Educação sexual: tabu, desinformação e uso político perpetuam abusos de crianças e adolescentes

Zero
8 min readMar 15, 2022

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Especialistas apontam a necessidade de discussões sobre o assunto para que vítimas saibam reconhecer violências sexuais

“Tenho uma história de vida muito triste: dos oito aos quatorze anos, fui abusada pelo meu progenitor. A pessoa que deveria me proteger foi a que mais mal me fez”. Essas foram as palavras de Angélica*, 51, que só conseguiu falar sobre o que passou, duas décadas depois dos casos de abusos. Ela conta que só teve conhecimento de que as situações, às quais era exposta, não eram normais quando chegou à fase adulta da vida “resolvi me abrir e alertar para que as pessoas não tenham medo. Existe um temor de falar a respeito e eu costumo sempre dizer que segurança não é opção”. Após compreender ao que foi sujeitada, Angélica criou um grupo na rede social Facebook para combater a pedofilia e dar apoio às crianças que foram abusadas.

São vários os fatores que fazem com que as pessoas submetidas a abusos sexuais e outras formas de agressão, assim como Angélica, demorem a reconhecer o problema e não saibam como agir diante dele. Um deles, segundo a sexóloga e doutora em Psicologia Clínica, Ana Maria Zampieri, é a falta de uma educação sexual adequada. “Pesquisas mostram que crianças e adolescentes educados sexualmente terão menos probabilidade de estarem expostos a abusos intra ou extrafamiliares”, explica. Para a psicóloga, esses ensinamentos podem facilitar o discernimento sobre estar sendo ou não vítima de violência sexual. No entanto, como é um assunto tratado com tabu, muitos responsáveis não sabem como e quando abordar a temática ou, em diversos casos, acreditam que conversar sobre o tema pode incitar precocemente crianças e adolescentes a iniciarem a prática sexual ou até mesmo “influenciar” a algum tipo de comportamento.

Educação sexual: quando e como

Em 2018, durante as entrevistas para eleição presidencial, o então candidato ao cargo, Jair Bolsonaro (na época, do PSL), em entrevista para o Jornal Nacional, levou um livro com o título Aparelho Sexual e Cia, mostrando-o diante das câmeras e afirmando que era distribuído nas escolas públicas do país, como uma forma de espalhar “uma ideologia de gênero”. O atual ocupante do cargo mais importante do país intitulou a cartilha como parte do “kit gay” — termo cunhado em meados de 2011 –, quando era deputado. Com a sua eleição, as falas mentirosas, preconceituosas e desprovidas de conhecimento sobre o assunto fortificaram e intensificaram os discursos contra a educação sexual, como se fosse algo para disseminar a temida “ideologia de gênero”.

O livro Aparelho Sexual e Cia é de origem francesa, escrito por Hélène Bruller e Zep, e, ao contrário do que Bolsonaro disse, não foi distribuído pelo Ministério da Educação. Na verdade, foram compradas 28 unidades pelo Ministério da Cultura, adquiridos no Programa Livro Aberto, e, diferente das mentiras fabricadas, não foram enviadas para nenhuma biblioteca escolar no país. O conteúdo sobre educação sexual pode ser lido tanto pelos jovens para entenderem sobre a puberdade, a vida sexual, compreensão sobre o próprio corpo e abusos sexuais, quanto pelos responsáveis, como uma ajuda para saber como abordar a temática com as crianças e os adolescentes. Ao final do livro há destaque para o Disque 100, que acolhe denúncias de exploração e abuso sexual com crianças e adolescentes.

A educação sexual visa, ainda, explicar sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e sobre gravidez, além de ensinar como prevenir tais situações. De acordo com um estudo realizado em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 2008, de 4.325 adolescentes que tinham tido a primeira relação sexual até os 14 anos, 30% não usaram métodos contraceptivos e 18% não utilizaram preservativos. E, em 2018, cerca de 21 mil bebês nasceram de mães com idade igual ou menor a 15 anos.

Muitos pais ou responsáveis encontram dificuldades a respeito de quando deve-se explicar e debater assuntos que envolvem educação sexual e sexualidade aos mais jovens. A psicóloga Ana Maria Zampieri afirma que “a educação sexual das crianças começa na educação sexual dos pais” e que a época ideal é quando os mais novos começam a levantar questões sobre o assunto, seja a respeito do próprio corpo ou de algo que ouviu e viu. “O momento apropriado é aquele, dentro de cada família e de suas necessidades, com valores que não estigmatizem uma sexualidade binária e heteronormativa como sendo a única normal”. Segundo a sexóloga, é importante utilizar os nomes verdadeiros para se referir a cada órgão e questiona “se a gente não tem apelido para joelho e orelha, por que tem que dar tantos apelidos para o pênis, vagina, vulva e ânus?”.

Fake news contra a educação

Com a repercussão das falas do atual líder do Brasil, a educação sexual passou a ser confundida com o termo “ideologia de gênero”. Tal expressão, além de não ser verídica, é carregada de preconceito e desinformação, uma vez que ela estaria “ensinado como ser gay”, deixando claro a distorção do que significa educação sexual somado ao preconceito sobre o que é ser uma pessoa LGBTQIA+.

Não há como influenciar alguém a “se tornar” homossexual, ou até mesmo transicionar de gênero, pois uma diz respeito à atração que uma pessoa sente por outra e a outra se refere ao gênero (masculino, feminino ou agênero) que a pessoa se identica. É algo que deveria ser visto como algo natural, pois vem do interior da pessoa, e de sentimentos sob os quais não tem controle. O que poderia e deveria ser ensinado é o respeito ao próximo e que, conforme o princípio da isonomia, presente no artigo 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

A confusão acontece entre os termos “educação sexual” e “sexualidade”. O ensino sobre métodos contraceptivos e a prevenção à gravidez precoce é uma área que permeia a vida e que surge como necessidade para instrução dos mais novos conforme crescem.

Maristani Zamperetti, doutora em Educação e professora de Fundamentos da Educação em Artes Visuais na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do Rio Grande do Sul, já foi educadora infantil de Artes Visuais, por quase 20 anos, na educação básica no estado. Ela conta que, no tempo em que lecionava, se deparou com diversas situações em que crianças sofriam abusos sexuais, e que, segundo ela, faltava conhecimento por parte tanto das vítimas quanto das pessoas ao redor, as quais acabavam normalizando esses acontecimentos. “Eles tinham muito tabu em relação a isso, e eu percebia que as famílias tinham muita dificuldade de trabalhar [esse assunto]. E via no ambiente escolar que não existia muito espaço pra isso, embora a gente saiba que exista leis desde os anos 1980–1990 para a obrigatoriedade do ensino da educação sexual nas escolas”, relembra a professora.

Educação sexual e o governo atual

Entre os meses de janeiro e fevereiro de 2020, um assunto permaneceu em pauta na mídia: a política da ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em estimular a abstinência sexual como parte da proposta de combate à gravidez na adolescência. A abstinência sexual é algo que faz parte de alguns grupos no meio evangélico, dos quais a ministra faz parte. As diferentes correntes do cristianismo admitem o casamento apenas entre homem e mulher que, em tese, não devem ter praticado relação sexual antes das núpcias. Há, inclusive, um movimento chamado Eu Escolhi Esperar (EEE), fundado por um casal de pastores, que promovem conferências pelo Brasil instruindo jovens de diferentes de igrejas a adotarem a abstinência sexual. Na condição de política pública, no entanto, é criticada por especialistas, bem como pedagogos e psicólogos. Joselayne Moreira, 25, psicóloga em Vila Velha, Espírito Santo, comenta que o ser humano é curioso, e por isso, a tendência é buscar o que ainda não conhece. “O sexo faz parte do nosso desenvolvimento. Acredito que uma educação envolvendo informação sobre as consequências do sexo desprotegido seria muito mais efetiva”, explica ela.

Além disso, a educação sexual não é algo que envolve atos sexuais explícitos, como dizem aqueles que são contrários à ideia. Joselayne contextualiza: “Essa educação deve ser inserida nas escolas desde muito cedo, adequando a linguagem a cada fase de desenvolvimento”. Em concordância, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), do Ministério da Educação (MEC), o documento de caráter normativo que define o conteúdo de aprendizagem da Educação Básica, disponibilizada na internet, aborda dentro da disciplina “Ciências Naturais”, na categoria ‘Ser Humano e Saúde’, os temas a serem ensinados pelos professores do Ensino Fundamental I, do 1º a 5º ano, tais como mudanças corporais, sexualidade, relação com o sexo oposto, prazer, afeto, responsabilidade.

Normalmente, o tema do corpo humano e seus sistemas, bem como o aparelho reprodutor, é ensinado no 5º ano, para alunos na faixa dos 10 ou 11 anos. Homologado entre 2017 (Educação Infantil e Ensino Fundamental) e 2018 (Ensino Médio), o documento com as temáticas a serem trabalhadas pelos professores diz o seguinte:

“Acerca da juventude os alunos verificam a crescente independência e as acentuadas mudanças no corpo, sendo momento de transição da infância para a vida adulta. Os alunos poderão compreender que essa é uma fase de muitas e fundamentais escolhas para a vida, com novas responsabilidades e dificuldades a serem resolvidas. É um momento de profundas modificações no corpo, no modo de se relacionar com o mundo, com sua sexualidade e com o sexo oposto. A consciência do corpo que se inicia na infância continua a se desenvolver e se amplia nessa fase, o que é facilitado pelo incentivo do adulto.”

E ainda:

“As questões sobre sexualidade, que muito provavelmente surgirão [dentro do estudo do sistema reprodutor], merecem ser trabalhadas. Assuntos como a construção da identidade sexual, o prazer, a masturbação e demais aspectos são abordados levando-se em conta os componentes biológicos e culturais. É importante que o professor esteja atento e explicite os aspectos culturais envolvidos, buscando evitar preconceitos e responder dúvidas, valorizando os vínculos entre afeto, responsabilidade, sexualidade e auto-estima. É também da maior importância que o grau de maturidade psíquica e biológica da classe seja parâmetro no aprofundamento das respostas ou investigações acerca desses assuntos.”

Considerando-se o que diz a BNCC, o próprio governo deveria reconhecer que o assunto precisa ser tratado com as crianças, independente da opinião política do governante em questão. Falar de sexualidade com os que estão na infância não quer dizer estimular determinada faixa etária a praticar atos sexuais. Vale destacar, também, que as meninas costumam ter sua primeira menstruação entre os 10 e 12 anos, ressaltando a importância da discussão do tema nessa idade. E o ambiente escolar é propício para isso, já que crianças de diferentes realidades frequentam o espaço, podendo haver pais que não conversam sobre sexualidade, ou até mesmo outros que não foram educados para lidar com isso. Professor de biologia há 32 anos dos ensinos fundamental e médio de rede particular, Luiz Sérgio Monteiro afirma que os responsáveis procuram a direção dos colégios para que isso seja ensinado aos alunos desde o 6º ano.

Quanto ao ensino de métodos contraceptivos, este deve vir no 8º ano do Ensino Fundamental II, também conforme a BNCC do MEC. Confira o trecho que está disponível do documento disponibilizado pelo órgão no site oficial, em relação ao conteúdo das Ciências Naturais para a série mencionada:

“Compreensão dos processos de fecundação, gravidez e parto, conhecendo vários métodos anticoncepcionais e estabelecendo relações entre o uso de preservativos, a contracepção e a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, valorizando o sexo seguro e a gravidez planejada.”

No 8º ano, os alunos têm idade entre 13 e 15 anos, considerando-se a faixa etária de quem entra no processo escolar com a idade indicada, quem repetiu pelo menos uma série ao longo dos períodos escolares e as diferentes datas de aniversário. Citando a pesquisa realizada em Pelotas, em 2008, com um grupo amostral de 4.325 adolescentes entrevistados, 18,6% iniciaram a vida sexual antes dos 14 anos.

Falar sobre educação sexual não diz respeito somente a um ensino aprofundado de doenças, mas também sobre a gravidez precoce. Uma pesquisa realizada pelo EducaCenso, em 2019, aponta que 20% das adolescentes que engravidaram abandonaram a escola. Sem um histórico adequado de escolaridade, as chances de conseguir um emprego formal são menores, levando a trabalhos informais e condições precárias de vida.

*Angélica é o nome fictício utilizado para preservar a imagem da vítima

Reportagem por Bárbara Justi e Pedro Correa, com orientação dos professores Ildo Golfetto e Valentina Nunes.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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