Internação forçada oculta descaso com a população de rua em Florianópolis
Movimentos sociais alertam para política “eleitoreira” e pedem revogação de lei municipal 11.134
Cintia de Oliveira (deolcintia@gmail.com) e Cael Sobral (caelfacul@gmail.com)
Em 4 de março de 2024, foi aprovada em Florianópolis a lei 11.134, que prevê a internação forçada como principal política para pessoas em situação de rua. Desde então, segundo informações da gestão municipal, a média é de uma internação por dia. Divulgada pela Prefeitura Municipal (PMF) como “internação humanizada”, a medida é contestada por diversos grupos sociais ligados à saúde e à assistência social. Também foi apontada como ilegal pela Defensoria Pública do Estado e especialistas veem como um modelo ultrapassado, ineficiente e que vai na contramão da luta antimanicomial e da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). A PNSM está amparada na lei 10.216/2001 e orientada pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). Uma de suas premissas é a mudança do modelo de tratamento: no lugar do isolamento, o convívio com a família e a comunidade.
A psicóloga e doutora em saúde coletiva, Larissa de Abreu Queiroz, explica que internações psiquiátricas são curtas e indicadas para atenção em momentos de crise. “A gente vai usar a internação para uma situação de risco maior, muito específica e não de uma maneira tão arbitrária quanto vem sendo utilizada”. Esse é um dos motivos pelos quais Larissa aponta a ineficiência do programa. Ela ressalta ainda um problema mais profundo destas políticas que assumem um caráter de limpeza social. “Tiram as pessoas que estão incomodando, que estão ‘sujando a cidade’”.
André Schaeffer, liderança do Movimento Nacional da População de Rua, cita a primeira internação depois da aprovação da lei como exemplo de ineficiência da medida. O caso é de um homem em situação de rua, que foi internado contra sua vontade no Instituto de Psiquiatria (IPQ), localizado no bairro Colônia Santana, em São José. O episódio foi publicado em 9 de março nas redes sociais do prefeito da Capital, Topázio Netto (PSD), como publicidade do programa da internação involuntária. No entanto, segundo Schaeffer, que acompanhou o caso, o homem recebeu tratamento durante seis dias e logo após retornou para a rua. Sem nenhuma alteração em sua condição social.
Schaeffer, utiliza sua própria experiência para atestar a ineficiência da internação involuntária. Viveu 20 anos em situação de rua e neste período passou por 22 internações, sendo 14 compulsórias — involuntária com autorização de um juiz. No entanto, só saiu da situação de rua e do abuso de drogas quando conheceu o Movimento Pop Rua em 2012 e encontrou um objetivo de vida no movimento social.
“São 10 anos, moro numa casa, trabalho para caramba, uso droga, mas ela não é mais minha prioridade na vida”, diz, relatando ainda fazer uso de cocaína. “A própria redução de danos é uma forma de criar novas dependências”, explica Schaeffer que hoje, é casado e continua atuando no movimento social. A redução de danos, citada por ele, é uma estratégia prevista na portaria que estabelece o modelo de atendimento em saúde mental do Brasil. Também prevê que a internação, em qualquer uma de suas modalidades, só será indicada quando os “recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.
Schaeffer parte do entendimento de que as pessoas usam e vão continuar usando drogas. A diferença é a vulnerabilidade social. As políticas públicas para pessoas em situação de rua em uso de drogas, segundo ele, deveriam priorizar a melhoria das condições de vida. “A associação que se faz da população de rua com as drogas é uma violência”, enfatiza, lembrando que o jovem branco que tem dinheiro, que mora na Beira Mar também usa droga e não sofrerá com internação forçada já que tem condições financeiras. Nesse sentido, a internação forçada para ele nada mais é do que “uma grande luta de classes: é querer falar de quem pode e quem não pode usar droga”
Atenção psicossocial
Políticas de tratamento para saúde mental e para dependência de álcool e outras substâncias em substituição às internações em hospitais psiquiátricos existem desde 2001, com a Reforma Psiquiátrica, Lei 10.216/2001 e instituída pela portaria 3.088/2011, que implementou a Rede de Atenção Psicossocial (Raps). O modelo de tratamento é aberto, inserido no contexto social e no território, prevendo a autonomia do usuário, participação da comunidade e controle social. A Raps engloba as Unidades Básicas de Saúde; Consultórios de Rua; Centros de Convivência; Serviços Residenciais Terapêuticos e os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS).
Os CAPS são especializados no atendimento em saúde mental e em abuso de álcool e outras drogas. Oferecem, obrigatoriamente, tratamento com equipe multiprofissional formada por psicólogo, psiquiatra, assistente social e profissional de enfermagem e acontece com a elaboração de um Plano Terapêutico Singular. O serviço possui diferentes modalidades: CAPS I e CAPS II atendem pessoas que apresentam sofrimento psíquico decorrente de problemas mentais graves. O CAPS III tem os mesmos serviços e funciona 24 horas com acolhimento noturno. O CAPS AD eCAPS AD III oferecem também cuidados em saúde mental, especializados no tratamento do uso de álcool e outras drogas. Florianópolis possui quatro desses serviços, sendo dois CAPS AD,um CAPS II e um CAPSi, destinado para crianças e adolescentes em sofrimento mental. Todos têm financiamento do governo federal, suplementado pelo Município.
A psicóloga Larissa enfatiza que as legislações municipais que preveem internação forçada são uma deturpação da lei nacional. “Eles utilizam a lei [da Reforma Psiquiátrica] 10.216 para se respaldarem, quando, na verdade, essa lei justamente veio para evitar que façam o que está sendo feito”. Ela chama a atenção para a contradição de se investir no sistema de internação, “que é contrário à proposta do SUS”, enquanto há baixo investimento na Raps. “Os CAPS estão sendo muito sucateados, os Consultórios de Rua muitas vezes estão sendo fechados”, alerta.
A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina apresentam o mesmo entendimento. Antes mesmo da aprovação, apontaram a lei como ilegal e recomendaram que não se adotasse a política. Além disso, as entidades também solicitaram a melhoria e ampliação da Raps na região, incluindo a implementação de novos serviços. Também destacaram a importância de informar e facilitar o acesso das pessoas em situação de rua aos programas de tratamento ambulatorial.
O programa de internação forçada também desconsidera os equipamentos da assistência social, que segundo José Eduardo de Oliveira, missionário da Pastoral do Povo de Rua, já estão sucateados. Ele critica a falta de assistência contínua e adequada para pessoas em situação de rua. Segundo ele, em Florianópolis, os recursos dedicados ao acolhimento destas pessoas são insuficientes, com longas filas de espera e déficit de funcionários e de vagas.
De acordo com o Plano Municipal de Assistência Social 2022–2025, são cinco estabelecimentos que acolhem pessoas em situação de rua no município, todos localizados no Centro da cidade. Três destes são de responsabilidade exclusiva da Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF). A Casa de Apoio conta com 30 vagas e o Abrigo para Pessoas em Situação de Rua com 20 vagas. Nestes dois, as estadias são de até seis meses e exclusivo para homens. Também há a Casa de Passagem, com 25 vagas para ambos os sexos, com permanência de 30 a 90 dias.
Já a Passarela da Cidadania, no Centro, tem financiamento federal suplementado pelo município, com 230 vagas para atividades diárias e 160 vagas de pernoite. Também há o Albergue Manoel Galdino Vieira, que é de responsabilidade de uma Organização Não Governamental, mas recebe recursos da PMF. A forma de chegar a estes serviços é o Centro POP, localizado na rua Gen. Bittencourt, Centro, que cadastra e encaminha as pessoas em situação de rua para os equipamentos mais adequados.
Aline Salles, do Coletivo Voz das Manas, formado por mulheres em situação de rua, também traz à tona que faltam políticas públicas para pessoas do sexo feminino e LGBTQIAPN+ em situação de rua, como uma casa de acolhimento exclusiva. Com um número ainda mais restrito de vagas de acolhimento para esse público, elas ficam mais expostas à violência.
Informações sobre o programa de internação à força não estão sendo divulgadas. Questionada pela reportagem, a Secretaria de Assistência Social de Florianópolis, responsável pelas políticas públicas para a população de rua, não prestou esclarecimentos sobre: o orçamento destinado para as internações; o número exato de internações involuntárias já realizadas; e em quais estabelecimentos de saúde estão sendo feitas as internações. O Zero solicitou esses dados, via Lei de Acesso à Informação (LAI), mas, até o momento da publicação, não obteve retorno.
Segundo informações de pessoas que trabalham com a população de rua, as internações estariam sendo feitas no Instituto de Psiquiatria (IPQ). O hospital psiquiátrico na Grande Florianópolis está sob responsabilidade da Secretaria de Saúde do Estado — que ainda não esclareceu sobre o número de internações involuntárias realizadas no hospital.
Em nota, a PMF informou que os profissionais envolvidos na política de internação somam cerca de 100 pessoas, entre profissionais da saúde, Assistência Social e Guarda Municipal. Disse também que oferece aproximadamente 500 vagas em abrigos, e que possui uma “política pública de assistência social efetiva e com objetivo de resgatar a dignidade dessas pessoas e seus vínculos com a sociedade”. Também citou que pessoas em situação de rua passam por avaliação no CAPS para que seja indicada ou não a necessidade da internação.
Movimento orquestrado
Esse tipo de legislação que institui a internação forçada tem sido apresentada pelas prefeituras e vereadores em diversas regiões do estado como “solução” para as pessoas em situação de rua, em um contexto de crescimento populacional. Segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico) relativos a 2023, são 8.824 pessoas em situação de rua no estado, enquanto em 2019, antes da pandemia, eram 4.992. Já em Florianópolis, o salto foi de 1.181, em 2019, para 2.287 em 2023.
Florianópolis concentra cerca de 26% da população em situação de rua de Santa Catarina, que teve crescimento acentuado nos últimos dois anos. Desde o início dos dados disponíveis no painel Pessoas em Situação de Rua Brasil, do Ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania, não há estabilização nem diminuição desta população. Confira o crescimento:
O município de São José aprovou a mesma proposta, enquanto em Joinville e Criciúma um projeto semelhante está sendo discutido na Câmara de Vereadores. Chapecó também aprovou a legislação em 2024, mas desde 2022 já realiza internações forçadas com a “Operação Internamento Involuntário”.
Balneário Camboriú também utiliza essa medida. Neste caso, uma ação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a interrupção das internações. O MP classifica as ações da prefeitura local como uma “política higienista por considerar que toda pessoa em situação de rua é usuária de drogas ou criminosa em potencial”.
Para o promotor de justiça Álvaro Pereira Oliveira Melo, autor da ação, “a ‘política pública’, nitidamente higienista, só não é um escândalo de proporções nacionais, porque a população, em sua grande maioria, ignora o fato de que os considerados ‘miseráveis’ também são sujeitos de direitos”. Ele ressalta que o programa é uma estratégia de limpeza social delineada, divulgada, e amplificada pela “instagramabilidade” do estilo de vida ostentado na cidade.
Para o órgão, a prática de remoção e internação das pessoas em situação de rua toma o investimento que deveria ser feito nos instrumentos oficiais de atendimento e atenção à saúde mental, como os Ambulatórios Psicossociais, equipes de abordagem de rua, CAPS AD e CAPS II.
Além das leis municipais, um projeto estadual intitulado “Programa Estadual Saúde sem Drogas” de autoria do deputado Ivan Naatz (PL) também está sendo debatido na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) e prevê a internação forçada de pessoas em situação de rua.