Maconha medicinal é pauta no legislativo catarinense

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10 min readFeb 20, 2024

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Tema também é discutido entre instituições sociais e de pesquisa, que tornam SC um dos pivôs na luta pelo acesso medicinal da cannabis no Brasil

Repórter: João Mesquita
E-mail: iaemesquita99@gmail.com

Dentro do armário de um cômodo de um conjunto habitacional no bairro da Bela Vista, em Palhoça, está o medicamento de Igor Seco, portador da síndrome de Marfan — doença que afeta o coração, os olhos, vasos sanguíneos e os ossos. As principais características de pessoas com esta condição são a alta estatura, membros desproporcionalmente longos, escoliose, lordose e outras características físicas capazes de gerar dor crônica em seus portadores. “Aos 9 ou 10 anos eu comecei a ter dor na coluna e nas costas, com 11 anos a minha escoliose apareceu e desde então eu tenho problema do pescoço à lombar, a coluna inteira torta”, conta.

Assim como Igor, atualmente existem mais de 180 mil pacientes sendo tratados com a medicina canábica, segundo os registros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Estudos indicam que os derivados da maconha podem ajudar no tratamento de doenças como Alzheimer, Parkinson, glaucoma, depressão, autismo e epilepsia. Também é útil contra dores crônicas, pois o Canabidiol (CBD) interage com receptores do sistema endocanabinoide, que estão presentes em diferentes partes do corpo, como o cérebro e o sistema nervoso central. Essa interação reduz a inflamação e a dor crônica.

Mesmo assim, o caminho para a prescrição de um tratamento com canabinóides é tortuoso, pois a planta e seus derivados são proibidos no Brasil desde 1938. Essa decisão foi influenciada pela proibição de entorpecentes nos Estados Unidos em 1930, ano em que foi criado o Departamento Federal de Narcóticos norte-americano. Desde essa época, o uso de drogas passou a ser controlado pelas instituições de segurança pública do Estado, ceifando a perspectiva do tema ser tratado como Saúde Pública. Devido à proibição, o medicamento não pode ser produzido no Brasil e tem de ser importado a um custo que pode chegar a R$ 2,500,00. Outra forma de se conseguir acesso ao tratamento é por meio judicial, através de um Habeas Corpus (HC) para o paciente que não conseguir lidar com os custos do remédio importado, permitindo que ele cultive seu próprio medicamento.

Igor Seco, portador da síndrome de Marfan, diz que “é um problema genético que causa uma aceleração do metabolismo. Os hormônios que fazem o esqueleto crescer nunca param de ser produzidos, ou param e podem voltar a se reproduzir a qualquer momento”. Foto: Reprodução/Instagram

Maconha no legislativo

Além do tema já ser debatido com seriedade por usuários e simpatizantes, ele também vem ganhando espaço nas casas legislativas do estado. Somente no ano de 2023, foram protocolados na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) três projetos de lei (PL) sobre o uso da cannabis medicinal e sua distribuição gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e por unidades privadas conveniadas a ele. O projeto que já foi aprovado e está em debate é de autoria da deputada Paulinha (Podemos), enquanto os outros dois são propostas dos deputados Volnei Weber (MDB) e Padre Pedro Baldissera (PT), que ainda aguardam debates. Os três projetos se referem à importação de medicamentos estrangeiros que custam entre R$ 250,00 e R$ 2,500,00, porém o projeto de Baldissera e de Weber também levam em conta a produção pelas associações da sociedade civil. O valor do medicamento importado é visto como inacessível por pacientes, como Igor. “Não faz sentido importar CBD de baixa qualidade do Canadá enquanto a gente tem associações do nordeste ao sul do Brasil cultivando genéticas de alta qualidade e já suprindo a necessidade de seus pacientes por valores abaixo do que a gente encontra no mercado de importação.”

“Não faz sentido importar CBD de baixa qualidade do Canadá enquanto tem associações do Brasil cultivando com alta qualidade”

Mesmo que os projetos tenham como questão central o acesso gratuito aos derivados medicinais da maconha, pouco se discute neles sobre o fornecimento destes fármacos pelas associações que já existem no Brasil. Elas são organizações do terceiro setor (ONGs) compostas principalmente por pacientes em tratamento de derivados da cannabis.

A Santa Cannabis é uma entidade catarinense que recebeu no ano de 2023 uma decisão judicial favorável ao plantio e extração do óleo da maconha para produção de medicamentos de uso humano e veterinário. A instituição já atende mais de 4 mil pessoas no estado, mas ainda não foi cotada para ser fornecedora dos medicamentos para o SUS. O presidente da Santa Cannabis, Pedro Sabaciauskis, critica a forma como o legislativo brasileiro vem pautando o assunto sobre a distribuição destes medicamentos pelas unidades públicas de saúde. “Isso é um crime que tão fazendo com o Brasil. Me desculpem os [políticos] bem intencionados, mas mal assessorados, porque usam dessa lei para ganhar voto e no fim tá empurrando todo o custo desse medicamento para o SUS, que vai ser importado gerando lucro para as empresas lá fora e não pro Brasil”.

O preço da importação de remédios de laboratórios estrangeiros vai gerar um custo de R$ 3,5 bilhões para o SUS, enquanto se fosse feito pelas associações nacionais seria de R$ 0,7 bilhões. O dado é uma estimativa de Pedro para a possibilidade de atendimento de cerca de 14 milhões de brasileiros pelo sistema público de saúde.

Na Câmara Municipal de Florianópolis, existe o projeto de lei, de 2021, da vereadora Carla Ayres (PT), que procura estabelecer a ponte com as associações brasileiras, preservando as relações de trabalho já existentes na busca de uma produção nacional do ramo. A vereadora lembra que já houve outros PLs aprovados nas câmaras de vereadores de Porto Alegre, Belo Horizonte e, recentemente, uma lei foi sancionada pelo governo do Estado de São Paulo. Entretanto, ela destaca que o único a ser realmente implantado foi no município de Búzios (RJ), que produz medicamentos em parceria com a Associação Abrario.

A associação possui um programa social em parceria com a prefeitura, que fornece gratuitamente o medicamento para até 100 pacientes associados por ano. Porém, a entidade não foi beneficiada com a licitação do medicamento. Ao invés disso, a prefeitura fechou, em 2022, um contrato de licitação de importação com o custo de 7 milhões para atender 400 crianças. Segundo a Abrario, as mesmas 400 crianças poderiam ser atendidas pela associação e o custo não chegaria a nem 10% desse valor.

Por isso, Carla está incluindo em seu projeto de lei a Santa Cannabis como fornecedora dos medicamentos para o SUS e também para a Diretoria do Bem-estar Animal (Dibea) de Florianópolis. Além disso, a vereadora também é autora de outro projeto de lei do mesmo ano que visa fomentar o desenvolvimento de pesquisas sobre os usos farmacêuticos, medicinais e industriais da cannabis.

Os dois projetos ainda não foram aprovados na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, que é a primeira comissão para que o projeto seja debatido entre os vereadores. Carla relata um avanço tímido destas pautas devido ao tema ser sensível para a base eleitoral de muitos parlamentares, sendo que muitos deles são responsáveis por difundir desinformação sobre o assunto — nas redes sociais e no ambiente político.

Mesmo assim, os projetos já foram debatidos em audiência pública em abril deste ano. Estiveram presentes especialistas na área médica, científica e jurídica, além da participação de movimentos sociais e pacientes que relataram a melhora na qualidade de vida proporcionada pela medicação.

Enquanto o legislativo ainda caduca em pautar o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a discutir em agosto deste ano se o porte de drogas para uso pessoal é crime ou não. A votação estava suspensa desde 2015 e há uma expectativa entre usuários, acadêmicos e ativistas de que ocorram mudanças, como a descriminalização do uso e cultivo da maconha. A corte julga a constitucionalidade do artigo 28 da chamada Lei de Drogas, que considera crime adquirir, guardar ou transportar entorpecentes para consumo pessoal. A interpretação deste artigo da lei gerou um encarceramento em massa da população brasileira, principalmente de negros e pobres. Ao votar, o ministro Luís Roberto Barroso disse considerar prioridade “impedir que as cadeias fiquem entupidas de jovens pobres e primários, pequenos traficantes, que entram com baixa periculosidade e na prisão começam a cursar a escola do crime, unindo-se a quadrilhas e facções. Há um genocídio brasileiro de jovens pobres e negros, imersos na violência desse sistema.”

Medicina como porta de entrada

André Farias é coordenador do mandato do deputado Marquito (PSOL) na Alesc e afirma que a bandeira pela legalização é levantada primeiro pela perspectiva medicinal, mas as reivindicações que o tema traz são mais profundas. “No atual momento histórico, escolhemos a cannabis medicinal para ser a porta de entrada de um movimento antiproibicionista, que é a única e verdadeira luta neste sentido.”

“Nesse momento histórico, escolhemos a cannabis medicinal para ser a entrada de um movimento antiproibicionista”

Em Santa Catarina, segundo André, já existem clínicas particulares de internação compulsória em Chapecó, São José e outras cidades. Isso se deve a uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019, que permite a internação forçada de usuários de drogas. “Não estou dizendo que as clínicas de reabilitação não são importantes, já tive pessoas muito próximas minhas que frequentaram e são muito gratas. Agora isso não é política pública e é uma injeção de recursos públicos para empresas privadas. Uma alternativa é o fortalecimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a possibilidade de que a redução de danos seja oferecida pelo SUS.”

A política de redução de danos é um conjunto de estratégias que visa minimizar os danos causados pelo uso de diferentes drogas, ao invés da prevenção do uso das substâncias em si. Esta proposta já teve bons resultados na redução de casos de transmissão de HIV ao realizar a troca de seringas entre usuários de cocaína e heroína nos presídios brasileiros na década de 90. O tema é destacado no livro “Carandiru”, do escritor Dráuzio Varella, médico que dedicou sua carreira ao tratamento de detentos no sistema prisional brasileiro.

É também uma das principais estratégias utilizadas no combate ao uso de drogas em Portugal, que descriminalizou o uso, posse e consumo de todas as drogas no ano de 2000. Essa medida fez com que diminuíssem os casos de transmissão de doenças, uso de drogas como heroína e cocaína e também de prisões relacionadas a narcóticos. Isso se deu por meio de programas e cuidados sociais, como a substituição de heroína por metadona, um opioide utilizado no tratamento de dependentes químicos. Deixar de tratar os usuários como criminosos passou a ser uma das prioridades em Portugal.

Países latino-americanos, como Uruguai e Argentina também adotaram uma postura menos moralista sobre o uso de drogas e mais informativa para que os cidadãos saibam mais sobre a redução de danos. O tema faz parte da pesquisa de Vini Lanças, doutor em sociologia política pela Universidade Federal Santa Catarina (UFSC), que investiga a desobediência civil nas democracias contemporâneas.

Pesquisa na UFSC

Um dos desafios de Erik Amazonas, professor do curso de veterinária da UFSC no campus de Curitibanos, é a proibição do uso da maconha para estudos em laboratório. Ele é pesquisador do uso veterinário da planta e inaugurou o primeiro curso de Endocanabinologia no país, que estuda o sistema endocanabinóide em humanos e animais.

Além disso, ele possui HC para o cultivo de dezenas de plantas para fins acadêmicos no campus de Curitibanos, onde desenvolve a exploração econômica do cânhamo, planta que pertence à mesma espécie da maconha.

O cânhamo possui pouco THC, por isso seu cultivo não costuma ser para o fumo ou extração medicinal e sim para um uso econômico, já que é um vegetal de uso versátil. Ele pode ser usado nas indústrias têxtil, de construção, de celulose, bioplástico e muito mais. Acrescenta o fato de que existem estudos de utilização do cânhamo para recuperação de solos contaminados ou degradados por meio da fitorremediação, que é um processo que utiliza plantas como agentes de purificação ambiental. De acordo com a pesquisa de campo do trabalho de conclusão de curso (TCC) de Lucas Delfino, pela Universidade de Brasília (UnB), o cânhamo também ajuda na saúde de solos de plantio, por meio da rotação de cultura, o que contribui muito nas colheitas.

Este conjunto de fatores torna o terreno de Curitibanos fértil para a criação do Polo de Desenvolvimento e Inovação em Cannabis (Podican) da UFSC, pois a região de Curitibanos é cercada de importantes setores econômicos. “200 km ao leste daqui tem o polo têxtil catarinense, a oeste tem toda a produção animal e da indústria alimentícia, e aqui está localizado o centro de celulose e papel. Também estamos próximos da área metalúrgica, que pode colaborar na criação de equipamentos necessários para a industrialização do cânhamo. Tudo isso contribui para que Santa Catarina possa se tornar o propulsor da nova bioeconomia voltada à cannabis.”

Professor Erik Amazonas e a veterinária Vanessa Seabra com as plantas doadas pela Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Amame). Foto: Reprodução/Instagram

Cultivo e opinião médica

Ainda na UFSC, o professor de neurologia do curso de Medicina da universidade, Paulo Bittencourt, é neurologista há mais de 40 anos e prescreve medicamentos à base de cannabis, que segundo ele, são tão ou mais seguros que os remédios tradicionais em certos tratamentos. O neurologista, que já tratou de doenças como Parkinson, Distonia e Alzheimer acredita que para quem tem o transtorno do espectro autista, “não há dúvida que a cannabis é a melhor solução. Além do mais, a maconha tem uma ação polivalente no combate de mais de uma doença, como no tratamento de epilepsia e distonia, duas condições relacionadas ao distúrbio neurológico dos movimentos do corpo.”

No entanto, a demora do Conselho Federal de Medicina (CFM) em atualizar suas regras sobre a prescrição desses remédios tem deixado médicos que receitam esse tipo de tratamento expostos a processos e sindicâncias. “Como é que eu vou falar bem de uma coligação de extrema direita que apoiou o uso de cloroquina [durante a pandemia] e causou a morte de milhares de pessoas nesse país. Eu desconfio fortemente que essa instituição seja um aríete da indústria farmacêutica.”

Por isso é muito comum que antes que o paciente consiga acesso a um tratamento com a cannabis, ela tenha que tentar diversos tipos de remédios convencionais antes. O próprio Igor Seco já utilizou mais de dez remédios diferentes para tentar tratar suas dores crônicas, mas só encontrou resultados eficientes quando começou a usar os fitoterápicos à base de cannabis.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC