Inflação em alta penaliza ainda mais a população vulnerável
IPCA recai especialmente sobre alimentos e reflete contexto de crise política, econômica, sanitária e hídrica. ONGs enfrentam queda de doações diante do aumento de pessoas vulneráveis
Em um contexto de um ano e meio de pandemia da Covid-19, a recessão econômica continua a se agravar e penalizar a população. Após apresentar os juros mais baixos da história, o Brasil passa a lidar com uma inflação maior do que a dos anos anteriores, com um Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) historicamente alto e que recai sobretudo nas famílias mais pobres.
Segundo o dado mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a maior alta de preços veio justamente nos itens básicos de alimentação e bebidas, com uma alta mensal de 1,3% em produtos que, em meses anteriores, já encontravam-se com preços mais altos nas etiquetas de supermercados e padarias.
Em algumas capitais, como Florianópolis, a cesta básica já ultrapassa 60% do salário mínimo, custando mais de R$ 650, configurando a situação mais crítica dos últimos 15 anos segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O preço dos alimentos escalonou tanto, que mesmo entidades que se dedicam à população vulnerável socialmente sofrem para se manter ativas.
“Com o aumento da inflação, a situação da população em vulnerabilidade se agrava ainda mais, o que provoca também uma demanda maior por alimentos doados. E é nesse ponto que a situação interfere no nosso trabalho, porque exige esforços ainda maiores para tentar minimizar a situação. O número de pedidos por doação de alimentos tem aumentado todo dia”, afirma Luciana Chinaglia Quintão, fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos, que atua na região metropolitana de São Paulo. Segundo ela, a balança pesou negativamente para os dois lados — o número de pessoas doando alimentos diminuiu ao passo que, cada vez mais, a quantidade de pessoas que precisam de comida aumenta. “Não há dinheiro para comprar carne, as pessoas estão comprando os ossos”, afirma. O nível de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar aumentou no país.
O panorama reflete os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que demonstra que a inflação das famílias mais pobres superou 10% em 12 meses até agosto, sendo de 10,63% para as famílias de renda muito baixa e de 10,37% para as famílias de renda baixa.
Luciana, que atua há 23 anos no combate à fome e ao desperdício de alimentos no Brasil, relata que a organização passa a ter que captar mais recursos para atender essa demanda “historicamente descomunal”.
“Com o aumento da inflação, a situação da população em vulnerabilidade se agrava ainda mais, o que provoca também uma demanda maior por alimentos doados. E é nesse ponto que a situação interfere no nosso trabalho, porque exige esforços ainda maiores para tentar minimizar a situação”, afirma.
Está tudo caro
Além dos itens de supermercado em nível altíssimo, outros preços repassados ao brasileiro reforçam o contexto de fragilidade social, como o litro de gasolina a R$ 7,00 nos postos de combustível do país. A receita para esse caos social conta com uma gama grande de fatores — da alta de commodities, o câmbio elevado, até a recessão econômica dos meses anteriores. Em Florianópolis, há uma concentração da produtividade econômica no setor de serviços, composto por uma porção representativa de pequenas empresas e microempreendedores. Desde os primeiros impactos da pandemia, mesmo com linhas de crédito, diversos estabelecimentos fecharam, aumentando o desemprego, e apesar dos juros baixos — com taxa Selic de 2% ao ano, o menor nível da história –, muitos negócios não conseguiram se manter.
“Todas as nossas previsões para a inflação e a alta dos preços eram subestimadas em relação ao que vivemos hoje. Não considerámos aumento das commodities, risco país e crise hídrica. As estimativas ficam todas abaixo da meta. A meta era 3,75%. Algumas casas de análise tinham 3,5% no radar, exatamente por conta da economia enfraquecida, e mesmo com o juro baixo a economia não reagiu. Quando o juro está baixo e a economia não reage, significa que ela está realmente devagar”, explica André Braz, coordenador do núcleo de preços ao consumidor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV).
O Brasil enfrenta um panorama de riscos e turbulência política que encarece a cadeia produtiva e faz com que seja mais atrativo para o produtor vender alimentos e produtos afins no exterior. O cenário é o mesmo que elevou muito os preços do saco de arroz em 2020, quando o dólar estava alto e as commodities também subiam. Esse contexto, somado à crise hídrica, torna toda a produção e a comercialização mais cara, obrigando o vendedor de varejo — como os supermercados –, a repassar os custos ao consumidor final, que já está com um poder de compra corroído, corroborado pelo IPCA.
“A influência das commodities e do dólar encarece absolutamente todos os segmentos. Esse fenômeno é mundial, e os fatores variam um pouco. Alguns setores estão em desequilíbrio. O arroz foi o primeiro produto a ter um problema de oferta. A valorização do dólar contribui para [o aumento da] exportação. Houve um choque em relação aos anos anteriores, pois vínhamos de anos bons na agricultura, e o mais complicado foi por volta de 2015–2016, por conta da seca. A pandemia trouxe desafios não só para o agronegócio, mas aumentou especialmente o peso do agro[negócio] sob a inflação”, explica o Superintendente de Inteligência e Gestão da Oferta da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Allan Silveira dos Santos.
Perspectivas para o futuro
Nos últimos prognósticos, o Banco Central (BC) aumentou sua projeção para o fim de 2021, com indicativo de uma alta para 8,5% no ano. Além disso, O cenário de referência indica que o IPCA ficará em 3,7% em 2022 e em 3,2% em 2023.
O dado torna-se relevante na medida em que as alterações da taxa de juros são praticamente o único instrumento direto de ação para conter a situação. Ao olhar no retrovisor, alguns economistas julgam a atuação do BC como equivocada ao rebaixar a Selic para níveis tão baixos, mesmo em contexto de pandemia — o que corroborou para o encarecimento de praticamente todos os produtos. Agora, em ciclo de alta novamente, a expectativa é que a autoridade monetária consiga reduzir os impactos econômicos. Contudo, a discussão também conta com outras intempéries do fim de 2021 e também do ano que ainda está por vir.
“Com a crise hídrica você tem preços mais altos e as pequenas empresas e os serviços serão penalizados com uma energia mais cara, com o preço rateado entre os consumidores. Esse risco coloca as metas em xeque. O único instrumento que temos é a Selic, mas o governo também poderia ajudar com proposta de redução da dívida”, explica Braz, da FGV, com ressalvas ao fato de que 2022 é um ano eleitoral — em que os governos costumam gastar mais.