Desinformação “acima de tudo”
As fakes news têm se espalhado especialmente entre bolsonaristas cristãos, instigando atos antidemocráticos
Por Júlia Weiss
“Esquerdistas invadem igreja em Joinville (SC)”. Essa era a manchete de uma das várias fakes news que recebi durante o período eleitoral em um grupo de cristãos evangélicos no aplicativo WhatsApp. Chegou no dia 19 de outubro, entre os dias mais intensos que dividiram o primeiro e o segundo turnos das Eleições de 2022. A notícia em questão foi desmentida pela própria liderança da paróquia citada, que explicou que a Igreja da Paz e o Instituto Educacional Luterano de Santa Catarina (Faculdades Ielusc) dividem o mesmo pátio. O que aconteceu foi um protesto de alunos do curso de Jornalismo, da instituição de ensino privada, contra a demissão de uma professora, e o barulho dos manifestantes chegou a atrapalhar o culto, que acontecia no mesmo horário. Não houve qualquer tipo de invasão à área interna da igreja.
As eleições presidenciais deste ano foram marcadas por intensa polarização entre o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em que os outros nove candidatos à disputa apareciam como coadjuvantes. No primeiro turno, Lula obteve 48,43% dos votos válidos, e Bolsonaro 43,20%, o que já apresentava um cenário acirrado. O segundo turno entrou para história com a menor diferença de votos entre o primeiro e o segundo colocado em uma eleição presidencial. Foi também a primeira vez que as abstenções foram menores que as do primeiro turno. Lula foi eleito com 50,90% dos votos e Bolsonaro ficou logo atrás com 49,10%, apenas 1,8% de diferença, o que representou mais de 2,2 milhões de votos.
Em um contexto onde cada voto fazia diferença, ambos os lados utilizaram-se dos mais diversos artifícios — uns agindo do que a lei permite; outros recorrendo à propagação de desinformação que invalidasse o seu oponente. Um exemplo disso ocorreu no dia 25 de outubro, quando Bolsonaro atacou Lula durante um comício na Bahia. Em afirmação falsa, Bolsonaro disse que Lula foi a comunidades no Rio de Janeiro para se encontrar com traficantes e ainda acusou o petista de ter “prometido alguma coisa aos marginais”. E isso não vem de hoje.
Desde 2018, Jair Bolsonaro e seus filhos se utilizam de fake news para se promover e construir uma ideia de “salvador da pátria”, em particular entre seus eleitores mais adeptos. O artigo acadêmico “‘Fake news acima de tudo, fake news acima de todos’: Bolsonaro e o ‘kit gay’, ‘ideologia de gênero’ e fim da ‘família tradicional’’’, da Revista Eletrônica Correlatio, baseado em pesquisa bibliográfica-documental, aponta que Bolsonaro foi eleito presidente por conta da veiculação de notícias inverídicas em redes sociais como o WhatsApp, Twitter e Facebook, com o objetivo de causar um sentimento de terror social pelo suposto extermínio da “família tradicional brasileira” — constituída apenas por pai, mãe e filhos. Neste ano não foi diferente: manchetes como essa do início do texto é apenas um exemplo do que circulou nessas semanas entre alguns cristãos — e este fato não é por acaso.
Segundo o e-book Desinformação e fact-checking: reflexões sobre a credibilidade no jornalismo e as experiências de checagem no Brasil, no capítulo “O fenômeno da desinformação pelas lentes da religião e a ação do Coletivo Bereia — Informação e Checagem de Notícias”, escrito pela editora-chefe do coletivo, Magali Cunha: “os estudos sobre esse fenômeno [da desinformação] apontam a religião, especialmente o Cristianismo, como facilitador da propagação de desinformação, e de fiéis como público-alvo desta prática”. Mas por que isso acontece?
Um das razões é trazida no artigo “Calvino, Bullying, Fake news e Dignidade humana,” do professor e coordenador dos cursos de Teologia e História da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), Sérgio Ribeiro Santos, afirmando que “o campo religioso tem uma capacidade para forjar comportamentos e valores morais com maior intensidade, praticamente, do que qualquer outro campo”. Isso faz refletir que o atual presidente encontrou nessa parcela da população brasileira que se denomina evangélica — 31%, segundo pesquisa do Datafolha de 2020 –, um eleitorado passível de manipulações sutis, seja por notícias falsas, seja por convencimento através de suas lideranças. Por medo, pessoas encontraram na figura de Bolsonaro a possibilidade de perpetuação de próprios valores morais, mesmo que isso signifique a condenação de tudo e de todos que não concordam com eles.
Exemplo claro desse medo são os atos antidemocráticos de bolsonaristas insatisfeitos com os resultados das eleições, pedindo por intervenção militar e novas eleições, ambos inconstitucionais, que aconteceram pelo Brasil nos últimos meses. Também recentemente um militar da Marinha apareceu em um vídeo incentivando os atos em frente aos quartéis e afirmando que o presidente eleito Lula não tomará posse do dia 1º de janeiro de 2023. Ronaldo Ribeiro Travassos também defendeu o assassinato de eleitores do petista. O militar atua no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), chefiado pelo general Augusto Heleno, aliado de Bolsonaro. Movimentos como esses vislumbram cenários incertos e inseguros para o dia da posse.
Depois do segundo turno, o TSE se manifestou dizendo que vai continuar monitorando grupos que defendem o golpe militar para evitar o “Capitólio brasileiro”. A ação tem o objetivo de impedir que ocorra no Brasil um movimento parecido com o que aconteceu nos Estados Unidos, quando o Capitólio foi invadido por apoiadores de Donald Trump que queriam evitar a diplomação de Joe Biden, em janeiro de 2021.
Nessa segunda-feira, 12 de dezembro, no mesmo dia da diplomação do presidente e do vice-presidente eleitos, terroristas incendiaram dois ônibus, ao menos três carros, espalharam botijões de gás (GLP) próximos aos incêndios, vandalizaram edificações, tentaram invadir o prédio da Polícia Federal, impediram trânsito em vias e coagiram pessoas. Muitas dessas ações foram filmadas e publicadas em redes sociais e portais de notícias. Quatro fatos chamam atenção em relação a isso: o despreparo da Polícia Militar do DF, a demora de três horas para que o ministro da Justiça e Segurança Pública se manifestasse contra os atos, a dificuldade do Corpo de Bombeiros em conter os incêndios e, sobretudo, nenhuma prisão ter sido feita.
Todo cuidado para a defesa da democracia será necessário no dia da posse, em 1º de janeiro de 2023, que contará com a participação de ao menos 17 chefes de estado já confirmados.