Florianópolis: uma cidade que alaga

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6 min readMay 27, 2022

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Há quatro fatores principais que deixam a cidade favorável ao alagamento

Por Ana Clara Ramos

“Em 2018, acho que foi janeiro, que deu uma chuva bem forte, um vizinho nosso acabou morrendo porque ele caiu na água. Ele foi passar, mas estava muito forte. A gente foi achar ele lá na Costeira, bem longe. Na rua, devia ter uns 50 centímetros de água”.

A declaração é de Ysrael Santos, morador há mais de dez anos do Morro do Quilombo, no bairro Itacorubi, em Florianópolis e ilustra a apreensão dos moradores da cidade Uma tragédia desse porte ele nunca mais viu, mas toda vez que chuva aumenta, a rua alaga. E não é só lá.

Florianópolis é uma cidade que já passou por vários desastres. Deslizamento na comunidade José Mendes em maio de 2022; a enxurrada na Lagoa da Conceição, em janeiro de 2021; e ainda o ciclone bomba, que passou na cidade em junho de 2020. Esses são exemplos mais recentes. Entre 2008 e 2022, no total, foram três alagamentos/maré alta, 15 chuvas intensas e nove ressacas/erosões marinhas registradas pela Defesa Civil de Florianópolis.

No sistema de alerta de desastres da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), até maio de 2022 foram gerados 64 alertas — com recorde para março, com 23. Dentre todos esses alertas, as chuvas intensas foram as mais recorrentes, representando 67,1% dos alertas enviados por SMS e 52,4% dos enviados por TV por assinatura.

Foi seguida por tempestade local, com 22% por SMS, não houve registros por TV por assinatura. Deslizamentos representaram 6,8% dos alertas por SMS e 20% por TV por assinatura.

Apesar da ocorrência de alagamentos e dos muitos alertas, os registros oficiais dos casos são baixos porque o critério oficial utilizado pela Defesa Civil é o do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), que consiste em determinar os níveis de intensidade do eventos que já aconteceram. Neste caso, os analisados são os que já causaram danos ou transtornos, assim como situações de emergência.

A maioria dos alagamentos diários de Florianópolis não faz parte deste registro. O nível de intensidade, o dano e o prejuízo não se encaixam na categoria do S2ID. A rotina faz com que a população se adapte a tais acontecimentos.

Sandra Maria, moradora do bairro Rio Vermelho, no norte da Ilha, diz que os alagamentos acontecem mais ou menos duas vezes ao ano e que, atualmente, sabendo desse fato, reformou sua casa. No primeiro andar, não possui mais nenhum móvel que estrague quando o alagamento vier. “Quando dá a previsão de muita chuva, já não tenho mais receio. Foram tantas vezes. Fico no alerta e na espera”.

Esse não é o caso de Robson Cazão. Também morador do bairro Rio Vermelho, ele afirma que o alagamento acontece sempre que chove. “Vai chover e a gente já sabe que vai passar por isso de novo, que não vai ter ninguém, é um sentimento de abandono mesmo”.

Para ele, um dos dias mais marcantes foi quando a água de uma chuva forte invadiu a casa mais baixa da rua e todos os vizinhos foram cavar o quintal em uma tentativa de fazer a água escoar. Nesse mesmo dia, ele se lembra de ver um motoqueiro tentar passar e a água chegava em sua cintura.

Ysrael Santos também conta um dos dias que mais o marcou. Foi durante o mesmo período de janeiro de 2018 que aconteceu a chuva forte e que ocasionou a morte de seu vizinho. Não dava para passar pela escada na frente de sua casa porque se tornou uma pequena cachoeira e as árvores ao redor caíram.

No meio desse caos, percebeu que um barranco tinha caído na casa de seu Nico, seu vizinho, e que estava com cheiro de gás por toda a vizinhança. “Na nossa frente morava um bombeiro civil que ajudou a tirar o seu Nico da casa dele. A rua estava inteira alagada e a água bem alta. Fiquei bem assustado”.

Por que Florianópolis alaga?

Existem fatores que tornam propícia a ocorrência de alagamentos em Florianópolis. Alexandra Finotti, doutora em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e coordenadora do Laboratório de Águas Urbanas e Técnicas Compensatórias (Lautec) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que há quatro fatores principais que deixam a cidade favorável a alagamentos: urbanização sem pensar na cobertura vegetal; ocupação perto de rios; nascentes íngremes, com deságue plano; e a influência do mar.

Toda cidade passa pelo problema de alagamento em decorrência da urbanização e da ocupação perto de rios. Quando se urbaniza sem pensar na água, acaba-se retirando a vegetação natural que estava ali para pavimentar e construir casas. “Cada intervenção que você faz, aumenta a quantidade de escoamento porque você está diminuindo a quantidade de infiltração”, afirma Alexandra.

E, quando se pensa nas áreas ocupadas ao redor do rio, o alagamento é maior. O rio alaga naturalmente, mas a infiltração da bacia acontece de forma rápida devido à vegetação, e quando ela é retirada para construir casas, além do alagamento natural, aumenta a quantidade de água pela baixa infiltração.

No caso de Florianópolis, esses dois fatores são somados às condições naturais que se tem na cidade. Alexandra explica que, embora as bacias sejam pequenas e com menor vazão de água, elas são muito íngremes nas nascentes, localizadas no maciço central da Ilha onde estão os morros, e o seu deságue é no mar, onde é plano.

Por acelerar na descida e ir devagar na parte plana, as bacias são cobertas por mangue, que é uma vegetação que suporta o constante represamento de água. Contudo, boa parte da cidade foi construída em cima desses mangues. Então, além de retirar uma vegetação natural que diminui o alagamento, as áreas onde o deságue acontece são ocupadas pela população (ver mapas abaixo).

Em Florianópolis o mar também representa um fator a mais de atenção para o alagamento, pois o deságue da capital catarinense é feito totalmente no mar. Segundo Alexandra, “os rios normalmente não tem problema de aumentarem o nível de jusante para montante [lugares referenciais de um rio pela visão de um observador], o mar tem.

No mar, quando a gente está com a maré alta, sobe esse nível e o que antes escoava, deixa de escoar e os rios passam a ter reação ao efeito da maré”. Por conta disso, muitas vezes acontece alagamento sem chuva, porque não escoou ou porque o mar volta e inunda.

Todos esses fatores fazem com que a cidade de Florianópolis seja propensa a ter alagamentos. Isso sem contar fatores climáticos como ciclones, que vão proporcionar a subida da maré e muita chuva.

Alexandra ainda explica que muitas cidades têm sistema de drenagem para não ter mais alagamentos. Esse sistema funciona com tubulações, canalizando os rios e as águas da chuva, enviando-os para outros lugares. Alguns anos atrás esse sistema até funcionava, porque as cidades eram muito afastadas umas das outras, mas hoje não tem mais para onde essa água ir. “Além de ter um custo alto, é um tipo de solução que transfere o problema para outro lugar”.

A coordenadora da Lautec cita Brasília e Porto Alegre como dois exemplos de cidades que colocaram em seu plano diretor o sistema de drenagem sustentável.

Esse novo sistema procura, ao invés de gerar o escoamento e tentar resolver com tubulações, solucionar tal escoamento no próprio terreno. Em outras palavras, todo novo alojamento, casa, prédio, deverá ter seu próprio sistema de drenagem — vegetação ou poço -, a fim de que não gere mais escoamento do que o natural. “Em vez de você gerar o problema e tentar resolver depois, você não gera. É o controle na fonte”, ressalta Alexandra.

Áreas de alagamento em Florianópolis Bacias Hidrográficas Florianópolis

Fonte: Geoprocessamento PMF Fonte: Geoprocessamento PMF

Condicionantes ambientais em Florianópolis

Fonte: Geoprocessamento PMF

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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