Faturamento de bares do Centro Leste da capital cai mais de 50%, após dois meses de decreto municipal

Zero
7 min readAug 16, 2024

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Com a medida da prefeitura que estabelece o toque de recolher à meia-noite, clientes deixaram de frequentar o espaço por medo de repressão policial

Beatriz Rohde (rohdebeatriz@gmail.com) e Cael Sobral (caelfacul@gmail.com)

A travessa Ratclif, entre a rua Tiradentes e o Calçadão da João Pinto, reúne o público que acompanha as rodas de samba no Centro Leste. Foto: Cael Sobral

No mês de abril, o prefeito Topázio Neto (PSD) editou novas regras por meio do Decreto 26.232/2024, que limitaram o funcionamento da vida noturna do Centro Leste de Florianópolis. Dois meses após a implementação, bares e restaurantes estimam uma perda de cerca de 50% do faturamento, denunciando falta de planejamento e violência policial por parte da Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF). Divulgado como um decreto que coloca em prática a “lei do silêncio”, a medida é vista por frequentadores como uma forma de desmobilizar movimentos culturais e políticos da região.

Jerfeson Rodrigo de Souza, homem preto de 37 anos, é proprietário do Bar do Jefe, localizado no Calçadão da Rua João Pinto, um dos principais pontos de encontro da região. Ele recebe os clientes sozinho no balcão enquanto seu filho, ainda bebê, senta comportado em uma das mesas. Jefe conta que o lucro do bar caiu mais da metade desde o decreto e que precisou demitir quatro dos seis funcionários.

O empresário ainda teve que alugar o andar acima de seu estabelecimento, solicitar um novo alvará e instalar isolamento acústico para manter seu funcionamento. “Como eu sabia que eu ia ter que trabalhar no [ambiente] interno por conta do decreto, por mais que eu refizesse o meu alvará aqui, eles iam continuar me perseguindo, então eu aluguei a parte de cima, fiz o [isolamento] acústico e fiz samba lá em cima”, explica.

Jefe abriu seu bar há oito meses. A roda de samba na rua, em frente ao local, é considerada por ele um dos motivos do agravamento da relação entre os bares e os moradores. “Eu abri aqui, fiz os documentos e comecei a fazer samba. O decreto foi um pouco porque eu também comecei a fazer samba durante a semana. Acabou perturbando muita gente”. Como forma de solucionar o problema do ruído, os bares chegaram a propor a instalação de isolamento acústico nos apartamentos por sua conta, mas a ideia foi negada pelos moradores.

A medida foi elaborada apenas para parte do centro histórico da cidade — entre a Praça XV de Novembro e a Avenida Hercílio Luz. Jefe acredita que a escolha tem objetivo político e que a PMF não editou normas para outras regiões, como a Lagoa da Conceição ou Jurerê Internacional, porque a “mobilização de empresários com grande capital” seria muito mais expressiva do que as dos bares do Centro Leste. “Lá tem gente de olhos verdes e pele clara. Ali eles [a polícia] não ‘descem’. Aqui, o morro desce e vem tomar cerveja, lá não. Lá eles vão mexer com gente grande, aqui eles mexem com o Jefe, nascido e criado na Tapera”, comentou o proprietário.

Luiz Antônio Santana, um homem preto de 58 anos, frequenta o Centro Leste desde a adolescência e demonstra preocupação com a repressão da polícia à cultura negra na região. “Chega determinando horário, parece 7 de Setembro, um carrinho atrás do outro, a Polícia Civil com a Guarda Municipal intimidando o povo a ir embora com metralhadora na mão. Parece que tem um monte de bandido circulando aqui”, relatou Luiz, revoltado.

Luiz Antônio frequenta o Centro Leste e encontra no samba da região a resistência da cultura popular negra. Foto: Cael Sobral

Entre um gole de cerveja e um passo de samba, o servidor público ressaltou que a região é um ponto de resistência de sua cultura. “Nós negros sempre seremos resistência, aqui estamos mais sólidos. A cultura popular é perseguida, a nordestina, a negra, nossos espaços são fechados. A cultura é do povo, não pode ser esquecida”, argumenta.

Roda de reuniões

No início do mês de junho, os representantes dos bares se reuniram com a PMF e outros donos de bares, que expressaram preocupação com a manutenção de seus empreendimentos e falta de harmonia com os moradores da região. “A gente deixou claro que o decreto feito pela Prefeitura abriria falência para mais de 50% dos bares do Centro Leste”, explica Jefe.

O Zero teve acesso às mensagens trocadas entre os donos de bares e estabelecimentos do Centro Leste. Os comerciantes apontam perdas de mais de 30% no faturamento de abril, quando a medida entrou em vigor. “Pra gente aqui foi 50%, não conseguimos pagar o aluguel, cancelamos eventos e tivemos que reduzir equipe já”, lamenta um proprietário.

“Estamos vendendo 40% do que vendíamos antes do decreto”, diz outra mensagem. Os comerciantes da região resolveram criar um gráfico que expressa a queda no faturamento decorrente das limitações impostas pela Prefeitura. Segundo Jefe, o levantamento foi apresentado aos representantes do poder público durante as negociações com o setor.

O Zero teve acesso ao gráfico feito pelos donos de bares do Centro Leste, que ilustra a queda do faturamento de abril com os valores ocultados. Foto: Acervo pessoal.

Como resultado, no dia 18 de junho, o decreto original foi parcialmente revogado, através do Decreto 26.609/2024. A principal modificação do chamado “Pacto de Convivência do Centro Leste” é que, agora, os bares podem operar com som interno depois da meia noite, limitado até as 2h da manhã, de quinta a sábado, às vésperas e nos feriados.

O proprietário do Bar do Jefe teve uma queda significativa no faturamento após o decreto e precisou demitir dois funcionários. Foto: Cael Sobral

Antes da revogação parcial, o funcionamento com som externo poderia ocorrer até 22h. Internamente, até a meia-noite. O fechamento total deveria ser realizado antes das 0h, entre domingo e quinta-feira. Nas sexta-feiras, sábados e vésperas de feriados, até duas da manhã. No dia 4 de abril, por meio de uma publicação em seu perfil oficial, o prefeito Topázio Neto ressaltou que o decreto foi construído com a participação de moradores e donos de bares. Entretanto, Jefe contesta, ressaltando que nem todos os estabelecimentos são representados pelo Núcleo de Bares e Entretenimento do Centro Leste de Florianópolis (Núcleo Bencel), participante da construção do decreto.

O Bencel é atualmente presidido por Thays Hanninger, que também é proprietária de bar na região, mas não respondeu às solicitações Zero até o fechamento desta edição.

A PMF se pronunciou sobre o decreto por meio de uma nota, apontando que “o constante tensionamento entre os moradores e frequentadores dos bares da região, inclusive com casos de violência verbal e física, levou a Prefeitura a construir em conjunto uma regulamentação para a região”. Também informou que a fiscalização é realizada pela Guarda Municipal com apoio da Polícia Militar.

Histórico de conflitos

A falta de acordo entre a Prefeitura, moradores do Centro Leste e proprietários de bares, além da violência policial na região, não é novidade. Rose Bär, proprietária do antigo Madalena, aberto em 2018, foi testemunha da repressão após a abertura do estabelecimento. Ela relata uma ocorrência de 2022, quando um policial a agrediu com spray de pimenta. Segundo Rose, o equipamento do DJ estava sendo desmontado e o bar estava fechado. O policial não acreditou na proprietária e a atacou. “Eu não estava a dois metros dele, ele saiu e disse ‘isso é para nunca mais retrucar PM’. Óbvio que todos no bar passaram mal e fiquei uma hora sem poder abrir os olhos”, lembra com indignação.

Atualmente sob nova administração, o Madalena se tornou Madá e o estabelecimento poderá ser vendido ainda neste ano. O principal motivo, segundo Rose, é o desânimo com o cenário noturno e a maneira como o poder público atua em relação aos bares da região. “Nunca houve acordo de horários, sempre uma imposição do poder público”.

Mesmo fazendo parte de grupos de Whatsapp entre membros da prefeitura e comerciantes da região, Rose só soube do decreto quando foi publicado nas mídias sociais. “Quem é da associação de bares já sabia, mas quem não está na associação não sabia. Ninguém foi avisado. Eu achei um absurdo que a gente não tenha sido informado antes”, protesta.

Hícaru Angel, estudante e morador do Morro da Mariquinha, na região central, diz que não se sente seguro nos momentos de lazer. “Chega 23h, começa a lotar de policiais. Antes mesmo do decreto, vi situações de estar tranquilo, nada fora do comum e a polícia vir com carros, cassetetes para expulsar mesmo, uma força policial bruta desnecessária”, comenta.

Ele se identifica como um homem branco e explica que seus colegas têm medo da polícia por conta de suas etnias ou orientação sexual. “Amigos meus que são gays, bem afeminados, drag queens, pretos e uma galera mais punk, não podem nem olhar para o policial que ele já vem querendo abordar”.

Hícaru Angel é frequentador assíduo dos bares do Centro Leste. Foto: Cael Sobral

A atuação repressiva da polícia na região, onde os bares se concentram, deixou marcas na pele de Larissa Moreira, de 22 anos. No início do ano, antes do Carnaval, ainda sem o Decreto 26.232/2024 vigente, Larissa foi atingida por uma bala de borracha na perna, próximo da meia-noite. “A gente estava por aqui e do nada começaram as bombas de efeito moral, minha amiga nunca tinha passado por isso e ela ficou em choque. Eu tentei acudir ela, nesse tempo eles atiraram meio sem rumo e pegou na minha perna”, relata.

Violência policial sofrida no início do ano deixou uma marca na perna de Larissa. Foto: Cael Sobral

Larissa também relembra o período em que a rua em frente ao Madalena era o principal ponto de encontro da região. “Ali no Madalena, antes da pandemia, a galera ficava [na rua] até às seis da manhã, era como Carnaval toda sexta-feira, sempre tinha essa opção”, descreve.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC