Na luta contra a psicofobia

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11 min readApr 28, 2021

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Além de lidar com a doença psíquica, pessoas com transtornos mentais enfrentam preconceito e invisibilização

Por Gabriele Oliveira

Antes da pandemia de Covid-19, que provocou o aumento em 59% os casos de depressão e em 63% os casos de ansiedade, as doenças psíquicas já registravam números crescentes conforme pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) em 11 países. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 apontam que 16,3 milhões de brasileiros com mais de 18 anos sofrem de depressão, um aumento de 34,2%, de 2013 para 2019 — ou seja 4,15 milhões a mais de diagnósticos. Em alguns estados, como Rondônia, o crescimento foi de 70%. Junto com os diagnósticos, crescem os estigmas e preconceitos, fomentados por décadas de tratamento desumano — já que o Brasil por muito tempo descartou seus doentes mentais em hospitais cuja função não era médica e curativa, apenas mais uma forma de exclusão social.

O termo psicofobia foi proposto por Chico Anysio, famoso humorista brasileiro, que viveu com depressão por décadas. Pouco antes de morrer, em março de 2012, entrou na luta contra o preconceito que sempre o cercou. Quando recebeu em casa o médico Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Chico deixou uma sugestão: “Antigamente existiam carros usados. Agora chamam de ‘seminovos’. As coisas hoje têm esses nomes. Crie um nome para o preconceito.”

O pedido do comunicador não foi esquecido. Anos depois, a ABP adotou o termo “psicofobia” para designar atitudes preconceituosas e discriminatórias contra pessoas com deficiências, doenças e transtornos mentais. O conceito anda lado a lado com a luta antimanicomial no Brasil, cuja reforma psiquiátrica foi feita há 30 anos.

As décadas da prática de internação e tratamento manicomial ainda se refletem no imaginário brasileiro. Não por acaso, a psicofobia persiste e se apresenta em diferentes níveis: desde aqueles que ainda acreditam no isolamento como a solução até os que pensam que os transtornos são apenas frescuras.

Uma Chatice

Ao se afastar dos amigos, Luana* se sentiu isolada. A estudante de Letras da UFSC, diagnosticada com depressão, foi diversas vezes taxada pelos colegas como chata e sentimental. Por fim, preferiu cultivar as poucas amizades saudáveis que possui — abrindo mão da luta para ser ouvida. Os estereótipos que marcam a vivência de ser uma mulher negra têm acompanhado a estudante em diversos âmbitos da sua vida, inclusive quando se trata de sua saúde mental.

“Eles pensam: a Luana aguenta tudo. Eu não sou vista como digna de fragilidade. De ser cuidada“. Essa forma de tratamento não acontecia com outro colega do círculo de convivência, que também tinha depressão. Ela relata que para ele, um homem branco, todos dispunham de paciência e compreensão. Enquanto isso, assim como muitas mulheres negras, Luana sofria em silêncio, lidava com tudo sozinha. “As pessoas sempre me dizem: você trabalha, estuda, cuida dos irmãos. ‘Eu tenho tanta admiração por você’. E aí elas pensam: se eu aguento isso, aguento tudo” , arremata.

Boletos, por Giuliano Benedet

O título de “chata da turma” também acompanhou Ester*, estudante de Jornalismo na UFSC. Apesar de seus privilégios financeiros, também sofreu com o preconceito em suas amizades. Vista como alguém que tem tudo, não lhe era reservado o direito de estar mal. Costuma ouvir que precisa ser mais positiva, ver o lado bom das situações ruins e que sua felicidade só dependia dela mesma. “Não é assim que funciona. Eu tenho uma doença. Uma doença mesmo. Você não chega pra alguém com câncer e diz: você tem câncer porque acredita que tem câncer. É horroroso falar isso pra ela. E pra mim também.”

A experiência não é exclusiva de Ester. Os discursos distorcidos de amor próprio — que geram sentimentos de culpa e fracasso — , também acompanharam Silvana*, estudante de Artes Cênicas na UFSC. Ela é uma mulher gorda e já recebeu diferentes diagnósticos, como transtorno bipolar, depressão, borderline e ansiedade generalizada. “Uma psicóloga até disse que o meu problema era que eu tinha que emagrecer”.

Amor próprio, por Giuliano Benedet

Mesmo tendo vivenciado muitas situações de descaso com profissionais da área, Silvana reconhece que, ainda assim, ser neuroatípica — pessoa com transtorno, doença ou deficiência mental –, é mais fácil agora. Apesar de ter sido nomeada há pouco tempo, a psicofobia é um preconceito historicamente estruturado, vide tentativas recentes de retomada das internações compulsórias e as ideias por trás disso, fruto da visão que as pessoas têm sobre aqueles que possuem algum transtorno psíquico.

Doutora em Saúde Coletiva, Fabíola Stolf Brzozowski vê o preconceito como resposta de sujeitos que não conseguem aceitar o outro como alguém diferente de si. O mesmo acontece com outras minorias sociais — que enfrentam dependências ou desvantagens em relação ao outro grupo –, como mulheres, negros, LGBTQIA+, idosos, pessoas com deficiência, pobres, etc. “Como a gente explica o preconceito contra quem gosta do mesmo sexo? Por que existe preconceito com quem está em sofrimento psíquico? É o mesmo movimento. O preconceito vem da ideia de que todo mundo tem que viver ‘como eu vivo’”, comenta Fabíola.

A doutora explica que, para esse sujeito, se ele encara uma situação e isso não lhe causa sofrimento, para o outro isso também não deve causar. A pessoa tem que estar bem o tempo todo, mas, de fato, isso não é um simples esforço individual. O desconhecimento da realidade dos antigos manicômios — a tortura, os eletrochoques, as lobotomias, o abandono, a falta de cuidados –, também contribuem para esta versão distorcida sobre o sofrimento mental. É necessário mobilizar ações de reflexão sobre o significado e a importância da luta antimanicomial no combate a um sistema hospitalar psiquiátrico que se assemelha a instituições carcerárias, forjado em punição e repressão.

Saúde e Finanças

A banalização do sofrimento psíquico é recorrente, em diferentes gêneros, idades e classes. É difícil encontrar relatos de pessoas que encontram suporte na família e nos amigos. A incompreensão do que são transtornos, síndromes e doenças mentais e da gravidade dos mesmos, leva a uma cultura que acaba por culpabilizar as vítimas, prejudicando ou até impedindo o tratamento adequado tão logo possível. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o risco de desenvolver depressão é maior em situações de pobreza. A renda também é fator determinante no acesso ao tratamento: quanto menor a renda, pior é o acesso.

Infográfico por Higor Vieira

“Tomei um remédio, tomei outro, tomei mais um. Eu queria parar de existir”. Luana chegou ao limite aos 15 anos. Trabalhava oito horas por dia, cursava o Ensino Médio e cuidava de seus dois irmãos menores. Sua mãe lutava contra uma depressão profunda e tinha três empregos para conseguir sustentar a família. A angústia de não saber se teria uma próxima refeição a deixava desolada. Cansada, Luana não entendia seus sentimentos, tudo era dor.

Hoje, aos 22 anos, e após dois anos de tratamento contínuo, a jovem se sente estável, com a ajuda da medicação e do acompanhamento profissional. Mas, para trilhar esse caminho, foi preciso persistência e muito trabalho. A situação financeira da família pesava em cada decisão que tomava. Foram necessários sete anos para conseguir bancar o próprio tratamento. Luana passou os dois primeiros anos da faculdade trabalhando 40 horas por semana em um hospital infantil. Sustentar-se tem sido uma responsabilidade constante, que lhe custa abdicar de cuidados próprios e investimentos em sua carreira acadêmica. “Se eu tô viva, se eu tenho o que comer na mesa, é por mim. Se acontecer qualquer coisa, eu não tenho ninguém pra me ajudar”, argumenta.

Rodrigo*, 24 anos, é estudante de Filosofia. A saúde financeira da família sempre impactou sua saúde mental. Durante anos, viveu com uma constante sensação de agonia, mas não possuía recursos para procurar ajuda. Foi em 2017, em uma consulta, que tudo mudou, ao receber o diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Generalizada (TGA).

“Você já reparou nas suas mãos? — perguntou o médico.”

“Ah, elas tremem.”

“E você sabe que isso não é normal?”

A partir dali, iniciou um tratamento com medicação manipulada em farmácia e parou de beber álcool. Em 2020, recebeu alta. Mas, antes disso, perdeu muitas amizades. Afinal, ser um homem com transtorno mental não tem sido fácil. Rodrigo ironiza que a masculinidade é algo que precisa ser constantemente reafirmado. “A qualquer momento, você comete um erro e deixa de ser homem. Ou, torna-se menos. Se você não bebe, é menos homem. Você faz terapia? Menos homem. Você toma remédio? Menos homem. E, assim, não sobrou mais ‘homem’ em mim”.

Logo no início do tratamento, Rodrigo tomava os comprimidos diários sozinho no quarto, para evitar o olhar triste de seus pais. Para eles, era um sinal de como seu filho estava cada dia mais doente — quando, ao contrário, ele finalmente se sentia melhor.

Esse sentimento de culpa e vergonha também marcou a família de Ester. Sua mãe chegou a agredi-la fisicamente por duvidar da veracidade de seus sintomas — sem compreender a situação, dizia que a filha era agressiva, que não era confiável.

Com seis anos de tratamento, compreender os sintomas foi um processo longo. Antes do diagnóstico de depressão, aos 14 anos, cada minuto era uma tortura. Diariamente, Ester toma quatro antidepressivos e um medicamento para regular o sono. “Cansaço, falta de motivação, impaciência. É a doença, não é quem eu sou. Eu tento continuar sendo quem eu sou, apesar da doença”, comenta.

Lobotomias, por Giuliano Benedet

Culpa e Vergonha

Foram seis meses de isolamento para que Inara chegasse ao seu limite — e ela se sentia muito bem. Historiadora e doutoranda na UFSC, ela virava noites com produções acadêmicas. Foram cinco dias em claro, até ser levada por familiares a um hospital psiquiátrico, onde foi medicada. Seus amigos questionaram se ela estava usando drogas, pois tudo que dizia não fazia sentido. Ainda assim, a jovem se sentia muito bem.

Em 2020, tudo a deixava ansiosa. Dentro de seu apartamento em Florianópolis, o contexto caótico do país, somado ao isolamento social, derrubaram Inara. Ao ser atendida em um hospital psiquiátrico particular, após poucos minutos de conversa, o médico sugeriu internação. Não lhe ouviu. Na verdade, mal a olhou. Internar parecia o jeito mais fácil de se livrar do problema — a garota surtada que estava sentada à sua frente, completamente perdida. Na mesa do médico, uma pilha de caixas de remédios — todos arrumados, como produtos na vitrine.

Com o diagnóstico de transtorno bipolar, a ideia de ter se tornado um estereótipo levou Inara a um sentimento de culpa, experimentando o preconceito contra si mesma. “Eu sinto vergonha de ter perdido o controle. Sinto vergonha de ter me visto como essa pessoa louca”. Desde o surto psicótico, ela segue com tratamento psicológico e psiquiátrico. Mas, apesar do contexto de sofrimento psíquico generalizado, ela se constrange. Questiona como chegou a ‘este ponto’ e o que poderia ter evitado o colapso.

Luta por Mudanças

Fabíola acredita que só é possível mudar a situação com uma luta organizada em várias frentes. É preciso atuar no sistema de saúde, no sistema educacional, na esfera jurídica, pois “a mudança vem de vários movimentos, ao mesmo tempo, em vários locais diferentes.” Este último, pode ser muito eficiente no combate à psicofobia. Fabíola cita o exemplo das Pessoas com Deficiência, que só começaram a ser incluídos na sociedade economicamente ativa por força de lei. No Brasil, a Lei de Saúde Mental (Lei Federal 10.216), proposta em 1989, só foi aprovada em 2001. Ela dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial à saúde mental.

A luta para tornar a psicofobia um crime já virou Projeto de Lei, com o PLS 74/2014 — que tramitou por quatro anos no Senado Federal e foi arquivado. O projeto propunha alteração no Código Penal para tipificar o crime de preconceito contra pessoas com deficiência ou transtorno mental. Mais do que punir, a proposição objetivava educar contra o preconceito.

Iniciativas socioculturais também podem ser eficientes na luta por transformações culturais sobre a loucura. Anualmente, ocorre, em Alegrete-RS, a Parada Gaúcha do Orgulho Louco, ocupando as ruas e praças da cidade. Fantasiados, os integrantes brincam e informam, reafirmando a importância do cuidado em liberdade das pessoas em sofrimento psíquico. Em 2020, devido à pandemia, a Parada foi realizada online.

Eventos como este acontecem em outras cidades brasileiras, celebrando o afeto, a compreensão e o acolhimento como recursos essenciais nos processos terapêuticos daqueles que estão em sofrimento. As paradas se mantêm firmes, resistindo a ataques que visam o desmonte do SUS e a retomada dos manicômios como formas de tratamento, através das recentes tentativas de alterações na Política Nacional de Saúde Mental (PNSM).

Ataques

Recentemente, as propostas de mudanças no PNSM pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) atingem cerca de cem portarias sobre saúde mental, editadas entre 1991 a 2014. A revogação coloca em risco os principais programas e serviços de assistência psiquiátrica e reinserção social do país, como a Rede de Atenção Psicossocial, que atende pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Infográfico por Higor Vieira

Laymine Costa Mendes, advogada que atua há cinco anos na causa, ressalta que as políticas públicas existentes já não bastavam — são apenas 2500 unidades de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em todo o Brasil. Agora, com as revogações, o cenário se torna caótico, colocando a vida de pessoas com transtornos mentais em risco. A advogada afirma que esse retrocesso pode institucionalizar a violência psiquiátrica.

No Sistema Único de Saúde (SUS), os profissionais trabalham em rede, para enxergar o usuário em sua totalidade, para não tratar apenas sintomas — preocupação muitas vezes ausente na medicina privada, como Silvana já experimentou. Para ela ficou claro que “tem profissional que te trata como um número e acabou. Eles te tratam como se você fosse uma doença.” Mesmo com falhas e sendo alvo de sucateamento, 75% da população brasileira tem o SUS como única forma de tratamento possível, considerando os altos custos de um tratamento particular. Dentre estes brasileiros, os principais usuários são negros — oito em cada dez pessoas que se autodeclaram como pretas e pardas no país dependem da rede pública

Cerca de 69% dos atendimentos e diagnósticos de depressão no país são realizados nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). São nos conhecidos “postinhos de saúde” que estas pessoas encontram o primeiro acolhimento de suas demandas e têm os seus tratamentos pensados por uma equipe multiprofissional, com médicos, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras, entre outros.

Desgoverno, por Giuliano Benedet.

O Coletivo Canto dos Malditos é composto por pessoas neuroatípicas que lutam pelos direitos daqueles que sofrem com problemas mentais. Auto-organizado, o Coletivo alerta que essas revogações podem ser usadas como justificativa para o encarceramento em massa de moradores de rua e para a marginalização e criminalização da divergência psíquica. As ações do governo tendem a favorecer bases cristãs extremistas que lucram com clínicas terapêuticas.

Somente no primeiro ano do atual governo federal, entidades cristãs receberam quase 70% da verba federal para comunidades terapêuticas. Muitas delas denunciadas por violações dos direitos humanos. Uma das clínicas é o Centro de Recuperação Álcool e Drogas Desafio Jovem Maanaim, da ONG evangélica Desafio Jovem. O local recebeu um milhão de reais do Ministério da Cidadania para financiar 75 vagas de tratamento gratuito em três unidades.

Os internos acusam que foram punidos com tarefas domésticas. Há relatos de falta de psicólogos e psiquiatras, além de casos de LGBTfobia. As denúncias estão em relatórios de inspeção publicado em 2018 e em nova diligência em 2020, pelo Ministério Publico Federal, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura e o Conselho Federal de Psicologia.

*os nomes foram trocados para proteger a identidade dos indivíduos

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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