Iniciativa voluntária dá acesso à moradia para pessoas em situação de rua

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10 min readMay 10, 2024

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Com rapidez, economia e eficácia, Programa da Pastoral do Povo da Rua muda a lógica assistencial através do aluguel de residências

Ana Maria Kuntze (anamariakrp@gmail.com) e Anthony Cervinski (anthonycervinsky@gmail.com)

Monique Luz, 43 anos, coloca as cadeiras sob a mesa de jantar, pega um rodo com pano úmido e começa a limpar o chão. Com paredes brancas por dentro e azuis por fora, ela mora em uma casa de dois andares, no bairro Ingleses, situada ao norte da ilha de Florianópolis (SC). Geladeira, sofá, cama de casal e outros móveis foram comprados recentemente para mobiliar o lugar. Todos com o dinheiro de seus dois empregos de cuidadora de idosos, além da ajuda do marido e vendedor Miqueias de Almeida. Os dois estão juntos há mais de cinco anos. Ter uma casa, rotina e emprego não era parte da vida do casal um ano atrás. “Às vezes, quando estamos indo ao mercado, algumas pessoas dormem ali próximo de uma lanchonete. Eu falo para o meu marido, eu já morei assim, olha onde é que eu estou agora”, reflete.

Foi em Florianópolis, a segunda capital brasileira com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que Monique viveu em situação de rua pela primeira vez. Ela e o marido vieram de Porto Alegre (RS) para Florianópolis em dezembro de 2020, a convite da irmã. Monique passava por altos e baixos em seu casamento com Miqueias, que enfrentava problemas com dependência química. Em fevereiro de 2022, os dois passaram a dormir em casas de acolhimento e sob as marquises da cidade, período que durou um ano e quatro meses — quase 500 dias e noites.

A realidade do casal mudou quando, almoçando no Restaurante Popular, na Avenida Mauro Ramos, Monique ouviu uma amiga falar pela primeira vez sobre as rodas de conversa do programa Moradia Primeiro. Com as informações da amiga, os dois começaram a participar das conversas, que naquele momento aconteciam na Paróquia de Santo Antônio, no Centro da capital. O Programa garante, por meio de auxílio financeiro, o acesso imediato à moradia e apoio psicológico para pessoas em situação de rua.

Em Florianópolis, o Moradia Primeiro é coordenado pela Pastoral do Povo da Rua. No mês de março deste ano, 24 pessoas foram beneficiadas pelo projeto, sendo 11 mulheres, 11 homens e duas crianças. No total, foram concedidos 14 auxílios aluguéis que, em média, custaram 540 reais cada. Monique e Miqueias foram atendidos pelo programa, que é mantido a partir de doações, sem qualquer aporte governamental.

Moradia como direito: Miqueias Almeida e Monique Luz alugaram uma casa com o auxílio da Pastoral do Povo da Rua. Foto: Anthony Cervinsky

Moradia como prioridade

Ao contrário do modelo de atendimento assistencial, empregado pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) e no Brasil, em que a pessoa passa por etapas entre centros de atendimentos e casas de acolhimento, o foco do Moradia Primeiro é garantir imediatamente o acesso a um lar. O projeto também não exige que o acolhido esteja sóbrio ou em tratamento de transtornos mentais. A moradia vem como um ponto de partida para a reabilitação e a ressocialização, e não como a última etapa a ser atingida. “O importante para nós é resgatar novamente essa pessoa. Dar dignidade para que ela volte a ser a protagonista da própria vida, indiferente se ela usa alguma droga ou se tem outra religião”, conta José Eduardo Oliveira, missionário da Pastoral do Povo da Rua.

Eduardo viveu em situação de rua por um ano e oito meses. Hoje ele dedica parte de sua vida para ajudar outras pessoas que estão passando pela mesma situação. Para ele, manter o programa somente por meio de doações é uma tarefa árdua, pois as contribuições não são fixas e constantes. A caridade nem sempre consegue superar os estigmas. “A maior dificuldade é que a população em situação de rua é um público marginalizado. É diferente de você fazer uma campanha de doação para uma gestante, uma criança, um idoso, cujas imagens já sensibilizam”, explica.

Para ter acesso ao auxílio, a pastoral realiza rodas de conversa, em que os participantes recebem acolhimento para compartilhar suas experiências e angústias. A partir da escuta em grupo, são avaliados os critérios para que as pessoas atendidas possam acessar a moradia, com prioridade aos fatores de urgência e grupos mais vulneráveis, como as mulheres grávidas, famílias com crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência. O projeto fornece o apoio financeiro para custeio de aluguel, e a partir do momento em que a pessoa consegue um emprego, vai gradualmente contribuindo com as despesas, até conseguir a independência financeira.

Monique participou de seis rodas de conversa. Após ser acolhida e escutada, recebeu um auxílio inicial de R$1.000 e começou a procurar uma casa. Um dos focos do Moradia Primeiro é garantir a independência completa da pessoa atendida. Cada participante é responsável por encontrar a melhor opção de moradia para a própria vida. Monique escolheu o norte da Ilha por gostar de ficar próxima às praias e trilhas, atividades de lazer que trazem conforto e paz para ela. “Estar em uma casa é uma melhora tremenda. Hoje não tenho problema com dependência e tô atrás das minhas conquistas”, conta.

Falta de políticas de moradia

Em 2014, Florianópolis se tornou o primeiro e, por enquanto, o único município do Estado de Santa Catarina que aderiu à Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR), constituída pelo decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Conforme o decreto, o município deve assumir responsabilidades no cuidado da população em situação de rua nas áreas de saúde, educação, assistência social e moradia. No entanto, André Schafer, líder do Movimento Nacional de Luta em Defesa da População de Rua (MNLDPR), denuncia a falta de políticas públicas de moradia permanente voltadas para este público, além da precariedade dos serviços de atendimento.

Schafer conta que os movimentos sociais da população em situação de rua lutam por políticas de moradia para essas pessoas há décadas, sendo uma prioridade do movimento em Florianópolis. “A moradia é o mecanismo de transformação e de cuidado. Eu moro numa casa e isso me faz me tornar visível e me faz me sentir útil na sociedade”, explica. Para ele, o projeto da pastoral é um modelo a ser seguido e implantado como política pública no município. “O projeto de moradia da pastoral reduz danos”, afirma.

Para atender a população em situação de rua, ao contrário da proposta da pastoral, a Prefeitura de Florianópolis oferece acolhimento temporário, disponibilizando cerca de 500 vagas. O município não possui políticas de acesso à moradia permanente para este público. A ausência de um endereço fixo dificulta o acesso a direitos básicos, como o atendimento em centros de saúde, entre outras atividades que demandam comprovante de residência.

Segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico), do Governo Federal, 2.925 pessoas estão em situação de rua em Florianópolis. Esse número é de fevereiro de 2024, coletado pelo próprio município. A PMF, no entanto, se utiliza de outros dados, através de registros municipais próprios em que 968 pessoas encontravam-se em situação de rua na Capital em 2023. Existe uma diferença de 1.957 pessoas entre um sistema e outro na contabilização de dados.

Considerando os números do CadÚnico em relação às 500 vagas de acolhimento oferecidas pela PMF, existe um déficit de, pelo menos, 2.425 vagas — 83% dessas pessoas não são atendidas. Se a comparação for com os dados da Prefeitura, o déficit diminui, para 468 vagas indisponíveis — cinco vezes menor que os do CadÚnico –, uma impressão menos negativa. O fato é que independente da forma de contagem os serviços oferecidos não atendem a essa população. Em contraponto, Florianópolis tem quase 28 mil domicílios permanentemente não ocupados (vagos), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 — no mínimo 11 vezes mais do que o número de pessoas em situação de rua no município.

O principal local de atendimento para essa população em Florianópolis é a Passarela da Cidadania, onde são acolhidas até 250 pessoas. Em 2020, o Portal da Transparência, sobre o contrato com a organização que administra a Passarela, informou que o valor para manter uma pessoa em situação de rua acolhida por mês era de R$ 1.642,17 — totalizando cerca de R$ 410 mil. Até a publicação desta reportagem ainda não existem dados atualizados sobre esses valores. E a Prefeitura, questionada, não informou quanto gasta com as casas de acolhimento.

Por outro lado, o Moradia Primeiro investe R$ 1.000 nos primeiros meses de atendimento — que são parcialmente revertidos em impostos ao município, estado e federação, visto que o valor é usado para aluguel e consumo. O projeto, desconsiderando os possíveis reajustes no valor divulgado pela PMF, é cerca de 40% mais econômico que o acolhimento na Passarela. Além disso, o valor investido nas moradias é reduzido conforme a pessoa acessa o mercado de trabalho e se estabelece financeiramente.

A PMF alega que a procura de acolhimento não é suficiente para lotar as vagas disponíveis, “mas em caso de necessidade, a assistência consegue ampliar seu espaço temporariamente e acolher quem busca o espaço”. Por outro lado, afirma que está em diálogo com a organização do Moradia Primeiro, mas não há definições de como essa parceria poderá ser formada.

Para Maíra Cabral, Missionária da Pastoral do Povo da Rua, a eficácia do programa está no resgate da dignidade humana e na garantia de direitos fundamentais, além de ser uma forma mais vantajosa e econômica de investir o dinheiro público. “Queremos provar que isso dá certo e é eficaz, que inclusive sai mais barato. Então, o governo está dormindo no ponto. Também é muito mais digno e humano. Nosso objetivo é que o programa Moradia Primeiro se torne uma política pública”, diz.

Outra lógica de assistência

O Moradia Primeiro surgiu nos Estados Unidos na década de 1990 e foi implantado em diversos países, como Portugal, Austrália e Dinamarca. A metodologia, criada pelo psicólogo Sam Tsemberis, é considerada por aqueles que têm contato com o programa como a forma mais eficiente e digna para auxiliar uma pessoa em situação de rua. No Brasil, outros municípios realizaram experiências com o projeto. É o caso de Porto Alegre, onde a prefeitura do município realizou um projeto-piloto em 2018. No total, foram atendidas 70 pessoas com o Moradia Primeiro até outubro de 2019. Diferente de Florianópolis, a cidade recebeu recursos públicos para colocar o projeto em prática.

Na capital catarinense, a primeira experiência com o projeto começou em 2018. Antes disso, segundo Eduardo, a Pastoral do Povo da Rua acreditava que o emprego seria o primeiro passo para a mudança de vida. Na época, em conversas com empresas privadas e públicas, a Pastoral conseguiu uma parceria para empregar 110 pessoas em situação de rua na construção do novo aeroporto de Florianópolis. “A maioria dessas pessoas, depois que elas começaram a trabalhar, continuavam dormindo na rua. Como que a pessoa trabalha e depois ela não tem o seu lugar?”, relata. Não ter acesso a um local para descansar, poder fazer a higiene básica e realizar uma alimentação adequada são obstáculos para a permanência em um trabalho.

Buscando uma nova estratégia, a Pastoral descobriu a metodologia do Moradia Primeiro, que estava sendo aplicado em Curitiba pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos da População de Rua (INRua), em parceria com a Arquidiocese da capital paranaense. O projeto recebeu adaptações para um melhor atendimento para a cidade de Florianópolis, com a inclusão das rodas de conversa, tendo em vista que a população em situação de rua é diferente em cada localidade.

Eduardo já passou pelo processo do atendimento por etapas, também conhecido como modelo etapista, mas só conseguiu superar a situação de rua com o auxílio da Pastoral do Povo da Rua, que antes desse projeto ajudava as pessoas com o custeio do aluguel. “Hoje, eu sei o CEP da rua que eu moro. Porque parece que não é nada, mas às vezes uma coisinha tão simples faz uma grande diferença. Quando você está na rua, como que você vai fazer um tratamento de saúde? Você vai para uma entrevista de trabalho, você vai dar o endereço de onde?”

Rodas de conversa: Maíra Cabral e José Eduardo Oliveira, missionários da Pastoral do Povo da Rua, organizam rodas de conversa com pessoas em situação de rua. Foto: Anthony Cervinski

Uma casa que transforma

Há um ano, Monique alugou uma casa por meio do programa Moradia Primeiro e em menos de um mês conseguiu retornar ao mercado de trabalho. Hoje faz plantão das 18h às 6h em uma clínica para pessoas idosas no bairro Cacupé, situado na região Norte da Ilha, em uma jornada de 12h de trabalho por 36 de descanso (12/36). Precisa correr para chegar ao segundo emprego de cuidadora às 8h30, no bairro Carvoeira, no mesmo regime 12/36. Após uma jornada cansativa, ela retorna para o conforto da própria casa, às 20h30.

A profissão, que trouxe a ela estabilidade financeira, surgiu em sua vida há mais de uma década. Quando Monique se assumiu como mulher trans, ainda no final da infância, foi aconselhada pela mãe a se tornar cabeleireira, mas ela não se encantou pela profissão. Somente em um momento de dificuldade, após a mãe ter um AVC, Monique descobriu a profissão de cuidadora, da qual acabou gostando e tomando como carreira. Hoje ela tem cerca de 10 anos de experiência na área.

Agora Monique quer coisas novas em sua vida. Ela está financiando um apartamento comprado na planta, no município de Biguaçu. A casa própria é o seu grande sonho, que aos poucos vê ser realizado. Ela também pretende continuar o curso técnico em Enfermagem, que começou a fazer em Porto Alegre.

Nos próximos passos da trajetória, Monique está buscando fazer valer seus direitos. Por ter sofrido transfobia em 2023, ela pôde recorrer à justiça para lutar contra a discriminação — algo que, na rua, dificilmente seria possível. Além disso, embora tenha iniciado a transição há muitos anos, os documentos de Monique ainda estavam registrados com o sexo masculino. Nessa nova etapa em sua vida, ela finalmente terá todos os documentos retificados.

Para superar o passado e enfrentar os novos desafios, Monique recebe apoio psicológico mensalmente. Katia Trevisan, psicóloga e voluntária da Pastoral do Povo da Rua, explica que o acompanhamento é fundamental para criar condições de fortalecimento pessoal. “O trabalho da saúde mental tem esse lugar de fortalecimento dos recursos que a pessoa tem. De poder olhar para si, porque ela precisa resgatar um olhar de dignidade que muitas vezes na rua ela perdeu”, conta. O atendimento é realizado em grupo e parte da abordagem do psicodrama, onde as pessoas trocam experiências e aprendem umas com as outras.

Por ser um trabalho voluntário e que depende de doações, a pastoral ainda não tem recursos para prover atendimento psicológico para cada pessoa, pois “existe uma necessidade no projeto, ainda em construção, hoje que é o acompanhamento individualizado. Tem coisas, obviamente, que o grupo não vai dar conta. São coisas que precisam de um mergulho mais profundo na história de vida de cada um”, explica Katia. Ela ainda reforça a importância do programa se tornar uma política pública.

Como ajudar a Pastoral

A Pastoral do Povo da Rua é inter-religiosa e aberta a qualquer tipo de vivência, identidade e religião. O programa Moradia Primeiro depende de doações para continuar a oferecer moradia de forma digna para pessoas em situação de rua. Você pode contribuir com dinheiro, por meio de pix, e divulgando o trabalho da Pastoral nas redes sociais.

PIX: pastoraldopovodaruasc@gmail.com

INSTAGRAM: @pastoraldopovodaruasc

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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