Feminicídio mata uma mulher a cada oito horas no Brasil e atinge outras múltiplas vítimas
Órfãos, crianças e adolescentes enfrentam triplo luto e traumas da violência contra a mulher
Por: Camila Costa da Cunha e Bernardo Ebert
Ana*, 9 anos, é órfã do feminicídio, crime de ódio motivado por gênero, cometido na maioria das vezes pelos próprios companheiros das mulheres assassinadas. Quem conta a história dela são duas professoras da menina. Segundo Maria*, pedagoga em uma escola de educação básica da cidade de Florianópolis, Ana está no quinto ano do ensino fundamental e sua história ilustra o que as crianças e adolescentes vítimas desse crime hediondo passam. A professora afirma que, quando Ana tinha apenas um ano e meio de idade, sua mãe foi assassinada pelo próprio pai. A família da criança é natural do estado do Rio Grande do Sul e, desde que tudo aconteceu, a avó materna é quem possui a guarda dela. De lá para cá, ambas fogem de cidade em cidade por medo do assassino da mãe, que as ameaça por ainda estar foragido da Justiça.
“Por conta do cara [assassino] ainda ser foragido, ela, a avó, ainda tem muito medo. Então todos os dias ela leva a menina de bicicleta, volta pra casa, faz o trabalho dela de coleta de lixo, volta e pega a menina de bicicleta ou a pé em uma distância considerável, de dois e meio ou três quilômetros. Faça chuva ou faça sol aquela vó sempre está com a menina lá na escola”, ressalta Maria.
O Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo. Um estudo produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgado no final de 2021 aponta que, no ano, mais de 1.300 mulheres foram vítimas de feminicídio no país e, como consequência, 2.300 crianças brasileiras ficaram órfãs por conta do crime. A pesquisa concluiu que, em média, foram registrados 25 assassinatos por semana, um a cada oito horas. Desses milhares de crimes, mais de 70% foram contra mulheres que possuíam entre 18 e 44 anos, em idade reprodutiva, de acordo com a taxa de fecundidade do Brasil.
A coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Santa Catarina (DPCAMIs), delegada Patrícia Zimmermann, enfatiza que o feminicídio é uma questão que deve ser tratada na sociedade como um todo. “A gente acompanha as estatísticas de violência contra a mulher diariamente, nós temos estatística real e estatísticas que admitem subnotificação. Crimes como ameaça, estupro e injúria, por exemplo, admitem a subnotificaçao, pois a mulher pode sofrer violência e não notificar as autoridades. O único índice real que a gente tem é o do feminicídio, por quê? Porque o corpo da mulher aparece. O feminicídio é estatística real e não admite subnotificação,” explica.
A delegada reforça a importância do Estado e do poder público no combate à violência contra a mulher. “O Estado precisa chegar antes de qualquer coisa. Medidas precisam ser tomadas, sejam elas grupos reflexivos para homens que são os causadores da violência, medidas protetivas de urgência, e avaliações de riscos no atendimento a mulheres vítimas de ameaças. É de extrema importância que a mulher comunique o Estado, que ela faça a denúncia, para que os órgãos competentes possam agir na prevenção de possíveis feminicídios”, enfatiza.
A professora de inglês Juliana* lembra de quando Ana chegou na escola. ““Ela era muito tímida, extremamente tímida, ela não falava com ninguém. Nem com a gente, nem com algum professor ou coleguinha. Eu acho que ela demorou para ter interação com a escola, com a sala dela, com as meninas da turma. Hoje ela anda, mas com um grupo bem restrito também, que geralmente é de mais duas meninas”, diz.
Juliana ministra duas aulas de inglês por semana na sala do quinto ano. Ela acrescenta que além de a menina ter muita dificuldade na parte social e de interação com as outras crianças, apresenta muitos problemas de aprendizagem. A professora relata que na última vez que entrou na sala onde Ana estuda, encontrou a menina chorando.
“No último dia de aula eu estive com ela e ela estava chorando, porque era a apresentação do trabalho. Eu fui e pensei que ela estivesse com medo do trabalho, mas aí ela me falou que aquele dia era o aniversário da mãe, ela tava chorando bastante porque sentia muita falta da mãe e me explicou que a mãe dela morreu. Eu disse: ‘mas não se preocupe porque vai ficar tudo bem. Eu também estou com saudade do meu pai’. Aí ela me falou que o pai dela ia ser preso”, relembra.
Apesar da pedagoga Maria ter mestrado na área de gênero e violência, ela enfatiza que a escola não possui suporte adequado para acolhimento de crianças em situações como essa. “É difícil fazer esse acolhimento. Pode abrir portas que eu não vou conseguir fechar. Posso disparar alguns gatilhos e a gente não tem rede de apoio para continuar dando auxílio para essa criança”, alerta.
O feminicídio deixa um rastro de dor e sofrimento por onde passa, que se perpetua após o assassinato da mulher. No caso específico dos órfãos do feminicídio — crianças e adolescentes que tiveram as mães assassinadas por esse crime de ódio–, a dificuldade para reconstruir a vida é ainda maior. Ter que lidar com a ausência da figura materna, novas conjunturas familiares, novos lares e o desamparo dos serviços públicos, que muitas vezes não auxiliam na superação do luto, são alguns dos agravantes para superação do trauma.
Esses órfãos enfrentam o que especialistas da área denominam de triplo luto, como explica a psicóloga policial civil Verônica Santos, da DPCAMIs de Santa Catarina, e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a pesquisa “Ações de enfrentamento à violência de gênero pela Polícia Civil de Santa Catarina”. “Essas crianças e adolescentes passam pela perda precoce da mãe de forma trágica, a perda do pai ou de uma pessoa próxima da família, que na maioria das vezes é o algoz da mulher e a ruptura do que se conhecia e idealizava como lar”, diz.
A psicóloga e pesquisadora enfatiza que essas situações sempre envolvem mais do que duas pessoas. “Envolve esses outros sujeitos que ficam, é uma comunidade de pessoas que vem abaixo por conta dessa violência sistemática contra mulheres”.
Violência sistêmica
Quando se fala em algo sistêmico, significa que o fenômeno em questão está enraizado na nossa sociedade, condicionando os comportamentos individuais e sobretudo coletivos. O machismo estrutural — arraigado nos costumes –, normaliza as violências de gênero, pelo fato de a mulher ter sido subjugada, inferiorizada e tratada como posse por muitas décadas.
A policial civil Verônica explica que o feminicídio representa somente a colisão no iceberg, pois há um conjunto de fatores e acontecimentos que levam a essa fatalidade, pois as coisas que acontecem em uma sociedade desigualitária acarretam a naturalização da inferioridade da mulher. Para ela, as políticas públicas de gênero são o caminho para uma equiparação. “A lei do feminicídio, que entrou em vigor em 2015, foi um grande marco na luta dos movimentos feministas e também nos termos jurídicos, com a aceitação de que a mulher se torna vítima só por ser mulher foi entendida pela lei”, explica.
A Denúncia de violência a mulher pode ser feita por vítimas, familiares, amigos, vizinhos — o importante é que esses casos cheguem ao conhecimento das autoridades. O Disque Denúncia 181 é mantido pela Polícia Civil e cobre todas as regiões do país, com um serviço de atendimento 24 h por dia, sete dias por semana, garantindo o anonimato do denunciante e sem rastreamento.
[retranca]
SC registra aumento de 300% nos casos de feminicídio em um ano
Para diminuir o número de feminicídio em Santa Catarina — que teve aumento de 300% em um ano, segundo o Observatório de Violência contra a Mulher (OVM/SC) da Assembléia Legislativa do estado (Alesc) — as deputadas estaduais da Bancada Feminina vêm procurando criar diversas políticas públicas para garantir o máximo de segurança para as mulheres.
Em 2021, foi criada a Procuradoria Especial da Mulher (PEM), com a intenção de promover a igualdade de gênero, dar autonomia e empoderamento às mulheres, bem como o enfrentamento a todas as formas de discriminação e de violência contra a mulher. Entre as ações realizadas para o combate ao aumento do feminicídio estão também instalação nos municípios de Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, espaços para atuação de equipe psicossocial e jurídica às vítimas, ampliação do número de DPCAMIs, instalação da Casa de Passagem ao menos regionalmente, entre outras iniciativas, como citado pela deputada Marlene Fengler, do PSD.
Durante esse primeiro um ano da PEM, os casos mais reportados à Procuradoria foram de violência física, psicológica e patrimonial, como conta a assessora da Procuradoria Especial da Mulher e uma das idealizadoras da bancada feminina na Câmara estadual, Marianne Tillmann. “Uma das coisas mais comuns, infelizmente, é a mulher ficar refém dentro de casa, sem poder trabalhar e com seus bens e dinheiro retidos e limitados pelo agressor.”
Desde que o projeto da Procuradoria iniciou, já foram introduzidas 65 unidades municipais da PEM da Alesc, mesmo com esse avanço nas instalações, a assessora Marianne, explica que algumas comarcas não veem com bons olhos os avanços dos direitos das mulheres. “Ainda tem muito o que ser feito, o machismo estrutural está aí e precisamos passar por cima dele um pouquinho a cada dia. Santa Catarina é um estado difícil nesse quesito, como temos uma grande área rural, muitas mulheres ficam isoladas e à mercê de agressores, e o pior, muitas vezes de forma normalizada pela população daquela pequena região.”
A deputada Marlene Fengler afirma que, embora o Brasil tenha uma das leis mais completas do mundo visando a segurança da mulher, “não há dúvida de que precisamos avançar na construção de uma rede efetiva de proteção às vítimas”. Marlene relata que percorreu o estado para fazer um diagnóstico de todas as regiões e levou as constatações ao Grupo de Trabalho da Lei Maria da Penha, com a ideia de construir uma rede compartilhada envolvendo todas as instituições que atuam no enfrentamento à violência contra as mulheres. “Essa rede é fundamental, porque a lei só é efetiva se houver políticas públicas claras e que atendam não só os grandes municípios, mas especialmente os pequenos, que têm realidades muito diferentes”.
A deputada afirma que a PEM quer ir além. O próximo objetivo é ampliar as ações de prevenção e educação, porque o foco da Procuradoria não é apenas nas consequências, mas, sim, na redução no número de casos, por isso a educação é tão importante nesse processo. Marlene relata ainda que a PEM tem acompanhado os casos de feminicídio no estado e pedidos de medidas protetivas. “O que a gente percebe é que os feminicídios aconteceram, na maioria, em localidades onde ainda não foi implantada a procuradoria da mulher na Câmara Municipal”.
O Observatório de Violência contra Mulher também tem a importante missão de ser uma ferramenta completa, que facilita o acesso das vítimas aos canais de denúncias, que traz toda a legislação relacionada à questão, os acessos às instituições que formam a rede de enfrentamento e de proteção, como os Conselhos Tutelares de todos os municípios, as delegacias especializadas e os centros de referência, entre outras. O site mostra também o “passo a passo” do que a vítima deve fazer após sofrer a agressão. Isso é importante porque, segundo Marlene, as mulheres faziam a denúncia, mas depois não sabiam mais como proceder. “Agora, está tudo ali disponível no site, todas as orientações. É um grande passo no enfrentamento à violência contra as mulheres”, ressalta.
*Nome fictício