DeBBBates: bifobia para além da casa mais vigiada do país

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10 min readMar 12, 2021

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Lucas Penteado, participante do BBB 21, não está sozinho; pessoas bissexuais relatam preconceito que vivenciam no cotidiano

Reportagem por Evelyse Porto Ferraz e Leon Ferrari

Arte gráfica por Leon Ferrari

A madrugada do dia 07 de fevereiro de 2021 foi agitada nas redes sociais — principalmente no Twitter. Isso se deu devido ao primeiro beijo entre dois homens da história do Big Brother Brasil (BBB), protagonizado pelo ator Lucas Penteado e pelo economista Gilberto Nogueira. O acontecimento foi comemorado por muitos internautas, que consideraram o beijo como caloroso e afetuoso. Ao beijar o economista, o ator anunciou para todo Brasil sua sexualidade.

Para Manoel*, estudante universitário bissexual de 22 anos, a beleza e a importância do beijo foram logo apagadas por tudo que se sucedeu. Alguns participantes — notadamente, a psicóloga Lumena Aleluia, uma mulher lésbica, e a rapper Karol Conká, bissexual — passaram a questionar se Lucas de fato seria bissexual ou se beijou Gilberto para ganhar vantagem no jogo.

Ao assumir sua bissexualidade, Lucas passou a ser questionado e invisibilizado por outros participantes. Ao final da festa, quando estava prestes a desistir, foi cercado pelo trio formado por Lumena, Karol e Pocah, que decidiu intimá-lo. | Arte gráfica por Leon Ferrari

Segundo o psicólogo Lucas De Vito Franco, que atua com foco em sexualidade e relacionamentos LGBTQI+, não há um consenso sobre o conceito de bissexualidade. Mas, conforme o Manifesto Bissexual de 1990, pode-se definir como a orientação sexual das pessoas que se atraem por mais de um gênero. “A bissexualidade sempre foi invisível na mídia”, conta Juan Pablo Perera Gómez**, psicólogo venezuelano formado pela Universidad Metropolitana, e autor do artigo “Desenvolvimento da identidade bisexual”. Muito por conta disso, essa sexualidade é envolta de uma série de estigmas que a invisibilizam e questionam, taxando indivíduos que se identificam com ela como confusos ou oportunistas.

Após uma série de violências psicológicas, o ator participante do BBB 21 resolveu deixar o sonho de ganhar R$ 1,5 milhão para trás. Ao acompanharem o evento, muitos internautas consideraram que o ator sofreu ataques bifóbicos por parte de outros participantes do reality show. Além de reconhecerem a discriminação, algumas pessoas compartilharam, nas redes, suas próprias vivências. A bifobia é, basicamente, o preconceito contra pessoas que se reconhecem como bissexuais, e pode operar de diferentes formas: desde a invisibilização até violência física. “A bifobia é uma consequência de crenças religiosas e políticas, e causa depressão e ansiedade em pessoas bissexuais”, afirma Juan Pablo.

“A bifobia foi só a gota d’água”, pensa Luiza Monteiro, editora de vídeos e mulher bissexual. De fato, o participante Lucas passou por diversas violências durante as duas semanas em que esteve confinado. “Até fizeram uma comparação na internet: ‘no BBB ele desistiu do programa, mas, na vida real, pode ser o suicídio’”, lembra Leonel Camasão, jornalista e presidente do PSOL em Florianópolis. O estudo “Who Am I”, conduzido por pesquisadores da Universidade La Trobe, da Austrália, e divulgado em 2019 no Australian Journal of General Practice, fala sobre a saúde mental de bissexuais. Segundo a pesquisa, um a cada quatro já havia tentado suicídio e, aproximadamente 80%, já havia pensado em tirar a própria vida. Por fim, os estudiosos concluíram que “pessoas bissexuais têm uma saúde mental mais fragilizada do que gays, lésbicas ou heterossexuais”.

Para além dos debates e da ampla repercussão do assunto nas redes sociais, “será que as pessoas, que moram em lugares que a informação não chega tanto assim, vão entender?”, questiona Lucas De Vito, referindo-se à polêmica gerada a partir do BBB 21. Camasão acredita que uma explicação para o público sobre bifobia já deveria ter ocorrido. O psicólogo Juan Pablo concorda: “Teria sido uma ótima oportunidade para esclarecer que aquilo é bifobia e que isso não deveria acontecer, pois você está punindo alguém por, basicamente, ser ela mesma”.

Juan Pablo vai mais além, pois acredita que devia ter acontecido uma intervenção dentro do reality show. Afinal, após sofrer bifobia, Lucas saiu da competição. “Se eu puno dois homens por se beijarem em rede nacional, que mensagem eu estou passando para as pessoas? De que aquilo é errado, daí se cria um ciclo de violência até a mensagem ser revertida”, explica. A opinião do psicólogo é unânime entre os entrevistados desta reportagem — muitos deles são bissexuais e convivem com a realidade do preconceito em seu cotidiano.

Realidade longe das câmeras

Aos 15 anos, Luiza passou por uma situação bem parecida com a do ator Lucas Penteado. Fazia pouco tempo que uma amiga dela havia reunido todo o grupo de amigos para revelar que se considerava bissexual. “Acho que ela assumiu que todos nós éramos heterossexuais”, conta a editora de vídeos. Em uma festa, típica reunião de adolescentes, Luiza ficou com uma menina. Aquela não havia sido a primeira vez que beijava uma pessoa do mesmo gênero. Entretanto, a jovem não sentia necessidade de contar aos amigos.

Por achar que Luiza estava beijando apenas para chamar atenção, a amiga ficou revoltada. Assim como Lumena fez com Lucas, acusou a outra jovem de “apropriar-se de um assunto sério”. “Ela foi super agressiva comigo e com outras pessoas”, conta. Os conflitos marcaram a separação do grupo de amizades do ensino médio. Atualmente, Luiza já perdoou a amiga.

Quando questionada sobre experiências bifóbicas que vivenciou, essa é a primeira que vem à sua cabeça, mas não a única. Luiza conta que, quando se relacionou com mulheres lésbicas, não foram poucas as vezes em que teve de lidar com a cara de nojo ao revelar que também ficava com homens: “Sempre rola”. Ela confessa, inclusive, que se sente mais confortável ao se relacionar afetiva e sexualmente com homens do que com mulheres que ficam apenas com mulheres.

Dentro da comunidade

“É pior quando ocorre num ambiente que você espera acolhimento”, explica Luiza. Inclusive, para ela, o que mais doeu no episódio de bifobia do reality show foi ver pessoas de dentro da comunidade — uma mulher lésbica e duas mulheres bissexuais — discriminando o ator. Manoel sente que, na fala da psicóloga e DJ acusando Lucas de deslegitimar a causa LGBTQI+, havia um recado de “você não pertence à comunidade”, como se o B da sigla “fosse de Beyoncé”.

“A comunidade LGBT tem problemas internos”, afirma o psicólogo Juan Pablo. Ele explica que alguns homens gays e mulheres lésbicas acreditam que os bissexuais carregam consigo uma espécie de privilégio heterossexual. “Isso é consequência da falta de informação suficiente sobre bissexualidade, sobre os processos psicológicos que bissexuais passam ao longo da vida”. Para ele, a bissexualidade não é acompanhada de privilégios desse tipo.

Manoel cansou de passar por situações assim. “Eu vivenciei muito mais bifobia dentro da comunidade LGBT do que fora dela”, denuncia. Atualmente, inclusive, ele não se considera integrante do movimento LGBTQI+ enquanto luta. Entretanto, entende que sua existência representa uma forma de resistência.

Mente confusa e complexa

Por conta da bifobia com a qual conviveu enquanto crescia, esse entendimento demorou a aparecer. Manoel considera que o processo de reconhecer-se como não heterossexual é muito difícil. Até afirmar-se como bissexual, ele atravessou diversos momentos de dúvida. Quando passou a ficar com meninos, em 2017, acreditou ser um heterossexual que ficava com garotos às vezes. Depois, declarou-se bissexual. Então, passou a questionar se estava usando a bissexualidade como refúgio. “As pessoas falavam ‘isso é porque tu não tens coragem de te assumir gay. Eu ficava pensando ‘será mesmo?’”.

O psicólogo Juan Pablo explica que essa confusão é um sentimento comum entre as pessoas bissexuais. Isso porque, para ele, vivemos em uma sociedade baseada no dualismo. Durante toda a vida, contaram-nos que só podemos gostar de um, “não importa se for do mesmo gênero ou de outro, mas eu tenho de gostar de só um”. Lucas De Vito completa que a mente humana não é dualista, mas sim “confusa e complexa”. “Os bissexuais não conseguem se encaixar nessas caixinhas da monossexualidade”, declara.

Arte gráfica por Leon Ferrari

Hoje, Manoel sabe a resposta: “Eu sou bissexual!”. Mesmo assim, cansado de deparar-se com a bifobia, decidiu, por exemplo, contar ao pai que é homossexual. “É mais fácil para ele entender que eu sou gay. Porque, se eu sou bissexual, eu sou indeciso, confuso”, explica.

Sob o holofote político

Leonel Camasão deixou que o pai descobrisse sobre sua sexualidade sozinho. Na véspera das Eleições Municipais de 2020, ele pegou um santinho do filho — que foi candidato a vereador pela capital catarinense — e, à noite, conversaram. “Se você está feliz, então, está tudo bem”, disse o pai.

Mesmo entendendo-se como bissexual desde os 16 anos, Camasão só falou publicamente sobre sua sexualidade em 2019, quando a “perturbação no juízo”, como ele mesmo diz, passou dos limites. O estopim da decisão foi um conflito familiar ocorrido durante o Natal. No dia seguinte, fez um ‘textão’ e publicou nas redes sociais. Ele considera que essa foi uma das melhores coisas que fez na vida. “A sensação é de que deixou de ser um problema meu. Porque eu ficava incomodado, ansioso, com medo, pensando ‘o que será que as pessoas vão pensar?’”, confessa.

Camasão sentiu-se muito acolhido nas redes quando fez o anúncio. O que ele não esperava eram as acusações que ouviu nas últimas Eleições Municipais. “Eu recebi um áudio de uma outra candidata, que foi encaminhado várias vezes, dizendo que eu estava fingindo, para roubar votos de pessoas LGBT”. Mesmo desapontado, não ficou calado: foi até a presidência do partido dela e pediu para que “dessem uma segurada”. Quando inteirou-se sobre o que havia acontecido no BBB, imediatamente traçou um paralelo com esse caso. “Se você é gay, as pessoas podem até não aceitar que você gosta de homem, mas elas entendem. Com a bissexualidade não é assim. As pessoas vão duvidar de você a vida inteira”, conta.

Apesar do aumento no número de candidaturas LGBTQI+ — de acordo com o movimento #VoteLGBT, foram 502 candidaturas no pleito de 2020, 110 a mais do que em 2016 –, o número de pessoas assumidamente bissexuais que querem entrar para a política brasileira ainda é pequeno. Segundo a ferramenta Voto Com Orgulho, da ONG Aliança Nacional LGBTI+, 37 candidatos aos Executivos e Legislativos municipais eram bissexuais. Já entre os eleitos, o número diminui ainda mais: de acordo com o portal Congresso em Foco, foram apenas três — todas mulheres.

Sobre a representatividade bissexual, Camasão afirma: “Acho que é importante, não só na política, mas em todos os espaços de representação, sejam de poder ou simbólicos. Porque eles humanizam e mostram que somos pessoas reais.”

Questão de raça, geografia e classe

Ao contrário do caso de Manoel e Camasão, o pai de Carlos Augusto Venâncio, estudante universitário de 20 anos, foi informado diretamente pelo filho sobre sua bissexualidade. Mas, para os demais moradores do bairro onde nasceu, a sexualidade dele não passa de uma suposição, inclusive para seu ex-melhor amigo. “Eu tinha de fingir ser uma pessoa que não era para ser aceito por ele”, confessa.

Carlos percebeu-se bissexual aos 15 anos. Foi uma descoberta sem confusão. Sabia que era, mas, mesmo assim, houve sofrimento. Decidiu voltar a frequentar a igreja evangélica da vila — uma localidade bem religiosa. As preces e orações tinham um objetivo específico: negar seu desejo. “Eu perdi as contas de quantas vezes eu desejei não estar ali, mas eu não tinha coragem de largar de vez”, confessa. Em 2019, já na faculdade, encontrou espaço para, enfim, vivenciar sua sexualidade sem julgamentos, e afastou-se da igreja.

O psicólogo Juan Pablo afirma que alguns estudos mostram que comunidades mais pobres — como a que Carlos morava e Lucas Penteado vive — tendem a ter uma visão mais conservadora sobre a vida. Para ele, essa realidade pode mudar se a educação sexual chegar a todos.

O estudante não se identificou com Lucas Penteado apenas por conta da bissexualidade e por ambos serem de comunidades periféricas: os dois também compartilham traços fenotípicos, são negros. O estudo “The Effects of Intersecting Stigma”, publicado em 2019 pelos psicólogos estadunidenses Devin English, Jonathon Rendina e Jeffrey Parsons, demonstrou que a junção entre LGBTfobia e racismo está relacionada a altos níveis de estresse e depressão. Ou seja, a bifobia impacta de formas diferentes as pessoas brancas e não brancas.

Sexualização e machismo estrutural

Para além das questões socioeconômicas e raciais, é preciso pensar, também, na bissexualidade em relação ao gênero. De forma unânime, os entrevistados concordam que mulheres bissexuais são mais aceitas — ou melhor, mais visíveis. Juan Pablo Perera Gómez faz uma ressalva: essa aceitação é muito mais no sentido de vê-las como objetos, não como pessoas. Isto é, são aceitas por serem sexualizadas. “Quando você objetifica alguém, você esquece que ela é uma pessoa, esquece dos direitos dela”, destaca.

O estudo “Why Us? Toward an Understanding of Bisexual Women’s Vulnerability for and Negative Consequences of Sexual Violence”, desenvolvido pela psicóloga Nicole Johnson na Lehigh University’s College of Education da Pensilvânia (EUA), mostrou que, entre as mulheres que sofreram estupro, as bissexuais são maioria. Nos Estados Unidos, 50% delas relatam já terem sido estupradas.

“Não é a mesma coisa, ver duas mulheres se beijando e dois homens”, explica Juan Pablo. Por isso, talvez, a punição e desaprovação da bissexualidade entre homens seja mais explícita. O psicólogo Lucas De Vito destaca que a bifobia também está ligada à violência de gênero. “O machismo também se volta contra os homens”, explica. No caso de Lucas Penteado, por exemplo, na visão de nossa sociedade ainda patriarcal, o jovem estaria renegando seu papel de gênero enquanto homem, isto é: inferiorizando-se, de certa forma, para assumir características ligadas ao que se acredita como feminino.

Combate à bifobia

Para que Lucas Penteado e tantos outros bissexuais possam viver sem discriminação, o psicólogo Juan Pablo pensa em medidas individuais e coletivas. Individualmente, podemos, por exemplo, não acatar piadas LGBTfóbicas, pois “rir é reforçar esse preconceito”, explica. Além disso, se você for amigo de uma pessoa que se declara bissexual, o psicólogo aconselha não julgá-la, mas, sim, validar os sentimentos dela. A ONG Livres & Iguais, associada à Organização das Nações Unidas (ONU), acrescenta que as pessoas devem educar-se sobre as vivências dos bissexuais e denunciar casos de bifobia. No Brasil, a LGBTfobia foi considerada crime somente a partir de junho de 2019.

No campo coletivo, Juan Pablo afirma que todos temos que cobrar ações do governo. A Livres & Iguais apresenta uma vasta lista sobre medidas que podem ser tomadas pelos governantes. Entre elas, garantir que organizações bissexuais ajudem no desenvolvimento de políticas públicas que impactem seus direitos, sensibilizar profissionais da saúde e prover educação sexual que fale sobre diversidade e aceitação.

Arte gráfica por Leon Ferrari

*Em função das versões digitais do Zero, por uma questão ética, a identidade do entrevistado foi preservada para evitar sua identificação e possíveis transtornos a ele.

**A entrevista com Juan Pablo Perera Gómez foi realizada em inglês. As respostas foram traduzidas pelos repórteres deste texto.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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