Lazer, legalidade e segurança: o dilema das festas na UFSC

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10 min readAug 16, 2024

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Discussões sobre a nova regulamentação visam garantir um ambiente seguro para os eventos no campus

Maria Verônica Magnabosco (mvmagho2016@gmail.com)e Victoria Prado (victoriaalejandrapradopacheco@gmail.com)

Com o final da greve, a regulamentação das festas universitárias na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) voltou a ser discutida pela gestão universitária. Os debates visam resolver os problemas de segurança nestes eventos após uma série de incidentes envolvendo os alunos e reclamações dos moradores locais. A nova proposta visa conciliar a necessidade de lazer dos estudantes com a segurança e o bem-estar da comunidade.

Nas universidades, o cultivo de conhecimento e a formação profissional são as características principais do ambiente acadêmico. No entanto, essa atmosfera de serenidade muitas vezes se vê contrastada pela energia de jovens que buscam explorar os campi além das salas de aula. A ocupação da UFSC como um espaço não apenas de aprendizado, mas também de lazer para os estudantes, gera um debate complexo que envolve desde a comunidade acadêmica e moradores do entorno do campus até segmentos mais conservadores da sociedade.

Por um lado, o conflito surge das pessoas que residem nos arredores do campus e se sentem incomodadas com o barulho e a agitação causados pelas confraternizações, principalmente durante a noite. Caso do campus central de Florianópolis, no bairro Trindade. Há também aqueles que defendem que as instituições de ensino superior devem ser exclusivamente dedicadas aos estudos. Esta oposição se fundamenta na ideia de que os impostos direcionados à educação pública, os quais mantém financeiramente as Universidades Federais (UFs), não deveriam ser utilizados para atividades que não estejam ligadas ao propósito educacional.

De acordo com Leandro de Oliveira, secretário da Secretaria de Segurança Institucional (SSI) da UFSC, “não dá para fazer um evento sem que haja segurança”. Para os estudantes, realizar um evento sem casos de roubo, assédio ou até mesmo outras ocorrências que já foram registradas dentro do campus é um desafio. Para a comunidade acadêmica, o ideal seria um evento sem perturbação de sossego e sem depredamento da estrutura física da universidade. Porém, na prática, não é o que ocorre.

Evento com segurança

As diversas ocorrências registradas durante as festividades expuseram os sérios problemas de segurança que comprometem esses eventos dentro do campus. Em novembro de 2013, a imprensa local noticiou um incidente envolvendo disparos de arma de fogo durante um HH, como é chamado o Happy Hour, que resultou na intervenção da Polícia Militar dentro da UFSC. Em junho de 2016, outro incidente ganhou destaque na mídia, quando uma festa organizada pelo Centro Acadêmico Livre de Jornalismo (CALJ) terminou em assalto e agressão a estudantes.

“Foi uma cena de terror”, diz a estudante de jornalismo Yolanda Cardoso, sobre uma festa dentro do campus em 2017. Na ocasião, a aluna foi abordada por um homem desconhecido que tentou interagir com ela e a seguiu pelo campus. Para ela, a falta de iluminação e de pessoas com quem pudesse contar com ajuda fez com que tudo se tornasse ainda mais apavorante. A estudante conta que precisou apontar uma garrafa quebrada para que o homem fosse embora e decidiu parar de frequentar as festas pelo medo de ser novamente vítima de violência.

Em 2022, logo nos primeiros eventos após a pandemia da Covid-19, o campus da UFSC amanheceu tomado de lixo após uma festa promovida pelo Centro Acadêmico Livre de Serviço Social (Caliss) e pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE). A mídia local retratou o caso expondo que esse incidente ajuda a degradar ainda mais a imagem da universidade.

Necessidade de regulamentação

Segundo o artigo 6º da Constituição Federal, o lazer é um direito social que além da recreação individual, também abrange o acesso a espaços públicos para entretenimento e convívio. Os HHs e outras festas universitárias de maior porte preenchem uma necessidade de diversão ao proporcionar acesso gratuito e integração estudantil, sendo uma manifestação deste direito. Embora o debate trate de diversos assuntos, a discussão levanta uma questão central que relaciona tanto os interesses estudantis quanto os dos moradores locais.

A atual reitoria da UFSC percebeu que é inevitável que os alunos abram mão da realização de festas, mas concordam que estes eventos precisam ser organizados de forma segura. As festas que ocorrem dentro da universidade já são regulamentadas pela Resolução Normativa n.º 002/CUn/2009, aprovada em 27 de outubro de 2009. O documento aprovado há quase 15 anos define as regras que devem ser cumpridas pelos alunos na organização das festas. Entretanto, não é o que tem acontecido na prática.

(Sugestão de olho: A Resolução de 2009 define festas dentro da universidade como “comemoração com fins de confraternização e promoção do acesso à cultura, realizada no âmbito da Universidade, que proporcione a integração entre os membros da comunidade universitária, sem prejuízo das atividades acadêmicas previstas no calendário escolar”.)

A Resolução de 2009 revelou-se insuficiente para abranger todos os aspectos relacionados à realização de festas de forma segura. Apesar da maioria das festividades visarem arrecadar dinheiro para os Centros Acadêmicos (CA), os eventos acontecem clandestinamente devido aos requisitos exigidos pela Reitoria, os quais, além de burocráticos, são caros.

Na RN 02/CUn/2009 se estabelecem exigências como a contratação de seguranças terceirizados e o aluguel de banheiros químicos. Portanto, devido à inconformidade da comunidade como um todo e em uma tentativa de atender às demandas por segurança no campus, a Administração Central, por intermédio do reitor, o professor Irineu Manoel de Souza, e da vice-reitora, a professora Joana Célia dos Passos, optou por atualizar a regulamentação desse tipo de evento.

No início da nova gestão, no semestre 2022–2, foi criado um grupo de trabalho dedicado a discutir o tema. Segundo Diogo Felix, diretor do Departamento de Assuntos Estudantis da Pró-Reitoria de Permanência e Assuntos Estudantis (Prae), o assunto é complexo e recorrente nas discussões na UFSC. “As festas no campus são discutidas desde 2009, por várias gestões. Precisava ter uma decisão institucional para pautar esse tema complexo de forma concreta”, relata.

O grupo de trabalho é composto por membros da SSI, Servidores Técnicos Administrativos em Educação (STAEs), docentes, estudantes membros do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e da comunidade externa. A proposta busca flexibilizar alguns aspectos para facilitar a realização das festas, ao mesmo tempo em que estabelece normas claras e responsabilidades coletivas para os envolvidos na organização desses eventos.

Foram definidos o horário de início e fim das festas para evitar interferências excessivas nas atividades acadêmicas e no descanso dos estudantes. Segundo o Artigo 17 do texto que vem sendo elaborado, “as Festas Universitárias e as Festas em Unidades poderão ocorrer de quarta-feira a sexta-feira, entre 22h e 1h e, aos sábados e feriados, entre 9h e 23h59”. Além disso, os eventos de quarta a sexta-feira poderão ser estendidos até às 2h, desde que a propagação sonora se encerre à 1h.

A regulamentação também inclui restrições de decibéis para o som das festas, para minimizar o impacto do ruído nas áreas vizinhas. No período entre 7h e 19h o limite é de 60 decibéis; no período das 19h às 22h é de 55 decibéis e após às 22h se limita a 50 decibéis. Ainda não está especificado onde serão feitas essas medições, se no ponto de emissão sonora ou nas bordas do campus.

Outra novidade foi a criação de uma “zona de silêncio” próxima ao Hospital Universitário e à Moradia Estudantil, onde as festas nunca poderão ocorrer. A contratação de seguranças, a disponibilidade de sanitários químicos, a apresentação de um projeto de sonorização e a limpeza imediata após o evento também foram definidos como requisitos para a realização dos eventos.

Conjuntamente, a nova minuta incluiu o compromisso no cumprimento da Política de Enfrentamento ao Racismo Institucional da UFSC, que integra normas que visam combater a discriminação racial e promover um ambiente universitário mais inclusivo e igualitário. Além disso, a organização das festas também deve se comprometer em seguir o Protocolo Nacional “Não é Não”, para prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher.

O texto foi colocado em consulta pública de 06 de julho até 20 de agosto de 2023. A intenção era dar a oportunidade para comunidade contribuir no debate. Porém, houve falta de interesse da sociedade em colaborar com o aperfeiçoamento da normativa.

Segundo Diogo, quase todas as contribuições foram feitas por estudantes, a maioria eram de membros de CA que costumavam participar dos debates. “A consulta pública não teve muitas colaborações. A maioria era dizendo ‘Universidade não é lugar de festa, é lugar de estudo, festa é bagunça’. Mas nesse ponto a discussão já estava bem concretizada pelas decisões das audiências feitas antes do texto ser redigido”.

Local de festa

“Frequento as festas desde que entrei na UFSC. As primeiras interações que tive, os primeiros eventos que participei, foram os HHs, as festas de integração. Eu acho que foi muito importante para confraternizar e gerar pactos dentro da universidade”, relata João Milhoreto, aluno da sexta fase de Psicologia da UFSC. O estudante conta que viu nesses eventos uma oportunidade de estabelecer laços com novas pessoas e relaxar das responsabilidades acadêmicas, pois era seu momento de lazer na época. João acredita que dividir a universidade entre um espaço de estudo e um local de recreação tornou sua estadia na UFSC mais prazerosa. “Era muito mais atrativo estar na universidade sabendo que teria essa recompensa no final de uma semana trabalhada”. Além da integração, o aluno destaca a democratização do lazer implicado nas confraternizações, pois a maioria é gratuita e o lucro retorna para melhorias dos CAs. Por já ter participado das organizações, ele afirma que fazer um HH é um trabalho coletivo.

Desde 2005, a UFSC também é palco do “Trote Integrado do CTC” (TI), reunindo estudantes de todos os cursos da instituição para festejar dentro do campus. O TI difere dos HH em diversos aspectos, principalmente por requerer a compra antecipada de ingressos e o acesso à festa ser controlado através de cercas.”Geralmente, o dinheiro cobre apenas os custos do evento. Os lucros são reinvestidos nas próximas edições para melhores atrações, reforçar a segurança, alugar mais banheiros etc.”, comenta Kevin Azevedo, estudante de Engenharia Elétrica que integra o comitê organizador deste ano.

Enquanto muitos dos HHs são espontâneos ou planejados com poucos dias de antecedência, o TI cumpre um processo de organização mais burocrático.“Fornecemos documentos para várias entidades, como a Reitoria, a Vigilância Sanitária, Bombeiros e Polícia Civil. Além disso, devemos arranjar cerca de oitenta seguranças terceirizados e um brigadista para cada mil pessoas presentes, o que soma ao redor de R$20 mil de investimento”, diz Kevin. O estudante afirma que a festa é pensada com, pelo menos, três meses de antecedência e não tem problemas relacionados com o excesso de barulho, pois a Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram) é avisada previamente e libera o uso de som alto nas horas que o evento acontece.

Apesar da burocracia envolvida, o secretário de segurança da UFSC atribui o sucesso do TI a essa organização cuidadosa. “Quando há um planejamento, se comunica a vizinhança e se organiza um evento corretamente, são poucas as chances de ter problemas”, afirma Leandro. Ele destaca que a falta de opções e locais adequados para diversão em Florianópolis é o que transforma a universidade em um espaço de encontro para os jovens.

Facetas da Universidade

Antônio entendeu que os alunos buscam na universidade um local de acolhimento e integração por vários motivos, mas assim como Leandro, acredita principalmente que essa adesão das festas dentro do campus são consequência da falta de espaços em Florianópolis. Seu pensamento está de acordo com a vice-reitora Joana, que afirmou que “a sociedade, nas suas variadas esferas, atravessa a universidade e vice-versa”.

“Na verdade, a vontade política da gestão da cidade sustenta a necessidade de olhar para a UFSC como uma fonte de lazer para as pessoas”, argumenta Antônio. Embora tanto a administração de Florianópolis, quanto da UFSC promovam eventos culturais, como shows e exposições, o estudante acredita que para os jovens, é essencial frequentar eventos festivos.

O estudante sustenta que os jovens precisam do seu espaço de integração e a UFSC pode proporcionar isso, tanto para os alunos, como para todos os jovens da cidade, de forma democrática. A inclusão é algo imprescindível em uma realidade em que mais de 70% dos estudantes do Brasil têm uma renda per capita de até 1,5 salário mínimo. O dado, que foi divulgado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), reflete na UFSC, onde 12,7% dos alunos vêm de escola pública e são de baixa renda.

“Não tem como achar que a universidade não vai incluir as pessoas que não são da comunidade universitária, esse é um dos princípios da UFSC. Inclusive é algo institucionalizado, a extensão que traz as pessoas para dentro, literalmente. O lazer não seria diferente disso”.

Em sua participação no Grupo de Trabalho, Antônio entrou no debate com o raciocínio de que, mesmo antes das festas, a Universidade já possuía diversos problemas de segurança, como falta de iluminação adequada e de vigilantes que transitem pelo campus. “A gente [do DCE] entrou com o debate de que a UFSC tem que garantir segurança das pessoas de forma séria, haja HHs ou não”.

O argumento do DCE corrobora o que aconteceu com Yolanda, pois mostra que essa insegurança não é culpa das festas, e sim da fragilidade no sistema de segurança da própria instituição. “A universidade não é uma bolha, não é uma ilha. Os problemas de fora desembocam na universidade”, finaliza Antônio.

Busca por conciliação

A nova Resolução Normativa está em processo de aprovação. Segundo o diretor Diogo, a previsão é que seja aprovada em breve, pois depois do recente período de greve nas instituições federais de ensino, a pauta sobre a regulamentação das festas no campus ainda está sendo discutida pelo Conselho Universitário (CUn). “O diretor do CED [Centro de Educação], o Gabinete da Reitoria, os estudantes e a comissão responsável ainda irão se reunir, mas não tem data prevista até agora”, complementa.

Para os membros do Grupo de Trabalho, é compreensível que haja dificuldades em conciliar os interesses da comunidade e o desejo dos alunos em realizarem suas festividades. Mesmo assim, a atual gestão se propôs ao máximo em encontrar uma maneira de tornar a UFSC um lugar acolhedor, que além de um ambiente de conhecimento, seja um ambiente de integração entre os estudantes. Tudo isso, sem comprometer o patrimônio público e a segurança dos envolvidos.

O diretor acredita que até o final de 2024 as partes cheguem a um consenso. “Além de falar com os estudantes, eu também tenho que conversar com as pessoas de 60, 70 anos que reclamam, para lembrá-los de que todo mundo já foi jovem, inclusive eles. Tentamos ao máximo chegar em um meio termo, e sabemos que ainda não está perfeito, mas foi o que foi possível fazer”, conclui Diogo.

Alunos protestam pelo retorno das festas da UFSC. Foto: Maria Magnabosco

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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