Mangue aterrado e gentrificação: o (in)cômodo legado da Avenida Madre Benvenuta
O morador Luiz Carlos Ferreira, 71 anos, recolhia mariscos no local e tomava banho no rio onde hoje está um shopping
Por Alan Cavalieri
A partir do desmatamento de parte do manguezal, que ocupava uma área de 603 mil metros quadrados, constrói-se a avenida Madre Benvenuta. A natureza deu lugar ao projeto de urbanização que conectou a região da Trindade com a do Itacorubi, dois dos principais bairros de Florianópolis, localizados entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc). Só entre as duas instituições educacionais circulam por dia 50 mil pessoas segundo registros das duas instituições. Um dos residentes mais antigos da avenida é Luiz Carlos Ferreira, de 71 anos. Ele recorda que já chamou a avenida de “Rua das Camarinhas, Rua das Freiras, Rua da Invernada, Rua do Paula Ramos, e até mesmo Rua da Gruta”. O nome Madre Benvenuta é uma homenagem à freira responsável pela venda das terras locais, a partir de 1970. Na época, a área que hoje ocupa o bairro Santa Mônica era posse do Convento das Irmãs da Divina Providência, que continua no mesmo lugar até hoje.
Seu Luiz, como é conhecido, recorda do tempo quando a rua terminava pouco antes do manguezal, com águas cristalinas, onde o morador tomava banho com os amigos na infância. “Aqui se criava porco, cada um tinha sua galinha, plantávamos e colhíamos”, diz, com saudades dos ares da antiga fazenda local.
Ele ainda lembra dos domingos em que andava a cavalo com os colegas, ou jogava bola no campo de futebol Paula Ramos, futuro clube de mesmo nome, e, principalmente, de quando pescava mariscos para o jantar. Sim, era possível juntar mariscos em pleno bairro Santa Mônica. “A água do mangue chegava até a porta de casa quando chovia”, recorda seu Luiz.
Santa Catarina é um dos estados que mais desmata Mata Atlântica no Brasil. No ano de 2022, o número de áreas desflorestadas já ultrapassam 1.350 hectares, segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento da Mata Atlântica (Sad). São três vezes mais registros em comparação com 2021, o que equivale a 1.600 campos de futebol em área verde destruída. Nesses locais em que viviam animais e os moradores cultivavam seu próprio alimento no terreno não há mais vestigios dessa vida na avenida principal do Santa Mônica, um bairro que se consolidou como de classe média alta, através de uma das mais importantes avenidas da cidade.
Antes dela, há 70 anos, mata, cachoeira, marisco, cavalo faziam a festa dos moradores locais. Hoje a garotada — e os adultos –, trocaram a natureza pelo shopping, principal ponto comercial do bairro. O prédio de três andares e 129 mil metros quadrados foi vendido em 2007 por R$104,55 milhões, negociação que mudou seu nome. Esse é um dos sinais que confirmam a transformação vivida por seu Luiz da rua “de área rural para uma avenida de ‘alto padrão’”.
Alto padrão porque foi criada para ser moradia dos funcionários públicos das estatais locais que surgiram no bairro ao lado, Itacorubi, na década de 1960. Esse é o caso das Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc), das Telecomunicações de Santa Catarina S/A (Telesc), fechada em 2002, e da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). A região foi povoada pelos profissionais que compunham a elite dessas empresas, alguns vindos dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, de acordo com o especialista em História do Tempo Presente, pela Udesc, Reinaldo Lindolfo Lohn.
Mas o projeto de lei n.º124 do dia 21 de maio de 1957 do vereador Haraldo Vilela, que criou Santa Monica, acabou tomando outro rumo. Hoje o bairro se assemelha a um centro comercial. Quem olha, dificilmente imagina que o menino Luiz, um dia ali mesmo cortava capim para fazer colchão e até se machucou com um corte na perna. A floresta nativa que seu Luiz conheceu na infância foi desmatada e aterrada para criação da segunda parte da Madre Benvenuta, na década de 1970. Lohn relembra que “Uma série de protestos aconteceram contra o desmatamento da área”, mas não evitaram a implementação do projeto da avenida.
Seu Luiz não precisa mais caçar mariscos, nem cultivar alimentos para sustento. Apesar de não poder tomar mais banho na água do mangue, é grato pela facilidade de ir ao mercado próximo de casa. O terreno herdado por gerações que ultrapassam a bisavó dele já não é mais o mesmo, mas da casa atual, na frente da antiga residência da família, ele assiste às diferentes fases da Avenida Madre Benvenuta. Diz que sente falta dos mais de quatro mil alunos que em algazarra entravam e saiam do falido colégio particular próximo a sua casa, ou do time de futebol florianopolitano Paula Ramos, verticalizado em prédios com valor atual que ultrapassa R$ 1 milhão.
Ele não sabe como a família conseguiu as terras que hoje deu lugar aos prédios de mais de 20 andares, clubes esportivos, clínicas, cafés, restaurantes de luxo, corretoras imobiliárias e uma casa neutra, bege. É a casa de seu Luiz. Ela se perde em meio às fachadas dos comércios, como a loja oriental, a mais recente “moradora” da avenida. Inaugurada no dia 28 de setembro de 2022, a gerente comercial, Shayane Mieres, de 22 anos, justifica a escolha da região por ser uma área mais nobre. “Aqui o público tem mais poder aquisitivo”.
Até mesmo o ex-tenista profissional condecorado no Hall da Fama, nos Estados Unidos, Gustavo Kuerten, o Guga, tem sua história entrelaçada à Madre Benvenuta, onde há um centro comercial com seu sobrenome. O terreno, ora inacessível na infância do seu Luiz, por causa do mangue fechado, hoje tem lojas, padarias, cafeterias e restaurantes. Os que visitam podem apreciar a movimentação da avenida ao ar livre, onde fica a praça de alimentação. Os que aguardam pratos com valores que ultrapassam a casa dos três dígitos, ostentam óculos e roupas de grife. Refletida nessas lentes, é possível ver a fachada da hamburgueria mais estrelada nos rankings de gastronomia da cidade, do outro lado da rua.
É nessa hamburgueria que Bruno Portela, engenheiro de 42 anos, morador do centro de Florianópolis, comenta sobre a evolução da Avenida Madre Benvenuta, cada vez mais procurada por pontos comerciais. O tempo das casas residenciais, como a de seu Luiz, estão ficando na lembrança. Portela mesmo se lembra da casa de um amigo, atualmente morador dos Estados Unidos, que inundava com o excesso de chuva e maré alta, por causa do mangue aterrado.
Ações da prefeitura implantaram certa infraestrutura no bairro, mesmo matando a vegetação nativa quase que por completo em 1970. A iniciativa diminui os desconfortos do mangue e ampliou a área para construções. A expansão do comércio veio em seguida, com a valorização imobiliária, segundo Lohn.
Durante o pico da pandemia da Covid-19, seu Luiz cogitou vender o terreno que abriga sua casa, uma das únicas residências da avenida tomada por comércios, mas desistiu.“A vida hoje nunca esteve tão boa”, diz o morador, que gosta de caminhar pela avenida com um dos únicos colegas que ainda mora na cidade e o remete às antigas versões da avenida que poucos conheceram. Quando olha para sua cicatriz na perna, dos tempos do capim pro colchão, seu Luiz sente saudade, mas gosta da facilidade dos dias de hoje.