SÉRIE — Eu virtual: distante em corpo, conectado em rede | parte 1
A presença intensa dos usuários no ambiente virtual, já tendência em tempos pré-pandêmicos, firmou-se agora com ênfase ainda maior. Em casa, o celular na mão virou passaporte para o universo dos algoritmos da internet
Reportagem por Maria Clara Flores
Pense o seguinte: durante 100 dias do seu ano, você estará on-line ininterruptamente, sem intervalo nem mesmo para dormir, se alimentar, ou fazer qualquer outra coisa que não seja nas redes digitais. Deu uma sensação de fadiga — e dor na vista –, só de imaginar? Se você é um usuário típico de internet, que dispensa quase sete horas do seu dia ao ambiente virtual, seu tempo conectado equivale a mais de 100 dias ininterruptos — e isso para dizer o mínimo. É que em 2020, por conta da pandemia de covid-19, muito do que era presencial foi suspenso ou passou a ser a on-line, e tanto tempo em casa resultou em uso ainda mais intenso da internet.
Em função da quarentena, políticas de distanciamento social e dos “lockdowns” adotados por diversos países ainda em março deste ano como forma de enfrentamento à pandemia, o tempo gasto em dispositivos com acesso à internet por pessoas de 16 a 64 anos cresceu. É o que aponta o Relatório Digital 2020: Julho, elaborado pelo DataReportal.com, que publica análises a partir de dados disponibilizados por agências de pesquisa de mercado, empresas de internet e mídia social, governos e órgãos públicos, em parceria com a We Are Social e a Hootsuite.
No relatório, a maioria dos entrevistados afirmou estar utilizando mais celulares e dispositivos móveis (70%), assim como notebook (47%) e PC ou computador de mesa (33%). Rafael Lopes, de 26 anos, professor de Ciências da Natureza no Ensino Fundamental e estudante de Química na Universidade Federal da Bahia (UFBA), identifica-se com os números revelados pela pesquisa. Neste período de pandemia, viu seu consumo de internet triplicar, já que não trabalha nem estuda mais de forma presencial. Agora, Rafael está sempre no celular ou no computador dentro de casa, e isso tem exercido mudanças no seu comportamento on-line.
“As redes ficaram muito mais chamativas para mim. Eu fiquei e fico passando tempo até hoje lá, tomando carga de dopamina vendo a foto das pessoas”, conta, referindo-se ao neurotransmissor relacionado ao humor e prazer.
O WhatsApp, que já estava presente em sua rotina pré-pandemia, especialmente para tirar dúvidas dos alunos, passou a ser mais usado. E Rafael estreou alguns aplicativos também, como o Twitter que, em tom de brincadeira, comenta ter criado para “poder reclamar das coisas”, e a seção de podcasts do Spotify, por meio dos quais começou a estudar francês. Considera o Instagram, no entanto, seu campeão de acessos durante a quarentena.
O Instagram e o WhatsApp são também os aplicativos mais presentes no dia a dia de Suelen Estanislau, de 25 anos. Proprietária de uma loja on-line, a empreendedora conta que, ainda que trabalhe bastante com as redes, seu tempo conectada cresceu “não só como meio de trabalho, mas também conversando com as pessoas e interagindo com todo mundo que estava ali”. O Relatório Digital 2020: Julho revela que o tempo gasto pelas pessoas em aplicativos de redes sociais e de comunicação dobrou, e que o aumento foi ainda mais significativo na faixa dos 16 a 24 anos (58%) e dos 25 a 35 (44%).
Sara Dias, de 21 anos, é estudante de Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e relata que perdeu “sono para ficar rolando feed do Insta, vendo fofoca e treta no Twitter”. Isso fez disparar seu consumo: se antes dedicava em torno de uma hora às redes sociais por dia — “era um pouquinho de manhã, pegava o celular perto do meio-dia, e aí a noite fuçava mais um pouco antes de dormir” -, com a pandemia chegou a utilizar o Instagram cinco horas por dia e o Twitter, mais três. Isso porque sentiu necessidade, ela conta, de entrar com maior frequência nas redes sociais.
“Minha rotina estava completamente parada, voltei para a casa dos meus pais, não tinha nada para fazer. Ver série, enjoei das séries; ver filme, não tinha paciência para ver o filme todo; e parece que ficar consumindo a vida alheia era muito mais interessante”, diz Sara — combinação que a fez dormir, por vezes, às seis da manhã, acordando a uma da tarde.
O algoritmo te trouxe até aqui
O fascínio que o mundo das redes virtuais exerce sobre os internautas resulta do trabalho executado pelos algoritmos, uma sequência de operações que pode ser utilizada como mediação sobre o que é exibido para cada usuário, explica a professora do Departamento de Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Letícia Cesarino.
“Os algoritmos trabalham propositalmente mobilizando a cognição das pessoas, principalmente no sentido de fazê-las ficarem grudadas na tela a maior parte do tempo possível”, comenta.
Letícia, que pesquisa mídias digitais e produção de realidade, afirma que essa é a grande novidade das redes sociais contemporâneas: embora tenham sempre existido, o que muda hoje com suas versões virtuais é, principalmente, o tipo de mediação. “A noção de rede social, de modo mais geral na Sociologia e nas Ciências Sociais, designa relações que se dão de forma mais horizontal, e isso é algo que sempre existiu em todas as culturas e também na nossa”, explica. Nesse sentido, o termo redes sociais aparece como oposição a outras formas de relação e organização mais verticalizadas, como as hierarquias sociais.
“Em boa parte da história no Ocidente, as relações mais do tipo rede se davam ou em interações face a face, nas comunidades, nas famílias, grupos de amigos, ou então através de mídias que antecederam a internet, mas também tinham um caráter mais horizontal, como por exemplo os fanzines”, comenta a professora. Com a chamada web 2.0, baseada na economia de dados e nas mídias sociais, o modo de conexão se alterou.
“Se expandiu muito esse tipo de conexão em rede, onde pessoas que não se conheciam começaram a se encontrar e se conectar em perfis, muito mediada não só por mediações digitais, mas por mediações algoritmizadas”.
Dados pessoais ou geográficos, padrões de uso de aplicativos e diversos outros insumos que são gerados a partir da utilização das ferramentas computacionais pelos usuários abastecem os algoritmos e proporcionam a “governança algorítmica”, conforme termo definido pelo pesquisador da Universidade de São Paulo, Julio Cesar Lemes De Castro. Essa estrutura permite a fragmentação e recombinação dos sujeitos, orientando suas relações e intensificando semelhanças de identidade, ou seja, formam-se bolhas de informação e interrelações. Com o surgimento da internet, as comunidades virtuais passaram a aproximar ainda mais aqueles que pensam de forma semelhante, transpondo barreiras físicas ou geográfica, mas construindo empecilhos a ideias e pessoas que representam visões opostas.
Os algoritmos das redes compõem um intrincado e extenso universo: especula-se que somente o Google utilize cerca de 200 mecanismos como fatores de rankeamento dos sites hospedados na web. “Especula-se”, porque por mais que alguns desses fatores sejam divulgados pelo próprio buscador, não é vantajoso para a companhia a exposição de todos os segredos (que existem, de fato, já que muitos desses mecanismos foram revelados em estudos). Entre as dezenas de algoritmos, alguns analisam especificamente o comportamento do usuário no processo de busca e navegação, como os sites que o internauta favorita.
Para a professora da UFSC, a algoritmização das redes seria a característica mais singular das relações sociais em rede dos dias atuais, muito diferente da década de 90, quando a internet começou a se popularizar pelo mundo. “Naquela época de desktop, você tinha no máximo um computador por casa, tinha internet discada, depois internet a cabo, mas muito lenta”, menciona Letícia. O advento dos smartphones alterou definitivamente o uso da internet em escala mundial. Esses dispositivos provocaram o barateamento do acesso à internet e permitiram o uso constante das redes, comenta a professora da UFSC. Além disso, “outra característica também é que você individualiza, porque antes era um computador para uma família, e agora não só cada pessoa tem seu modo de conectar à internet, seu smartphone, como muitas vezes a mesma pessoa tem mais de um aparelho”, explica.
Os celulares são, hoje, o principal dispositivo de acesso à internet por pessoas de 16 a 64 anos. Dados presentes no Relatório Digital 2020: Julho demonstram que o uso dos celulares corresponde a 50,1% do tempo de internet dos usuários. Acesso esse que também vem se ampliando por todo o globo: em 2012, existiam 2,48 bilhões de pessoas conectadas às redes, número que passou para 4,54 bilhões em 2020 — um aumento de mais de 80%. Hoje, quase 60% da população mundial está on-line.
A sociabilidade digital, essencial à contemporaneidade, e a adesão ao ambiente virtual, já tendência antes mesmo da pandemia, firmou-se agora com mais ênfase. Letícia interpreta que “esse hábito de estar sempre passando as relações pessoais, relações de informação e de acesso ao mundo exterior pela internet, que já era uma tendência que aumentava, pode ter ganhado impulso com a pandemia”.
Te vejo por telas (e nas telas)
A proprietária de loja on-line, Suelen, acredita que “o ser humano precisa ter relações para a vida, para crescer pessoalmente. Como cada um ficou dentro da sua casa, o melhor meio para se conectar com outras pessoas foi pelo celular ou pelo computador mesmo”. De fato, para Rafael, professor do Ensino Fundamental, os aplicativos de videoconferência — “meets da vida, os zooms da vida”, ele diz — possibilitaram manter relação com os amigos. “A relação com as pessoas próximas a mim, que são meus amigos, está totalmente on-line, a gente está se vendo em reuniões pelos aplicativos”, conta.
A procura foi tamanha que aplicativos de videoconferência entraram para o ranking dos mais baixados em julho — o Zoom Cloud Meetings e o Google Meets apareceram na segunda e sétima colocação, respectivamente. O Relatório Digital 2020: Julho aponta que 83% dos entrevistados consideram que a conexão à internet tem ajudado a enfrentar os “lockdowns” relacionados à covid-19, e 74% a manter contato com amigos e familiares.
Ana Carolina Terhorst, designer gráfica de 27 anos, sente-se representada pelos 67% que responderam ver o auxílio da internet na realização do trabalho profissional. “Agora, com a pandemia, intensifiquei muito o uso do Instagram, principalmente por essa demanda de trabalho como administradora de mídias ser mais recorrente”, conta. Em função do trabalho, Ana ampliou sua presença nas redes sociais e sentiu até mesmo a necessidade de acompanhar mais o Facebook e criar um perfil no LinkedIn.
Ela afirma que baixou muitos aplicativos novos — “como trabalho com design, então isso é meio que inerente a minha natureza”. Estreou aplicativos para visualizar melhor o feed dos clientes e testar filtros. “De repente, fiquei carregada de freelas, sai do ‘trampo’ e aí precisei promover o meu trabalho de alguma forma, precisei me expor mais e expor mais meu trabalho pra conseguir clientes. Consegui fechar alguns trabalhos por conta do movimento no Instagram”, relata Ana.
Com a intensificação do uso de plataformas comunicacionais, como o Instagram, testemunha-se o surgimento de novos padrões de comportamento, trabalho e consumo. As redes sociais tornaram-se espaços para a emergência de produtores de conteúdo — um termo que, conforme o portal especializado em dados de mercado e consumidores Statista, pode ser aplicado a todos os usuários que produzem e postam conteúdo, independentemente dos resultados na captura de atenção do público.
Ana, que considera ainda ser “bem pouco popular” nas redes, tem visto seu trabalho por lá gerar bons resultados. Ela é tão produtora de conteúdo como são as celebridades da web, que acumulam milhares ou até milhões de seguidores em seus perfis. Conhecidas como influenciadores digitais (digital influencers, em inglês), essas figuras são também criadoras de conteúdo, porém buscam atrair a atenção para construírem capital social e fazer sucesso on-line — querem viralizar, virar meme ou hitar
Criadores de conteúdo, influenciadores digitais ou usuários das redes sociais, todos compõem a massa da afamada “sociedade do espetáculo”, cujas relações sociais estão mediadas por imagens e são indissociáveis das relações de produção e consumo de mercadorias, tal como o conceito concebido pelo escritor francês Guy Debord, cujos textos influenciaram as manifestações de Maio 68. E é sobre esse tema que se debruçará a segunda parte desta reportagem, prevista para ser veiculada na sexta-feira, dia 9 de outubro.
Enquanto isso, prezado leitor do Zero e usuário da internet, elaboramos uma lista — singela, mas potencialmente esclarecedora (ou estarrecedora) — de séries, filmes e livros que farão você imergir nesse emaranhado virtual em que estamos metidos!
- O Dilema das Redes (Jeff Orlowski — 2020)
O documentário, lançado recentemente pela Netflix, traz ex-funcionários de gigantes de tecnologia que explicam o funcionamento dos algoritmos nos bastidores, alertando sobre os perigos da massiva coleta de dados pelas redes sociais e aplicativos.
- Black Mirror (Charlie Brooker — 2011)
A antológica série de ficção científica já conquistou seis Emmys com seus episódios cronologicamente independentes. Black Mirror é uma análise da sociedade moderna, abordando ângulos obscuros da tecnologia, do capitalismo, do poder e da sociedade do espetáculo.
- Her (Spike Jonze — 2013)
O filme explora a relação contemporânea entre homem e tecnologia. O enredo tem como personagem principal um escritor solitário que decide comprar um assistente virtual de computador (OS), semelhante à Siri da Apple ou Cortana da Microsoft, e acaba se apaixonando pelo sistema.
- Matrix (Lilly e Lana Wachowski — 1999)
A trilogia, dos gêneros ação e ficção científica, descreve um futuro distópico em que a realidade é simulada, criada por máquinas que usam do calor e da atividade elétrica de corpos humanos como fonte de energia.
- O Jogo da Imitação (2014)
Vencedora do Oscar como melhor roteiro adaptado, a obra é uma biografia baseada no livro Alan Turing: The Enigma, inspirado na vida do criptoanalista britânico Alan Turing, que se tornou uma lenda na precursão do que conhecemos como algoritmo hoje.
- A Rede Social (David Fincher — 2010)
O drama biográfico relata a trajetória de Mark Zuckerberg, criador da rede social Facebook, desde a concepção da ideia até as brigas judiciais por direitos autorais.
- Fundação (1942 — Isaac Asimov)
Na série de livros de ficção científica, o escritor Isaac Asimov desenvolve uma ciência própria. Relacionada à informática e ao computador, a “psico-história” seria um misto de sociologia e matemática que, por meio de cálculos dos acontecimentos, tornaria possível prever o futuro da história humana.