[Este artigo contém tópicos relacionados à reportagem “Legado de 22”, sobre o centenário da Semana de Arte Moderna. Para ler a matéria completa, clique aqui]
O Brasil estava, em 1922, prestes a celebrar um século de independência em relação a Portugal e sua política encontrava-se em crise, dominada pelas oligarquias paulista e mineira, na chamada “República do Café com Leite”. Fora do território nacional, o mundo vivia as tensões do Pós-Primeira Guerra, que influenciaram o surgimento de movimentos de vanguarda nas artes. Ao mesmo tempo, as paisagens paulistana e carioca eram profundamente modificadas, com o avanço da industrialização, o êxodo rural e a chegada de imigrantes europeus e japoneses.
Nesse contexto de rápidas transformações, a arte brasileira permanecia “estagnada”, segundo parte da burguesia da época. Na visão de um grupo seleto da “Terra da Garoa”, como São Paulo era conhecida, o Parnasianismo, na literatura, promovia poemas com versos rimados e bem estruturados, valorizando a forma e deixando de lado a preocupação com o conteúdo. Já nas artes plásticas, o academicismo priorizava cópias e rejeitava o “diferente”, excluindo movimentos culturais que não se encaixassem na formalidade das escolas de Belas-Artes. Por isso, a intenção da Semana de 1922 era romper com o passado e fundar uma arte originalmente brasileira, atualizada aos novos tempos.
Enquanto várias tendências da modernidade tinham valor reconhecido pela sociedade paulistana, as propostas de arte moderna apresentadas na Semana “cutucavam” as classes mais ricas, sendo vistas com estranheza. Continham referências importadas do Cubismo, do Futurismo, do Dadaísmo, do Surrealismo e do Expressionismo europeus.
“Realmente, amigo, outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a cólera dos araras. […] Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimos! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira”.
Fragmento de uma carta de Mário de Andrade (1893–1945) para Menotti Del Picchia (1892–1988)
Curiosamente, os artistas que encabeçaram o evento eram integrantes das mesmas elites financeira e intelectual que os criticavam. Alguns, inclusive, descendentes da oligarquia cafeeira paulista. Através de sua influência conseguiram o apoio do então governador de São Paulo, Washington Luís, para o projeto. Contaram ainda com o patrocínio do empresário Paulo Prado, que alugou a “mais imponente casa de espetáculos da capital”, o Theatro Municipal, por 847 mil réis.
Para Luís Augusto Fischer, pesquisador de História da Literatura e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a ideia de que a Semana de Arte Moderna “inaugurou o Modernismo” é um dos problemas mais importantes no campo da História Literária. “Marcar um começo faz parte da típica visão vanguardista, que se concebe como algo que estabelece um marco-zero.
Segundo ele, a definição de Modernismo “escapa pelos dedos”. “Apenas no Brasil, essa palavra possui sentido de vanguarda pós-Primeira Guerra. Nos países hispanófonos da América, por exemplo, ‘modernismo’ designa a poesia pós-romântica. Aquilo que aqui recebeu nome de ‘Parnasianismo’ e ‘Simbolismo’, é chamado de ‘Modernismo’ em Buenos Aires”.
Comer referências externas, ‘vomitar’ arte interna
Por mais restrita às elites de São Paulo que tenha sido a abrangência da Semana de 1922, é preciso considerar que os anos 1920 não só renderam uma reviravolta gradual nas concepções artísticas brasileiras como também “pariram” um grupo de expoentes da literatura e da pintura, que carregariam futuramente o título de “clássicos do Modernismo” em praticamente todos os livros escolares. Entre entendimentos e desentendimentos, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Anita Malfatti e Menotti Del Picchia, conhecidos como o “Grupo dos Cinco”, definiram boa parte do rumo do movimento paulista de “atualização cultural”.
Os cinco amigos encontravam-se frequentemente, entre exposições de arte de colegas, saraus e pequenas “sociais” em suas casas. Foram responsáveis pelo referencial ideológico da Semana de Arte Moderna, bem como de um movimento maior que viria posteriormente: o “Antropofagismo”.
Em 1928, Tarsila presenteia seu marido Oswald com um óleo sobre tela com cores vívidas e formas geométricas: o Abaporu. Ao verem o quadro, Oswald de Andrade e um de seus colegas, o poeta Raul Bopp, se mostraram inspirados a fazer um movimento literário em torno do quadro. Assim nasceu o Manifesto Antropofágico, um documento que incentivava uma autonomia nas produções artísticas brasileiras, por meio da miscigenação.
Com origem no tupi, a palavra “Abaporu” significa “homem que come carne humana” ou “antropófago”. Desta forma, o que se propunha no Antropofagismo era parar de copiar as artes da Europa, devorar referências externas e devolver uma arte nova: uma versão completamente brasileira.
Em 1929, o “núcleo duro” do Modernismo paulista se rompe. Oswald e seu primo Mário de Andrade, até então aliados em um mesmo projeto, passam a criar rivalidades. Dois anos antes, Mário viajou para o Norte do país, na região Amazônica, e voltou interessado em conhecer mais do “Brasil Profundo”, através de estudos etnográficos. Em seus textos, começou cada vez mais a “abrasileirar” a língua portuguesa, transcrevendo marcas de oralidade. Seu novo estilo entrava em conflito ideológico com o antropofágico, que objetivava escandalizar a elite branca paulistana.
A nível pessoal, a amizade de Tarsila, Oswald e Mário se desgastou, à medida que Oswald ridicularizava a bissexualidade de Mário e esse último se apaixonava por Tarsila. Na década de 1930, os artistas se distanciaram, continuando suas produções intelectuais em caminhos distintos.
“A elevação de amizade sempre existida entre você [Tarsila], Osvaldo [como Oswald era chamado], Dulce e eu foi das mais nobres e tenho a certeza que das mais limpas, tudo ficou embaçado pra nunca mais. É coisa que não se endireita, desgraçadamente pra mim”.
Fragmento de uma carta de Mário de Andrade (1893–1945) para Tarsila do Amaral (1886–1973), datada de 4 de julho de 1929.
Modernistas na política
Os anos 1930 foram repletos de tensões políticas muito fortes, tendo como correntes em ascensão o Fascismo, o Nazismo, o Stalinismo e o Comunismo. A literatura nessa década tratava de questões sociais das mais diferentes regiões do país. As pessoas liam a Geração de 30 querendo conhecer a realidade de outros cantos do Brasil.
Pouco se sabe sobre o aspecto político dos artistas modernistas. Mas, de acordo com Anco Márcio Tenório Vieira, professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como “toda arte é um ato político”, esses indivíduos não poderiam deixar de ser pessoas políticas. Alguns eram até partidários. “Muitos participantes da Semana de 1922 vão se encaminhar para uma posição mais de extrema direita, filiando-se ao Partido Integralista e tornando-se profundos admiradores do Fascismo. É o caso de Menotti Del Picchia e Carlos de Alencar. Mário e Oswald de Andrade eram filiados ao Partido Republicano Paulista (PRP), um partido conservador, trabalhando para interventores do Governo Vargas em São Paulo.
Carlos Drummond de Andrade, socialista, foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, no Ministério da Educação de Getúlio. Mário de Andrade foi um dos fundadores do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), também a convite de Capanema. “Mesmo os ditos comunistas, como Portinari, que faz uma arte social, foram cooptados. Não podemos esquecer que os azulejos do Ministério da Educação são todos de Portinari, pintor quase oficial do Estado Novo”. Gilberto Freyre, um opositor de Vargas até 1945, por sua vez, foi perseguido e preso duas vezes.
“A democracia liberal, na época, era vista como um grande fracasso, por não ter conseguido impedir o acontecimento da Primeira Guerra Mundial. Aqueles eram anos confusos”, declara Anco.
Historiografia e relações de poder
A presença dos modernistas paulistas em instituições do poder público, bem como as suas associações às classes privilegiadas da época, facilitou a consagração da Semana de Arte Moderna de 1922 no “mito fundador” do modernismo brasileiro, ofuscando outras manifestações de vanguarda. Tanto as ocorridas ao mesmo tempo que o evento, em outras regiões do país, quanto as que aconteceram em São Paulo, em períodos precedentes.
Vicente do Rego Monteiro, pintor pernambucano, morava em Paris quando aconteceu a Semana. Junto com o irmão Joaquim do Rego Monteiro, já fazia uma pintura de vanguarda e estava muito envolvido com as tendências europeias. A paulista Anita Malfatti, antes mesmo de participar do evento, já recebia críticas acaloradas por seu estilo expressionista, sendo acusada por Monteiro Lobato de “imitar as extravagâncias de Picasso”, em 1917. Manuel Bandeira, por seu “modernismo precoce”, foi apelidado por Mário de Andrade de “São João Batista”: aquele que anuncia algo que vai acontecer.
Anco Vieira conta que os anos 1920 foram efervescentes no mundo inteiro. “Ninguém precisava passar pelo Sudeste para se atualizar”. Recife, por exemplo, era um ponto de parada de abastecimento de navios internacionais que iam em direção a Buenos Aires, capital da Argentina. Segundo o professor da UFPE, artistas aportavam ali e se apresentavam nos teatros da região. “As pessoas liam jornais e revistas que vinham da Europa. As elites do Brasil inteiro viajavam e faziam universidade fora do país. A minoria que tinha acesso a livros estava atualizada, sem necessitar da ‘atualização paulista’”, conclui.
Com informações de “O Assunto”, “Jornal Nacional”, “Istoé”, “IPHAN” e de entrevistas do Zero com Anco Márcio Tenório Vieira (UFPE) e Luís Augusto Fischer (UFRGS).
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