Fãs rejeitam inclusão social nos quadrinhos ao negarem seu papel contra o preconceito

Zero
9 min readDec 23, 2021

--

Bissexualidade do filho do Super-Homem incomodou leitores e não leitores; situação revela que aceitação da diversidade está distante na ficção e na realidade

23/12/21 | Por Isabella Machado e Luiz Fernando Schmidt

Assim como Jon Kent, algumas das personagens mais famosas das HQs são bissexuais. Diana, a Mulher-Maravilha, teve sua bissexualidade confirmada em 2016 pelos roteiristas da DC Comics e o Deus da Trapaça, Loki, é o primeiro protagonista LGBTQIA+ da Marvel Studios, na nova série do Disney+. | Imagens por Jim Lee, DC Comics e Marvel Comics respectivamente

Colecionadores de histórias em quadrinhos adicionaram mais uma polêmica ao seu vasto acervo. Há décadas, as questões sociais da vida real entram na ficção e muitas vezes ajudam a pautar discussões. Leitores e curiosos debatem sobre o destino das personagens que rompem com paradigmas culturalmente estabelecidos e costumes arraigados. Enquanto uma minoria defende o tradicionalismo, escorado em preconceitos, a maioria apoia a mudança e a inclusão. A mais nova disputa envolvendo os quadrinhos aconteceu na divulgação da segunda tiragem de Superman: Son Of Kal-El #5 (Filho de Kal-El nº 5), edição em que o filho do Super-Homem revela ser bissexual.

Seguindo os passos de Clark, seu filho Jon Kent mal vestiu o manto do pai e já bateu recordes de popularidade, levando a DC a reimprimir os volumes lançados de Superman: Son of Kal-El. Na edição nº 5 da História em Quadrinho (HQ), que conta como o jovem Super-Homem de apenas 17 anos se apaixona por um jornalista. A diferença é que o interesse romântico de Jon não é uma nova Lois Lane, e sim, Jay Nakamura. Superando uma barreira que nem seu pai precisou enfrentar, o novo Super-Homem luta contra o preconceito na busca por inclusão, ao se assumir bissexual. Entretanto, lutar contra o preconceito não é novidade para os heróis e heroínas das HQs, porém, alguns fãs parecem esquecer, ou desconhecer, a história das personagens que idolatram.

Em 1963, os autores Stan Lee e Jack Kirby lançaram o primeiro volume de X-Men. Na história, um grupo de mutantes, dotados de poderes especiais, luta contra a opressão por parte dos humanos, ao mesmo tempo que enfrentam outros vilões. Pioneira em inclusão racial, muitos dos debates gerados em X-Men giram em torno de racismo, xenofobia e perseguição racial. O impacto que seus personagens causaram é fruto da aposta de Stan e Jackna diversidade dos mutantes.

Tempestade, uma das primeiras super-heróinas negras dos quadrinhos, tornou-se símbolo do empoderamento feminino, durante a segunda onda do movimento feminista; Charles Xavier, líder da escola para jovens superdotados, temparalisia nas pernas que em nada o impede de assumir papel central na história ao assumir a função de guiar os mutantes. Hoje, tal personagem pode ser considerado um exemplo contra o capacitismo. Além disso, outros mutantes, como Miragem e Apache, são representantes dos povos nativos americanos, e o antagonista Magneto é um sobrevivente do holocausto nazista.

Apesar das demandas serem diferentes atualmente, as HQs possuem compromisso com a inclusão dentro de suas páginas. O entretenimento é um espaço de disputa social e as histórias em quadrinhos não fogem à regra — elas influenciam e são influenciadas pela cultura, pelos movimentos da sociedade e pelas reivindicações feitas pelo público. Ainda que folheando HQs do passado possamos encontrar registros ultrapassados e estereotipados da diversidade, esse gênero se manteve disposto a refletir sobre a política da época.

Segundo Fernanda Nascimento, jornalista e doutora em Ciências Humanas, na área de Estudos de Gênero, revisitar o passado nos ajuda a compreender o caminho percorrido até aqui. “Não podemos ignorar outros momentos que a gente viveu. Olhar para isso é fundamental para entender o que estamos vivendo hoje. Estamos em uma sociedade que é formada por avanços e retrocessos.” Os registros têm um grande valor para a reflexão das mudanças na sociedade através do tempo, “uma construção narrativa que só tinha personagens brancos, por exemplo, é totalmente política e demonstra muito sobre a branquitude durante séculos”, diz.

Fernanda pontua que “fazer entretenimento nos anos 1970 é diferente do que fazer entretenimento hoje” e reforça a necessidade de considerar o contexto da obra ao analisá-la. As histórias em quadrinhos refletem o tempo e o momento presente, o que explica por que as atuais se tornam palco para discussões quanto à representatividade e diversidade. Os mundos fantásticos criados nas HQs refletem os anseios da sociedade e estão mais próximos da realidade do que, às vezes, imaginamos.

Ascensão dos novos nerds

Nos anos 1960, ser chamado de “nerd” era encarado como algo pejorativo. O estereótipo que acompanhava o termo era definido como “pessoa socialmente inadaptada, geralmente jovem e de aparência excêntrica, que tem interesse em tecnologia, informática, jogos eletrônicos, literatura, especialmente ficção científica, cinema, teatro etc. São pessoas que raramente se agrupam entre si”, segundo definição do dicionário Michaelis. A partir dos anos 1990, o termo se tornou ainda mais popular. A imagem de um nerd se expandiu para alguém que tem interesses em particular, desde tecnologia e ciência até o entretenimento, marcado pelo amor pelos quadrinhos, videogames, literatura e cinema.

Vinte anos depois, os nerds foram colocados sob holofotes. O acesso à cultura e ao lazer facilitados pela tecnologia fizeram com que o universo geek — em referência aos interesses tipicamente reconhecidos como os da cultura nerd –, explodisse na década de 2010. Uma cultura antes considerada de esquisitões, tomou as telonas com as estreias dos filmes do estúdio Marvel, alterando o padrão de consumo do mercado, com uma lista interminável de produtos fabricados massivamente para esse público.

Ao mesmo tempo, a internet possibilitou às lutas sociais um espaço de organização ágil, eficaz e capaz de conectar um grande público. As redes sociais, nesse período, estavam efervescentes, com pautas relacionadas ao feminismo e à comunidade LGBTQIA+. A frequência de todas as formas de inclusão cresceu, da mesma forma que as conquistas dos movimentos sociais se refletiram no entretenimento e tornaram-se inspiração para muitas histórias, a diversidade dos fãs de quadrinhos, heróis e games se tornou mais visível.

O mundo nerd deixou de pertencer somente aos homens cisgêneros, brancos e heterossexuais. Assim como o novo perfil de público, os criadores e produtores apresentam marcadores identitários diferentes daqueles estabelecidos pelos estereótipos dos anos 1960 a 1990. Outros perfis também lutaram para se ver representados nas páginas das HQs e nas telas de cinema.

A mudança de público e a expansão do universo não foi bem vista por todos, principalmente pelos os autointitulados “fãs originais”, que se identificam com os estereótipos definidos nas décadas anteriores. Surgiram movimentos conservadores contra a diversidade e as ideias progressistas nas obras geeks, que acreditavam que a presença de autores e personagens mulheres, negros e LGBTQIA+, por exemplo, tiravam o foco do enredo e excluíam leitores autênticos.

Para Fábio Luis, fã de histórias em quadrinhos há pelo menos 25 de seus 32 anos, esse movimento de mudanças é natural. “Não acredito que isso seja o foco atual das HQs, é algo que precisava ser trabalhado para poder trazer para nossa realidade e abraçar uma gama maior de leitores.” Ele afirma que em suas leituras, questões de diversidade não atrapalham em nada a qualidade da narrativa, “se atrapalhar, é a equipe que não sabe contar história.”

Gabriel Brito, de 26 anos, acredita que a diversidade é fundamental, mas as motivações que levam até ela são equivocadas. “As empresas forçam a diversidade de uma maneira que não faz sentido dentro das histórias, fica desconexo e afasta tanto o público original quanto um novo público que poderia se aproximar.” Aponta ainda que esse movimento ocorreria pelo foco das empresas estar exclusivamente no lucro e não na qualidade da leitura.

Tiago Sampaio, escritor do blog Nerdish, acredita que dependendo da história, esse movimento, ou não faz diferença, ou agrega na narrativa. “Tem diversos exemplos disso, um deles é o recente Batman: Urban Legends (Batman: Lendas Urbanas). Na sexta edição da série, houve a “revelação” de que a personagem de Tim Drake, o Robin, é bissexual. Mas apesar do alvoroço causado na mídia, na história Tim só chama o menino de que gostava para um encontro. Tão natural quanto o primeiro encontro de Clark Kent e Lois Lane. A aventura do Robin por Gotham City continuou com a mesma estética de aventura investigativa, a única “mudança” se deu na vida pessoal de Tim — que não é exatamente uma mudança, já que nos últimos 15 anos de publicação alguns roteiristas já deram a entender que Tim também gostava de meninos.”

A importância de conferir riqueza a uma narrativa é algo que Natalia Sierpinski, pesquisadora de histórias em quadrinhos, gênero e educomunicação e autora de Mina de HQ, destaca. “Termos uma maior quantidade de personagens de grupos de diversidade é válida e necessária, mas também é essencial que essa representação não traga estereótipos, seja rasa ou apenas coadjuvante da narrativa.” Daí, a importância de levar em consideração a diversidade de autores e artistas responsáveis pela criação das histórias. As experiências desses profissionais conferem uma maior visibilidade às diferentes dinâmicas e perspectivas a partir das vivências únicas que têm na sociedade.

Segundo Natalia, a relevância de personagens diversos é a mesma de uma equipe de criação e produção inclusiva no comando das obras. “Historicamente temos predominância de autores masculinos, brancos e heterossexuais trabalhando em grandes editoras, temos tido avanços nesse sentido, mas ainda temos muito o que avançar para ter um quadro de autoria diversa na maioria das editoras.” A representatividade dos personagens caminha lado a lado com a inclusão desses profissionais que lutaram para ter seu reconhecimento dentro do meio e trazer à tona vozes pouco ouvidas na sociedade.

Os quadrinhos nunca deixaram de ser políticos. De geração em geração, eles constroem uma representação do contexto da época. Para Fernanda, doutora em Ciências Humanas, negar o papel histórico desse gênero é uma forma de silenciar as disputas sociais de uma época. “É preciso mostrar o quanto o entretenimento é cultural e que essa transformação vai fazer parte da nossa sociedade. Não vão ser os quadrinhos que vão ser cristalizados. Parece que esses fãs acreditam que os quadrinhos são a-históricos ou que pararam no tempo. Isso não vai acontecer.” Com o tempo, novos capítulos da história das HQs vão sendo escritos.

Quem lacra, lucra

“Quem lacra, não lucra” é uma frase comumente entoada por conservadores que se opõem à abordagem inclusiva de empresas atualmente. No caso do universo nerd, as represálias daqueles que não apoiam a diversidade costumam incluir ameaças de boicotes às revistas em quadrinhos e aos filmes. Apesar do discurso inflamado, os dados mostram que, na verdade, as obras que abrangem um conteúdo inclusivo geram grandes receitas aos estúdios e produtores. Quem lacra, lucra.

Um exemplo que foi sucesso de bilheteria em 2018 é o filme “Pantera Negra”’, indicado a sete estatuetas no Oscar, sendo o primeiro longa-metragem de super-heróis a receber uma indicação ao maior prêmio de cinema mundial. O Pantera Negra foi o primeiro herói negro dos quadrinhos, criado pela Marvel, com sua primeira aparição nos quadrinhos em julho de 1966. O personagem inspirado pelo movimento negro estadunidense virou ícone da cultura Black Power. A estreia arrecadou US$1,3 bilhão (cerca de R$ 4,3 bilhões), sendo o filme solo com maior bilheteria no estúdio Marvel. Uma história semelhante aconteceu com “Mulher-Maravilha”, de 2017, produzido pela DC Filmes e dirigido por Patty Jenkins. O primeiro filme com protagonismo feminino na nova geração de super-heróis nas telonas arrecadou US$ 821,8 milhões (cerca de R$ 26.297,6)

Quanto às HQs, um levantamento feito pela Comichron — site sobre circulação de quadrinhos e outros dados coletados pelo jornalista e fã de HQs John Jackson Miller –, mostra que as vendas da DC Comics durante as temporadas de lançamentos de 1997 até 2021 estão mais em alta que nos últimos 25 anos, com exceção dos anos de 1997 e 2016. As vendas acompanharam o crescimento da diversidade e revelam uma tendência de mercado e público-alvo.

Com o aumento dos lucros, uma parcela dos fãs passou a desconfiar das intenções das empresas ao acrescentar personagens e enredos inclusivos em suas histórias. A possibilidade de ter temas importantes explorados com o foco somente no ganho monetário causou revolta em alguns fãs. Segundo Fernanda Nascimento, “as empresas também percebem que há um nicho de mercado. E é uma faca de dois gumes. Por um lado, a gente pode fazer a crítica de que essas inclusões visam atender a uma parcela da população que está demandando uma identificação e visam, assim, ao lucro. Por outro lado, teríamos de qualquer maneira essas empresas visando ao lucro, só que voltadas para um público branco, hétero e cis. A gente vive num sistema capitalista”.

No entanto, ela acredita que a pressão popular e as reivindicações de produções mais diversas impactam significativamente nas obras que vemos hoje. “Eu acho que também tem a ver com as questões sociais, não é apenas uma questão econômica. Se eu estou no capitalismo e vou consumir coisas, por que eu vou consumir coisas que simplesmente não dialogam com a minha identidade?”

--

--

Zero
Zero

Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

No responses yet