Inflação em alta penaliza ainda mais a população vulnerável

IPCA recai especialmente sobre alimentos e reflete contexto de crise política, econômica, sanitária e hídrica. ONGs enfrentam queda de doações diante do aumento de pessoas vulneráveis

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6 min readOct 5, 2021
Alimentos acumulam maior alta de preços entre os itens que pesam mais no bolso do brasileiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Em um contexto de um ano e meio de pandemia da Covid-19, a recessão econômica continua a se agravar e penalizar a população. Após apresentar os juros mais baixos da história, o Brasil passa a lidar com uma inflação maior do que a dos anos anteriores, com um Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) historicamente alto e que recai sobretudo nas famílias mais pobres.

Segundo o dado mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a maior alta de preços veio justamente nos itens básicos de alimentação e bebidas, com uma alta mensal de 1,3% em produtos que, em meses anteriores, já encontravam-se com preços mais altos nas etiquetas de supermercados e padarias.

Em algumas capitais, como Florianópolis, a cesta básica já ultrapassa 60% do salário mínimo, custando mais de R$ 650, configurando a situação mais crítica dos últimos 15 anos segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O preço dos alimentos escalonou tanto, que mesmo entidades que se dedicam à população vulnerável socialmente sofrem para se manter ativas.

“Com o aumento da inflação, a situação da população em vulnerabilidade se agrava ainda mais, o que provoca também uma demanda maior por alimentos doados. E é nesse ponto que a situação interfere no nosso trabalho, porque exige esforços ainda maiores para tentar minimizar a situação. O número de pedidos por doação de alimentos tem aumentado todo dia”, afirma Luciana Chinaglia Quintão, fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos, que atua na região metropolitana de São Paulo. Segundo ela, a balança pesou negativamente para os dois lados — o número de pessoas doando alimentos diminuiu ao passo que, cada vez mais, a quantidade de pessoas que precisam de comida aumenta. “Não há dinheiro para comprar carne, as pessoas estão comprando os ossos”, afirma. O nível de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar aumentou no país.

Ao passo que os mais ricos ficam mais assegurados em período de alta da inflação, insegurança aumenta dentre faixas mais vulneráveis socialmente.

O panorama reflete os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que demonstra que a inflação das famílias mais pobres superou 10% em 12 meses até agosto, sendo de 10,63% para as famílias de renda muito baixa e de 10,37% para as famílias de renda baixa.

Luciana, que atua há 23 anos no combate à fome e ao desperdício de alimentos no Brasil, relata que a organização passa a ter que captar mais recursos para atender essa demanda “historicamente descomunal”.

“É uma organização pioneira no âmbito da sociedade civil, que funciona como um hub, com ações voltadas a “Alimentar, Educar e Transformar ”, explica Luciana sobre a ONG. Foto: Divulgação/Banco de Alimentos

“Com o aumento da inflação, a situação da população em vulnerabilidade se agrava ainda mais, o que provoca também uma demanda maior por alimentos doados. E é nesse ponto que a situação interfere no nosso trabalho, porque exige esforços ainda maiores para tentar minimizar a situação”, afirma.

Está tudo caro

Além dos itens de supermercado em nível altíssimo, outros preços repassados ao brasileiro reforçam o contexto de fragilidade social, como o litro de gasolina a R$ 7,00 nos postos de combustível do país. A receita para esse caos social conta com uma gama grande de fatores — da alta de commodities, o câmbio elevado, até a recessão econômica dos meses anteriores. Em Florianópolis, há uma concentração da produtividade econômica no setor de serviços, composto por uma porção representativa de pequenas empresas e microempreendedores. Desde os primeiros impactos da pandemia, mesmo com linhas de crédito, diversos estabelecimentos fecharam, aumentando o desemprego, e apesar dos juros baixos — com taxa Selic de 2% ao ano, o menor nível da história –, muitos negócios não conseguiram se manter.

“Todas as nossas previsões para a inflação e a alta dos preços eram subestimadas em relação ao que vivemos hoje. Não considerámos aumento das commodities, risco país e crise hídrica. As estimativas ficam todas abaixo da meta. A meta era 3,75%. Algumas casas de análise tinham 3,5% no radar, exatamente por conta da economia enfraquecida, e mesmo com o juro baixo a economia não reagiu. Quando o juro está baixo e a economia não reage, significa que ela está realmente devagar”, explica André Braz, coordenador do núcleo de preços ao consumidor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV).

O Brasil enfrenta um panorama de riscos e turbulência política que encarece a cadeia produtiva e faz com que seja mais atrativo para o produtor vender alimentos e produtos afins no exterior. O cenário é o mesmo que elevou muito os preços do saco de arroz em 2020, quando o dólar estava alto e as commodities também subiam. Esse contexto, somado à crise hídrica, torna toda a produção e a comercialização mais cara, obrigando o vendedor de varejo — como os supermercados –, a repassar os custos ao consumidor final, que já está com um poder de compra corroído, corroborado pelo IPCA.

“A influência das commodities e do dólar encarece absolutamente todos os segmentos. Esse fenômeno é mundial, e os fatores variam um pouco. Alguns setores estão em desequilíbrio. O arroz foi o primeiro produto a ter um problema de oferta. A valorização do dólar contribui para [o aumento da] exportação. Houve um choque em relação aos anos anteriores, pois vínhamos de anos bons na agricultura, e o mais complicado foi por volta de 2015–2016, por conta da seca. A pandemia trouxe desafios não só para o agronegócio, mas aumentou especialmente o peso do agro[negócio] sob a inflação”, explica o Superintendente de Inteligência e Gestão da Oferta da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Allan Silveira dos Santos.

Perspectivas para o futuro

Nos últimos prognósticos, o Banco Central (BC) aumentou sua projeção para o fim de 2021, com indicativo de uma alta para 8,5% no ano. Além disso, O cenário de referência indica que o IPCA ficará em 3,7% em 2022 e em 3,2% em 2023.

O dado torna-se relevante na medida em que as alterações da taxa de juros são praticamente o único instrumento direto de ação para conter a situação. Ao olhar no retrovisor, alguns economistas julgam a atuação do BC como equivocada ao rebaixar a Selic para níveis tão baixos, mesmo em contexto de pandemia — o que corroborou para o encarecimento de praticamente todos os produtos. Agora, em ciclo de alta novamente, a expectativa é que a autoridade monetária consiga reduzir os impactos econômicos. Contudo, a discussão também conta com outras intempéries do fim de 2021 e também do ano que ainda está por vir.

Projeção da Inflação para os próximos peses pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“Com a crise hídrica você tem preços mais altos e as pequenas empresas e os serviços serão penalizados com uma energia mais cara, com o preço rateado entre os consumidores. Esse risco coloca as metas em xeque. O único instrumento que temos é a Selic, mas o governo também poderia ajudar com proposta de redução da dívida”, explica Braz, da FGV, com ressalvas ao fato de que 2022 é um ano eleitoral — em que os governos costumam gastar mais.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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