TCU solicitou exame de inconsistências no pagamento de bolsas que não chegam a 4% do valor noticiado na deflagração da operação
Por Luísa Michels
Já nas primeiras horas da manhã do dia 14 de setembro de 2017, o campus principal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, esteve movimentado com a presença de quase cem policiais federais. Eles cumpriam sete mandados de prisão temporária e cinco conduções coercitivas em Florianópolis, Itapema e Brasília, pelo suposto desvio de verbas do programa de Educação a Distância (EaD) da UFSC. Nesse dia, o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi preso, acusado de tentar barrar as investigações internas.
As primeiras notícias sobre a operação Ouvidos Moucos informavam que o desvio era de 80 milhões de reais, mas, depois da primeira coletiva da Polícia Federal (PF), soube-se que esse era o montante total que o programa recebeu ao longo de 11 anos. As verbas investigadas, de origem federal, fazem parte do programa Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A operação aconteceu em conjunto com o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU).
O início das investigações
Dois meses antes da Ouvidos Moucos ser deflagrada, em julho de 2017, o TCU autorizou uma Fiscalização de Orientação Centralizada (FOC) para a realização de auditorias, com o intuito de verificar a existência de irregularidades na execução do UAB em seis universidade federais. Essas auditorias contaram com a participação das secretarias do TCU nos estados de Alagoas, Ceará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e Minas Gerais, e foram coordenadas pela última.
Depois de quase dois anos, em 15 de maio de 2019, o TCU votou um acórdão que definiu prazo de 180 dias para que a Capes examinasse as irregularidades encontradas no pagamento de pelo menos 2,9 mil bolsas do programa EaD da UFSC, no período de 2012 a 2017, as quais somam quase 3,2 milhões de reais, valor que pode representar menos de 4% do que foi anunciado. As bolsas eram pagas aos chamados professores-pesquisadores, professores-formadores e tutores a distância dos cursos.
O relatório aponta quatro eixos de irregularidades principais: duplicidade no pagamento de bolsas, falta de registro de cursos e bolsistas, bolsas com valores que superam os limites estabelecidos pela Capes e pagamentos indevidos de bolsas através da Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária (Fapeu).
A auditoria identificou que 128 bolsas foram distribuídas para 40 pessoas que já eram bolsistas de outros programas. Alvaro Lezana, diretor-geral do gabinete da Reitoria da UFSC, justifica que muitos professores davam aulas em mais de um dos cursos a distância oferecidos pela UFSC, e recebiam um pouco a mais por conta disso. Pela Lei 11.273/2006 é vedado a acumulação de mais de uma bolsa. Nesse sentido Alvaro enfatiza que “a Capes diz que esse pagamento é indevido, mas o professor trabalhou, deu a aula, deu as notas, os conceitos e tudo o mais. Ele não ganhou uma segunda bolsa”.
A resolução do UAB proíbe o recebimento de mais de uma bolsa no mesmo mês por bolsista do programa que exerceu mais de uma função. “Já mandamos resposta para a Capes. Estamos agora entrando na Advocacia Geral da União com processo para tentar um acordão legal com a Capes na Justiça, de conciliação”, acrescenta Lezana.
O texto do relatório aponta também que, nesses cinco anos, foram pagas 2.195 bolsas a pessoas que não possuem os registros necessários, nos sistemas internos da UFSC, que comprovem a prestação das atividades. Além disso, quatro pessoas recebiam bolsas que ultrapassaram o valor limite, de dois mil reais, estipulado pela Capes.
É também mencionado um contrato entre UFSC e Fapeu, que realizou o pagamento de 1.183 bolsas, totalizando 1,1 milhão de reais. Para o TCU, esses pagamentos são indevidos pois apenas a Capes e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) podem pagar bolsas de estudo e de pesquisa dos programas vinculados ao Ministério da Educação. Desde a Operação Ouvidos Moucos, os recursos do UAB são repassados para a Secretaria de Educação a Distância (SEaD), que é responsável por administrar e gerir recursos provenientes da Capes e não mais a Fapeu.
O mesmo acórdão determina, ainda, que em 90 dias, a universidade comece a fiscalizar projetos de Pesquisa, Ensino e Extensão para garantir que estejam de acordo com as normas do programa UAB. Pede também mais transparência, tanto na questão dos contratos firmados, quanto nas despesas. Isso porque a equipe de auditoria concluiu que a UFSC não realizou os processos seletivos necessários para bolsistas do Sistema UAB, que foram realizados diretamente pelos coordenadores dos cursos e não seguiam os normativos do programa.
Nesse meio tempo, em 21 de junho, o Ministério Público Federal de Santa Catarina (MPF-SC) formalizou pela primeira vez uma denúncia relacionada à Operação, marcada por controvérsias. No dia 11 de julho, às vésperas do fechamento dessa edição, a Justiça Federal acatou o pedido do MPF-SC para quebrar o sigilo judicial e tornar público o processo. A Justiça deu prazo de 15 dias para que as 13 pessoas denunciadas manifestem suas defesas. A partir dessas declarações a Justiça poderá arquivar ou acolher as acusações apresentadas pelo MPF-SC.
Ilegalidade x Irregularidade
O relatório do TCU trata o resultado das auditorias como irregularidades, que é diferente de ilegalidade. A irregularidade acontece quando uma normativa ou um regulamento interno não é obedecido. Foi o caso da UFSC, que não cumpriu as resoluções do programa UAB e as normativas da Capes. Ilegalidade ocorre quando uma lei não é cumprida.
O professor de Direito Administrativo da UFSC, José Sérgio Cristóvam, classifica a irregularidade como “normalmente mais branda” do que a ilegalidade. “Quando se diz que algum procedimento do poder público está irregular, não é o mesmo que dizer que ele está ilegal. E as consequências disso são completamente diferentes”, conclui.
O advogado afirma também que o descumprimento de resoluções e normativas “não tem a ver com desvios de verbas, apropriação de valores e fraudes”. Ele evidencia que uma irregularidade pode ser a falta de assinatura em um documento, a violação de um procedimento ou a falta da execução de um parecer, mas “a ponto de não gerar propriamente uma ilegalidade, porque não ofenderia nenhuma lei”.