Crônica: De quantas cores é feito o Brasil

Por Erika Artmann

Sentado à beira da mesa da cozinha, um homem branco e calvo, com cerca de 50 anos, dá seu viva à nação. Está junto ao neto, um menino negro de pele clara, que ensina o avô a fazer um chapéu de soldado com as folhas de um jornal que trouxe da escola. “Não há mês como novembro”, diz o senhor para o menino. “Temos que saudar a Pátria e a nossa bandeira, que jamais será vermelha”, reforça.

Foto: Unsplansh / Matheus Camara da Silva

O jornal usado na produção do chapéu de papel é do dia anterior. A manchete mostra cerca de 30 pessoas e dezenas de caminhões, bloqueando a rodovia que dá acesso à pequena cidade onde moram. Mais tarde, ele planeja levar o menino até o local. “Seu padrinho e seu tio estão lá lutando pelo Brasil”. Com a folha na horizontal, eles dobram o papel ao meio. E continuam o trabalho. “Me mostraram no WhatsApp que irão implantar uma ditadura. Vão proibir até as igrejas”, conta ao neto.

Aos 9 anos, a palavra escrita já não fugia aos olhos do menino. Lia por curiosidade, e sempre punha atenção às letras que se organizavam em palavras bem na sua frente: nas fachadas das lojas de rua, nas bulas dos remédios que os mais velhos usavam, nas telas digitais espalhadas por toda a casa. Não foi diferente com o pedaço de jornal que restou da produção do chapéu de soldado. Ele aprendeu o modelo na escola e contou ao avô — que ficou orgulhoso. Àquela altura do trabalho em família, as duas peças montadas pela dupla já ganhavam forma e o menino se permitiu ler o que restou do jornal recortado.

A coluna dizia: “A eleição polarizada de 2022 deixa uma pergunta: a quem interessa o verde e amarelo da bandeira do Brasil? Outra questão que em breve tomará as capas dos jornais é quanto à camisa da seleção. Hoje a amarelinha é usada por uma minoria de eleitores insatisfeitos com os resultados das urnas. Fato é que quando a Copa do Mundo de Futebol chegar, os manifestantes golpistas já terão no guarda-roupa o item que já foi mais amado no passado. Por outro lado, durante o Natal de dezembro próximo, quem está à esquerda pode tirar do armário as roupas vermelhas guardadas por medo da violência política. Vai ser difícil dizer quem está de qual lado do espectro político quando essa mistura acontecer”.

Aquilo seria coisa demais para um menino de 9 anos entender. Mas, acostumado a acompanhar o avô em frente à TV, para o Jornal da Meia Noite, ele quase que sabia do que se tratava e ao ler perguntou a si mesmo: “De quantas cores é feito o Brasil?”. Não encontrou a resposta.

A dupla terminou os chapéus de soldado, vestiu a camisa amarela e, como ainda eram 16 h, foram às manifestações. Na rodovia, a criança reparou que as bandeiras desceram do mastro e viraram uma espécie de capa para quem se sentia “herói nacional” ao trancar a rodovia para pedir por intervenção. Militar. Antidemocrática. Mais cedo, na escola, o menino ouviu que existem regras para usar a bandeira nacional. Em alguma lei do século passado, que ele não lembrava qual, está escrito que ela não pode ser usada em mau estado, ou como roupas, por exemplo.

Além do verde e amarelo, não havia muitas outras cores ali. A mulher que vestia vermelho foi colocada no fim da fila de carros que esperava para atravessar. Aqueles com a camisa da CBF, as da Seleção Brasileira, espalharam-se pela avenida, eufóricos e aos gritos de liberdade, contra o resultado da recente eleição para presidente da República. Os soldados de papel vestiram o chapéu na cabeça para marchar ao redor de um pneu velho no meio da pista. Logo, cantaram o Hino Nacional e bateram continência ao mesmo pneu velho no meio da pista.

Verde, amarelo, vermelho. As três cores estão na história do Brasil há mais tempo do que parece. São uma homenagem à família real brasileira — que não é mais realeza –, no símbolo augusto da paz. O verde é dos Bragança e o amarelo, dos Habsburgo. O verde do então reino de Portugal, Brasil e Algarve. E o amarelo, da Áustria, de onde veio Leopoldina de Habsburgo-Lorena, então futura esposa de D. Pedro I. As bandeiras têm essas cores desde o Império do Brasil, e não é por causa das matas, rios, riquezas e paz do país, como é popularmente ensinado, sobretudo nas escolas.

A bandeira não é vermelha. Não tem uma foice e um martelo desenhados de forma imponente sobre um tecido de cores quentes. Não adianta brigar por isso. Está na Lei 5.700, de 1971: é um losango amarelo que se estende sob um campo verde. No interior das formas geométricas, a esfera azul guarda a faixa branca que cruza — sempre da esquerda para a direita –, com os dizeres positivistas de “Ordem e Progresso’’. Uma ode à ciência que hoje é desrespeitada pelo mesmo grupo.

O nome Brasil pouco tem de verde. Carrega no prefixo o peso quente e vermelho da cor de brasa que escorre da árvore pau-brasil quando cortada. Brasil. A primeira madeira explorada por brancos nas matas tupiniquins, hoje praticamente extinta por causa da exploração predatória. Este, sim, o velho e maltratado tesouro nacional. Primeiro, a cor vermelha foi roubada das árvores que pertenciam aos povos originários, levadas para colorir as roupas da realeza europeia. Em 2022, foi novamente retirada do vestuário brasileiro após a escalada da violência política.

De volta à cidade, ainda acompanhado do avô, o menino tem na cabeça um pouco de cada coisa: a escola, a manifestação, as pessoas protestando, e sua casa. A cor da sua pele, a cor da de seu avô. É final do ano e as luzes furtacor de Natal começam timidamente a ser acesas nas fachadas das casas decoradas com figuras invernais e motivos vermelhos com tons cintilantes. Os enfeites verde-amarelos lembram aos passantes que é tempo de Copa do Mundo de Futebol. O verde dos dias que antecedem o verão se faz presente no gramado extenso em frente às casas. O menino descobrirá quais cores compõem o Brasil.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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