira. Não era possível ser indiferente ao que estava acontecendo, e surgiram coisas muito extraordinárias neste período, algumas delas feitas na base da guerrilha, mas o cinema de Contagem (MG) por exemplo, “Marte Um” e outros filmes que saíram de lá. É o que há de mais bacana, novo e original no cinema brasileiro e é um cinema de gente que se dirá periférica. Se ao mesmo tempo, a gente enfrentou um governo das trevas, nunca foi tão importante fazer-se a luz.

O cinema de Eduardo Coutinho ajuda a gostar do Brasil. Foto: Vanessa Luppi

Zero: Para encerrar, você disse que seria arriscado imaginar que tipo de filme Coutinho estaria produzindo hoje, mas você consegue imaginar quais assuntos o interessariam?

Salles: Acho que os mesmos de sempre. As pessoas acham que o Coutinho é extraordinário porque ele se esvazia, mas não era bem isso. Coutinho encontrava maneiras de chegar nos temas que eram importantes para quem estava falando com ele, mas eram importantes para ele também. Que temas são esses? Relação entre pai e filho, vida e morte, Deus, a existência ou inexistência dele. Coutinho era um mistério, e ele queria desesperadamente ser convencido que tinha alguma coisa depois (da morte). São esses temas essenciais: vida, morte, amor, traição, dor, sofrimento, superação e tem um recorte da humanidade ali, da humanidade brasileira, que é difícil encontrar em outro cineasta. A Consuelo Lins, teórica do cinema, diz uma coisa que eu concordo: ‘O Coutinho nos ensina a gostar do Brasil’, que é um país muito difícil às vezes, mas pelo cinema do Coutinho, encontramos razões para gostar.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC