Nativos digitais impulsionam procura por discos de vinis, CDs e fotografia analógica
Moda “vintage” ajuda a desacelerar hábitos e eleva o faturamento de vinis em 136% no país. Vendas de câmeras analógicas no mundo podem chegar a US$ 3 bilhões até 2030
Quem possui um aparelho celular hoje leva no bolso uma câmera fotográfica, um telefone, um reprodutor de música e muito mais em uma só máquina. Mesmo diante do avanço e das facilidades das novas tecnologias, os jovens que nasceram na era digital hoje se voltam para os dispositivos analógicos. Câmeras de filme e discos de vinil, por exemplo, viraram tendência entre a chamada Geração Z, impulsionando a estética “vintage”, cada vez mais popularizada pelas redes sociais e pelo sentimento de nostalgia.
Um relatório divulgado em março pela Pró-Música, entidade que reúne as maiores gravadoras brasileiras, revelou que as receitas com vendas de discos de vinil cresceram 136% no país em 2023. O vinil ultrapassou as vendas de CDs e DVDs musicais no Brasil pela primeira vez, com um faturamento de R$11 milhões.
Fãs de Amy Winehouse, Tim Maia, Dua Lipa, Rolling Stones e Milton Nascimento, para citar alguns artistas e bandas que até recentemente tinham o hábito de ouvir música via streaming — recurso que ainda detém 87% do faturamento da indústria fonográfica contra 0,6% das mídias físicas -, hoje, por outro lado, têm um ponto de encontro no Centro Leste de Florianópolis: uma sala na rua João Pinto, tradicional reduto de sebos e antiquários. Ali, desde 2007, fica o Sebo Elemental, um oásis para colecionadores de CDs e discos de vinil, ultimamente pólo de atração sobretudo para o público jovem.
Adriano Crippa tem 49 anos e trabalha no sebo há 14. Ele percebe que, além do vinil, uma verdadeira febre dos últimos anos, os jovens têm procurado com frequência também os CDs, cujo preço é mais acessível. “Eu acho que pelo fato deles não terem vivido essa coisa de você ter a mídia física, algo que os pais deles tiveram. Eles cresceram onde as pessoas já não colecionam tanto e aí pegaram um gosto pelos produtos”, avalia.
“O lance é a busca”, define o vendedor, enquanto dois adolescentes, no fundo da loja, debatem qual o melhor álbum do cantor, compositor e multi-instrumentista americano Frank Zappa. “É você sair catando, procurando nas feiras de vinil, é muito legal quando você acha algo assim. Às vezes não é nem você ter o produto, mas correr atrás e ir procurando”, completa.
Colecionador ávido, Adriano caça álbuns desde a década de 1990 e seu acervo pessoal já conta com mais de 3 mil vinis e 500 CDs. Ele revela que a tecnologia antiga tem mais qualidade do que o CD e alguns aplicativos de streaming. “O som do vinil, se você tiver um aparelho bom, é muito melhor. Você consegue diferenciar os instrumentos uns dos outros quando estão tocando, coisa que no CD é todo digitalizado e o som fica meio compacto”, descreve.
O professor de inglês Thiago de Páscoa Oliveira, 28 anos, corre os dedos pela gaveta de discos do Sebo Elemental até parar na cantora Marina Sena. Ele coleciona CDs desde os 13 anos, quando seu pai o presenteou com o álbum 21st Century Breakdown, do Green Day. Começou a comprar vinil nos últimos anos porque seus artistas favoritos viram no produto uma oportunidade comercial. “No momento, meu foco está justamente nos artistas brasileiros que só lançam música em vinil. É um hobby bem caro, então eu estou sendo seletivo sobre o que consumir”, explica.
O professor Thiago nota que, além da nostalgia, há uma questão estética na moda dos discos de vinil entre os jovens. “Eu tenho uma amiga que começou a colecionar vinis e não tinha nem mesmo um toca-discos. Ela gostava de ter como se fosse um quadro na parede”, conta, rindo.
O vendedor do Sebo Elemental, especialista no assunto, lembra que as capas dos álbuns costumavam ser feitas para o encarte dos discos. “O vinil tem um atrativo mais legal por causa da capa. Esteticamente, as capas são grandes e as antigas eram bem bonitas, porque eram pensadas para isso”, assegura Adriano.
Além das mídias físicas de música, o Sebo Elemental vende livros de segunda mão e DVDs de filmes, cujo acervo vai da franquia X-Men a filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar. O estabelecimento passou também a vender antigos aparelhos fotográficos consignados este ano. Assim como os discos de vinil, as câmeras analógicas são mais uma tendência crescente entre a Geração Z.
Fotografia analógica
Um exemplo do crescente interesse pela fotografia analógica é o que aconteceu recentemente no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que atualmente vinha se focando mais na fotografia digital. A alta demanda pela disciplina optativa de Estudos Avançados em Fotojornalismo II fez o professor Fernando Crocomo abrir mais vagas na turma do curso. Antes limitada a 15 alunos, a disciplina de fotografia analógica conta hoje com 25 estudantes e vai se repetir no próximo semestre letivo.
“No começo do ano passado eu não imaginava que haveria tanta demanda. Depois que eu vi que o interesse se manteve, acredito que semestre que vem vai ser a mesma coisa”, antecipa Fernando, de 58 anos.
Esse interesse dos nativos digitais, que já brincavam com computador antes mesmo de serem alfabetizados, na opinião do professor, vem do “cansaço dos meios eletrônicos”. Para ele, o imediatismo dos aparelhos celulares suprimiu parte do encanto de fotografar.
“Você pega um celular ou uma câmera digital e tira 200, 300 fotos. Muitas vezes não olha nem as fotos que tirou, né? Talvez esse ato de achar que uma delas vai ficar boa nos tira a questão meticulosa de fazer um bom enquadramento, ou de já sair com o olho mais ou menos pensando no que vai fazer”, avalia o professor Fernando.
Com o avanço dos smartphones, qualquer dispositivo é capaz de tirar uma foto com qualidade. Isso faz parecer que todas as fotos são iguais, enquanto cada câmera analógica e cada filme têm sua característica que difere dos demais. A fotografia virou uma prática automatizada e os resultados do método digital são padronizados, levando as pessoas a almejar os defeitos que tornam singulares as fotos em filme.
“Eu acho que é uma fuga da perfeição”, analisa o professor. “A câmera digital nem sempre dá a melhor foto, mas ela dá um monte de recurso que diminui a margem de erro e a foto, de maneira geral, sempre sai perfeita. Talvez a fotografia analógica fique mais como arte, como opção de fazer alguma coisa diferente”, pondera.
“O filme não está morto”
A procura crescente pela fotografia tradicional já mostra seu impacto na indústria. O instituto de pesquisa Dataintelo publicou um levantamento em 2023, que aponta o aumento das vendas de câmeras analógicas, um segmento que pode alcançar US$3 bilhões até 2030 no mundo.
As redes sociais desempenham um papel fundamental no retorno da fotografia analógica. A hashtag #filmisnotdead (em inglês, “o filme não está morto”) já contabiliza 26,6 milhões de publicações no Instagram. A estética dos antigos álbuns de família entrou na moda e também conquistou os jovens, que passaram a buscar o traço da nostalgia.
A internet serviu também para formar uma rede de profissionais e amadores entusiastas do analógico. Quando o casal Juno Bengochea, 39 anos, e Julia Hafermann, 24 anos, criou a página Foto Com Filme, não imaginava a proporção que alcançaria. Com mais de 17 mil seguidores, a loja virtual passou de um hobby para uma fonte de renda.
“Eu não queria fazer uma loja, eu queria criar uma comunidade de fotografia analógica no Brasil”, explica Julia, que é estudante de Medicina em Florianópolis. A Foto Com Filme vende câmeras antigas, filmes e acessórios pelo perfil do Instagram desde 2021. O empresário Juno rebobina em torno de 300 filmes por mês e estima que, dentre os seguidores, 2,5 mil são clientes de todo o Brasil.
A paixão pela fotografia uniu o casal, que namora há quatro anos. Juno encontrou por acaso uma câmera analógica na casa dos pais e começou a procurar por filmes. Eles perceberam como era difícil achar tanto material quanto conteúdo na internet, então decidiram reunir dicas e informações sobre o assunto nas redes sociais.
“Com certeza absoluta, o Instagram foi uma ferramenta muito importante para a gente. Foi a base para criar uma comunidade, criar uma rede de clientes que agora são mais do que clientes, a gente fez amizades”, conta Julia, responsável pela criação de conteúdo e pelo marketing da Foto Com Filme.
Ela observa que a maioria da clientela é de jovens entre 18 e 28 anos. “É o pessoal que gosta da estética analógica. Claro, a experiência é muito legal também, mas eu vejo que o pessoal busca mais ainda essa estética”, avalia. Basta pensar que o granulado das fotos, a tonalidade das cores e os vazamentos de luz característicos das câmeras antigas se tornaram filtros no Instagram e no TikTok.
A estudante de Jornalismo Luiza Feppe, de 20 anos, é uma das clientes da Foto Com Filme. Ela teve contato com a fotografia analógica durante a infância e resolveu comprar sua própria câmera em 2019. A jovem, que é estagiária do Laboratório de Fotojornalismo do curso da UFSC, encontrou sua fiel Kodak Autocolor em um antiquário no Centro de Florianópolis, por apenas 20 reais.
Ela acredita que a moda serviu para popularizar a prática. “Eu acho que está se tornando algo mais democrático, de certa forma. Eu vejo hoje em dia as lojas vendendo até a um preço um pouco mais barato, vejo pessoas vendendo filmes rebobinados. Eu acho que está virando algo um pouco mais acessível e mais pessoas estão utilizando”, avalia.
Julia Hafermann faz uma comparação entre o digital e o analógico. “A diferença é quase como escutar uma música no teu fone de ouvido e escutar ela ao vivo. As duas experiências são legais, só que uma delas é tão mais vívida, tão mais real”, compara.
Ela e o namorado Juno aproveitam para comprar películas quando viajam aos Estados Unidos ou à Argentina e adquirem filmes vencidos de brasileiros que querem se desfazer dos estoques. As possíveis imperfeições dos rolos fora da validade não são um problema para os clientes, que apreciam o aspecto único das fotos.
“Não é como se você tirasse uma foto com o celular, ficou tremida e você apaga. Era a chance que tinha e não ficou perfeita, mas ficou perfeita para o momento”, defende Julia, com brilho nos olhos. “É tão bom relembrar, às vezes faz um tempo que tirou a foto e raramente é o que a gente espera. No geral é surpreendente o resultado, então até dando errado o pessoal gosta”.
Diante da demanda crescente por produtos “vintage”, a empresa Kodak voltou ao mercado brasileiro com câmeras instantâneas. A venda da linha Kodak Mini Shot Retro no Brasil foi anunciada em fevereiro de 2024. O modelo veio para competir com a câmera Instax da Fujifilm, que faz sucesso entre os jovens há anos.
Uma gigante da fotografia, a Kodak não resistiu à supremacia das câmeras digitais e declarou sua falência em 2012. Após a reestruturação da empresa, porém, o CEO Jim Continenza anunciou em 2020 que a demanda pelos filmes dobrou entre 2015 e 2019. As películas da Kodak ainda foram usadas para gravar o longa-metragem “Oppenheimer”, do diretor Christopher Nolan, que levou o Oscar de Melhor Filme em 2024.
“O ser humano tem uma tendência a circular e reciclar. Não só na fotografia, a gente observa isso na moda, no cinema, às vezes até em hábitos culturais. Então, eu acho que esse interesse é um resgate, principalmente porque agora finalmente a primeira geração que não teve contato com a fotografia analógica está ficando adulta”, analisa Julia Hafermann.
Apesar de ser movida sobretudo pelas redes sociais, ela acredita que a atenção dos jovens não é só mais um fenômeno instantâneo. “É algo que persiste há mais tempo do que a maioria das tendências que eu observo”, considera. “Pode ser algo passageiro para quem é interessado na estética, quem só queria ter fotos analógicas para postar no Instagram. Por outro lado, pode ser algo bem duradouro para quem realmente consegue ver a beleza e apreciar o que esse processo representa”.
Válvula de escape
O professor Fernando Crocomo nota que o processo da revelação analógica é o que mais cativa os estudantes. “A fotografia tem essa questão de ser mágica, principalmente na hora em que você vê a foto aparecendo no papel”, descreve. Ele também entende que as pessoas se voltaram aos métodos tradicionais para se distanciar de novas tecnologias como a inteligência artificial.
“Hoje a gente vê câmeras que já têm software embarcado ali, que têm inteligência artificial para corrigir. O próprio celular tem um software que trabalha, tem uma série de filtros se você quiser usar também”, comenta o docente. As manipulações na internet estão cada vez mais semelhantes às imagens reais, e a onipresença do digital, ele acredita, é o que levou os jovens a buscar vivências menos sintéticas.
Os usuários também passaram a se dar conta de que suas memórias não estão seguras na nuvem, como imaginavam. Em agosto de 2023, um bug na plataforma X, antigo Twitter, apagou todas as fotos publicadas até 2014. Os internautas lamentaram o sumiço de imagens antigas da rede social e a falha foi corrigida. Contudo, bastaria uma crise do excêntrico bilionário Elon Musk, proprietário da marca, para deletar o histórico do site.
Para Julia, da Foto Com Filme, as câmeras analógicas “oferecem uma experiência que o celular jamais ofereceria”. A vendedora vê a fotografia em filme como uma fuga do meio digital e de aspectos pouco prazerosos da rotina. “O celular tem tudo que eu adoro fazer, mas também tem o meu e-mail, clientes chamando, meus professores, meus pacientes. Tem um milhão de coisas que são um pouco ansiogênicas”, aponta.
O mesmo serve para a música. Thiago de Páscoa Oliveira ainda usa os serviços de streaming no celular para ouvir música no dia a dia, entretanto, aos fins de semana, faz questão de escutar álbuns inteiros no toca-discos em casa. O momento de relaxar e ouvir as discografias é quase um ritual.
“É um costume meu, quando estou em casa. Eu pego um dos meus CDs da minha coleção, coloco no meu tocador e aí vou escutar. Particularmente, não consumo singles soltos, sabe aquela coisa de montar uma setlist com singles avulsos? Eu gosto de consumir o álbum. Isso para mim faz toda a diferença, tenho esse apego de escutar o álbum inteiro”, narra.
A fotografia em filme também compõe um certo ritual. Em vez de tirar milhares de fotos que serão esquecidas no celular, as câmeras antigas exigem que o fotógrafo esteja presente naquele momento para capturar a melhor imagem. A limitação das poses se torna um estímulo para refletir antes de disparar o obturador, buscar um bom enquadramento e aguardar o instante ideal.
“Quando você está tirando a foto analógica, você busca de alguma forma dar um significado para aquela foto. Diferente de como você faz para o digital, que você só quer realmente marcar aquele momento e acaba não pensando muito nos componentes”, opina a estudante Luiza Feppe.
Em meio ao cotidiano frenético da era digital, o processo analógico ensina a tolerar frustrações, se reconectar com o que está ao redor e entender como cada um enxerga o mundo de maneiras diferentes. Julia Hafermann entende que a prática é uma “busca inconsciente para desacelerar”.
A paciência de escolher o ângulo da foto, de aproveitar todas as poses do filme e de aguardar o resultado da revelação tem tudo a ver com um estilo de vida mais lento. “Eu vejo como é importante para mim ter uma válvula de escape onde eu desacelero. Onde eu me afasto das redes sociais, onde eu me conecto com algo mais real. E eu acho que isso é uma busca inconsciente coletiva de jovens atualmente”, avalia Julia.
A escalada das tecnologias analógicas entre a Geração Z, de toda forma, não representa um risco à soberania das mídias digitais. O resgate surge como um convite a transformar o modo automatizado com que se olha e escuta o mundo. Para quem está começando no universo da fotografia, Julia aconselha se abrir às imperfeições. “A dica é não ir com a expectativa de fazer fotos incríveis, mas de fazer fotos reais e de ter uma experiência real”.