Vida dos autistas além da rejeição social
Histórias de quem enfrenta o transtorno e se esforça para desmistificar os estereótipos
Por Luíza Giombelli e Fernanda Struecker
“Sou autista. Estou à disposição de quem quiser entender melhor sobre o assunto, tirar dúvidas, enfim. É um assunto importante que precisa ser conhecido e discutido. Beijocas”. Foi com essa postagem no Mulheril, um grupo do Facebook, que Gabriella Dias chamou a atenção. A jovem de 21 anos, determinada a falar sobre sua condição, extremamente eloquente, de cabelos curtos e sorridente, não se encaixa no estereótipo de autismo presente no imaginário social.
Após sair de um relacionamento abusivo — 15kg mais magra e em um estado de depressão profunda –, ela passou a ser acompanhada por uma psicóloga que ajudou a entender sua maneira de se relacionar com outras pessoas. Foi desse tratamento que veio seu diagnóstico como autista, há seis anos.
Agora estudante de Medicina da Faculdade Pequeno Príncipe, de Curitiba, relata que na infância, não conseguia usar uma tesoura, não aprendia a matéria passada em aula e nem se relacionava com outras crianças. Para um aluno ingressar na primeira série do ensino fundamental, precisa saber essas duas funções. Como Gabriella não tinha conseguido aprendê-las, a professora sugeriu para sua mãe que a menina estudasse em uma escola “especializada”. Ela recusou, mudou a filha de escola e a ensinou a ler e escrever em casa.
Quando foi diagnosticada com autismo, Gabriella escolheu não contar para as pessoas do colégio em que estudava porque se sentia fora do “comum”. O apoio familiar lhe deu as oportunidades para se desenvolver. A mãe sempre lhe diz que sua capacidade é ela mesma que dita, não os outros. Inspirando-se nisso, Gabriella fez aulas de francês, inglês, japonês, sapateado, canto, piano e teatro.
Foi encenando que ela se encontrou e aprendeu a se expressar melhor. A pessoa com autismo têm pouco controle sobre o próprio corpo e, em momentos de crise, as emoções são exacerbadas, mesmo que não sejam exteriorizadas.
Nessas ocasiões — que podem ser desencadeadas por raiva, ansiedade, tristeza e até felicidade –, Gabriella diz ter características de um autista “clássico”, como se balançar, girar e não deixar que encostem nela. Afirma que, muitas vezes, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas é abraçá-la, mas isso torna a crise ainda pior. Para o autista, tudo é demais: as cores, os sons, os toques, os cheiros, tudo se mistura.
Gabriella tenta explicar o autismo como aprender a andar de bicicleta. Na primeira vez, várias ações simultâneas tem de ser assimiladas: mover as pernas, segurar o guidão, equilíbrio, guiar na direção desejada. Nas próximas vezes, as coisas se tornam automáticas e não é necessário um controle de cada passo. Mas o cérebro do autista não consegue fazer essa simplificação.
A estudante acredita que é preciso acabar com visões estereotipadas sobre o autismo e transtornos mentais, motivo pelo qual escolheu estudar Medicina: “As pessoas não tem noção histórica do que é autismo. Isaac Newton era autista, Tesla era autista!”. E acrescenta que “o autismo é uma doença social, não mental”. A falta de entendimento sobre os diferentes níveis de autismo afeta as relações sociais de Gabriella, inclusive no curso em que estuda, em que não existe uma aula sobre o transtorno no currículo. Ela diz que por ter um grau mais leve de autismo, alguns não acreditam que ela tenha o transtorno, acham que ela “está inventando”.
Gabriella quer que qualquer pessoa com algum transtorno emocional ou mental saiba que um diagnóstico psiquiátrico não tem capacidade de rotular ou limitar alguém. Para ela, não existem pessoas normais e anormais, apenas pessoas que funcionam de formas diferentes. “Precisamos fazer uma inclusão que realmente funcione e, para isso, temos que parar de olhar para essas pessoas como menos capacitadas do que elas são”.
Crescimento e aprendizado
Uma em cada 160 crianças possui Transtorno do Espectro Autista (TEA), segundo dados de janeiro da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas algumas pessoas com TEA precisam de atenção constante e apoio durante suas vidas. Esse é o caso de Cláudio Garcia Vieira.
Há 48 anos, em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, Iolanda Garcia Vieira teve filhos gêmeos. Ela estranhou que um dos meninos não fazia contato visual com ninguém e desconfiou que fosse cego. No oftalmologista, descobriu que a visão do filho era ótima. E se fosse surdez? O otorrinolaringologista disse que a audição dele não tinha problema algum. Aos dois anos e meio, veio o diagnóstico: Cláudio é autista de nível severo. Na época, conta Iolanda, muitas pessoas escondiam seus filhos em casa quando nasciam com deficiência.
Quase cinco décadas depois, Iolanda conta sua história enquanto Cláudio acaricia e dá carinhosos beijos nos cabelos brancos da mãe. Em torno deles, ao som do violino e do piano, crianças autistas de diferentes idades brincam, dão risada, e choram quando é hora de ir embora. Tudo isso acontece na sala principal da Associação de Pais e Amigos do Autista de Florianópolis (AMA). A associação foi criada por Iolanda há 22 anos e hoje garante, a 72 famílias, atendimento nas áreas de Fonoaudiologia, Psicologia, Neuropsicopedagogia, Musicoterapia, Educação Especial Comportamental e Educação Física.
É difícil encontrar apoio quando um filho é diagnosticado autista, mas quando Cláudio nasceu era ainda pior. Pouco se sabia sobre o transtorno, e Iolanda contava apenas com a ajuda de duas vizinhas, já que morava longe da família. A fonoaudióloga do filho a convenceu, depois de muita relutância, a levar Cláudio na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). “Tu sentes muita pena de ti mesma, não é?”, foi o que a médica falou, “Pois venha cá que eu vou te mostrar uma coisa”. Iolanda então foi apresentada a três pequenos irmãos com necessidades especiais, uma situação muito mais complicada que a sua. Nesse momento, entendeu que o caminho ia ser duro, mas tinha que ser feito.
A família se mudou diversas vezes no intuito de encontrar o suporte necessário. Moraram no Rio de Janeiro, em duas cidades do Rio Grande do Sul — Porto Alegre e Rio Grande –, até que pararam em Florianópolis. No início, contava com o apoio de uma médica especializada em autismo e com a Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE), que o filho frequenta até hoje.
Quando é questionada sobre as dificuldades, só tem olhos para o filho. Iolanda sabe que mesmo sendo complicado para ela, para ele ainda é pior
O melhor jeito, afinal, foi ir aprendendo sozinha. Cláudio a ensinou suas deficiências e qualidades. Ajuda a mãe nas tarefas domésticas, encontra qualquer coisa que foi perdida dentro da casa com sua incrível memória fotográfica, aprendeu a tear e cria tapetes impecáveis por causa de seu perfeccionismo.
Com os anos, Iolanda também desenvolveu truques para aliviar as crises muitas vezes violentas e autodestrutivas do filho. Em meio a um dos ataques de Cláudio, a mãe usou a paixão dele por roupas para acalmá-lo: sem querer, rasgou um pedaço da camiseta que ele usava. Isso o deixou tão surpreso que abriu espaço para a tranquilidade. A única coisa que a mãe ainda não consegue controlar é a violência com ele mesmo. Quando não gosta de algo, Cláudio acaba se ferindo e até batendo a própria cabeça na parede.
Para Iolanda, o maior desafio é a falta de comunicação com o filho, que a entende muito bem, mas não consegue se expressar. Cláudio já ficou internado por dois dias sem que descobrissem o que tinha. Alguns médicos chegaram a dizer que não era nada; no entanto, a família sabia que ele estava sentindo muita dor. Foi apenas por insistência de Iolanda que os médicos finalmente realizaram uma tomografia, que identificou um cálculo renal.
Com Cláudio, Iolanda aprendeu a viver um dia de cada vez. Sempre que é questionada sobre suas dificuldades, responde que, por mais que seja difícil para ela, é ainda pior para Cláudio. Sente tristeza ao pensar no quanto o filho depende dela. É nessas horas que Iolanda leva Cláudio para passear, os dois sem destino certo, mas conquistando a cada passo a vitória de viver com qualidade.