“O jornalista não pode usar a objetividade para não se responsabilizar”, ressalta Fabiana Moraes em palestra na UFSC
A premiada jornalista, que também é professora acadêmica, destacou que a subjetividade deve ser considerada para a prática de um jornalismo socialmente comprometido. Em entrevista ao Zero, ela ressalta a importância de os profissionais fazerem mediações qualificadas das informações
Por: João Wesley
A jornalista, socióloga e professora Fabiana Moraes, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), esteve no último dia 22 de novembro na 12ª Jornada Discente e na comemoração dos 15 anos do Programa de Pós-graduação em Jornalismo (PPGJor) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na ocasião, instigou a plateia com ideias que questionam o cânone jornalístico da objetividade e aproveitou para lançar seu mais novo livro: A pauta é uma arma de combate.
Fabiana foi, por mais de 20 anos, repórter do Jornal do Commercio, da cidade do Recife (PE). Suas reportagens para o jornal lhe renderam três prêmios Esso de Jornalismo, um dos mais importantes da área: “A vida mambembe” (2007), “Os sertões” (2009) e “O nascimento de Joicy” (2011). Além disso, foi finalista duas vezes do Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Atualmente, ela assina uma coluna do jornal online independente The Intercept Brasil.
Os trabalhos de Fabiana Moraes no ambiente acadêmico abordam crítica à objetividade jornalística, subjetividade, alteridade, racismo e colonialidade no Jornalismo e a forma como a Arte pode se relacionar com o campo. Na abertura da palestra na UFSC, a autora apresentou um fragmento do texto “A atriz, o padre e a psicanalista — os amoladores de faca”, do psicólogo Luís Antônio dos Santos Baptista, cuja principal ideia é apresentar o genocídio social causado pelos ditos “amoladores de faca”. “Acho esse texto muito sintético sobre como nós, a imprensa, nós que produzimos representações, podemos ser agentes que amolam essas facas”, disse Fabiana.
A Pauta é uma arma de combate foi publicado em setembro de 2022, pela editora Arquipélago, mas foi escrito em 2021. Na época da feitura do livro, o Brasil estava no pior momento da pandemia da Covid-19, quando mais de quatro mil pessoas morriam diariamente. “Eu escrevi o livro com muita raiva, porque eu sabia que aquilo que estava acontecendo, não eram só as mortes, era o discurso de negação dessas mortes”, disse a autora.
Na entrevista a seguir, Fabiana destaca discussões que vêm norteando e ajudando a construir seu pensamento crítico, como descentralização dos saberes, representatividade racial e possibilidades criativas do jornalismo, entre outros temas.
Você falou bastante sobre “amoladores de faca” e isso me chamou muita atenção. Eu queria saber como é que a gente faz pra não ser um “amolador de faca” nesse contexto do mercado jornalístico?
Acho que, primeiro, se responsabilizando por aquilo que produz e entendendo que aquilo que produz tem um impacto na vida e na morte das pessoas. Dependendo da maneira como você nomeia, visibiliza, a maneira como você apresenta discursivamente as pessoas, os grupos, você pode atuar ou não como um amolador. Então eu acho que é realizando um exercício reflexivo não só da própria produção, mas da produção do campo. E observando os erros e os acertos. Eu acho que temos muita gente boa que não amola facas. Acho que é possível fazer esse exercício. Possível não, é necessário.
Você também é professora acadêmica. Durante a graduação a gente aprende um pouco desse tratamento mais humano. Inclusive, no novo currículo da graduação em Jornalismo da UFSC há uma disciplina obrigatória chamada “Jornalismo, Identidade, Diversidade e Gênero” já na primeira fase. Mas a pergunta seria: do seu ponto de vista, que tipo de reforma as faculdades de Jornalismo podem fazer para desmistificar esses conceitos de objetividade e imparcialidade?
A primeira questão é entender de que objetividade a gente fala. Existe uma objetividade que é necessária ao jornalismo. A gente não pode abrir mão dela, porque senão não é jornalismo. Quando estou falando que você está com um caderno na mão e que ele tem figuras na frente, que você escreveu aqui, eu não posso dizer que seu caderno era rosa. Eu tenho que fazer uma descrição densa — esse tema é da antropologia, mas enfim. Você está me entrevistando, você está coletando dados… Tem a prática objetiva que é pertinente ao jornalismo. Agora, entender que dentro desse conceito de objetividade as ideias de neutralidade, de imparcialidade, como formas de não atuar como agente político, de não nomear as coisas, de não ser um filtro daquilo que você está trazendo. Por exemplo: a partir do momento em que você traz pra mim um discurso racista e eu só propagar esse discurso dizendo “não, eu estou sendo só objetiva porque a pessoa me disse isso”, simplesmente verbalizar, vocalizar isso pra muita gente, massivamente, é uma falsa objetividade. Isso, na verdade, é se utilizar da ideia de objetividade para não se responsabilizar. Como se isso fosse objetividade. Isso não é objetividade. Isso é justamente amolar a faca. Então eu acho que você faz um mau jornalismo aí, quando você simplesmente abre mão de ser um agente de mediação da informação. Um jornalista media, e na mediação existem escolhas. Não posso abrir mão e dizer “eu não posso fazer escolhas porque eu sou objetivo”. E a gente fez muito isso, e faz muito isso nessa performance de ser objetivo, de ser neutro. A minha crítica é a isso — a objetividade é necessária ao jornalismo –, mas é a essa objetividade que, na verdade, significa ausência de mediação qualificada. Isso que eu quero falar.
E na faculdade, neste contexto acadêmico, você vê alguma mudança?
Acho que sim. Você é um exemplo, né? Das pessoas que estão hoje na universidade, de alunos, de alunas, de docentes que já compreendem essas mitologias, já levam isso. Agora, às vezes o que eu percebo é que tem um entendimento de que [determinada] subjetividade é bom, [determinada] subjetividade é ruim. Não é isso. Tem uma coisa que a gente tem que lutar contra é o binarismo, sabe? (Risos). Não é assim, a subjetividade é onde reside o racismo, na subjetividade coletiva. O que é a misoginia? O que é o racismo? É algo que está no campo subjetivo da gente. E que se expressa objetivamente nas escolhas, nas exclusões, no campo do subjetivo. Objetividade e subjetividade não são boas e ruins de saída. Então o que você faz com elas? Como você está observando como essas questões estão aparecendo nas tuas representações? Eu acho que tem um movimento nas universidades, provocado por questões de cotas e do que eu falei [na palestra], de revisão curricular, de observação. Não é como se a universidade fosse “ai, meu Deus, a universidade é um lugar horrível, é um inferno”. A universidade é um produto do tempo também. A universidade nasce, como quase todos os lugares, como um lugar de colonização do conhecimento. Se você pensar nas universidades peruanas, colombianas, elas chegam pra dizer assim: “esse pensamento aqui é que vai ser um pensamento, uma forma de colonização. Agora, a gente não pode esquecer que depois, ao longo do tempo, são as pessoas desses lugares que vão entrar nas universidades também. E são elas que vão dizendo: “isso aqui é colonial”. Porque às vezes tem um certo discurso do próprio campo progressista, da própria esquerda no meio antiacadêmico, que me preocupa. “Ah, porque você é acadêmico”, “ah, porque esse pensamento…”. A universidade brasileira está mudando com essas pessoas que estão entrando agora, com gente preta, com gente pobre, com indígena. Eu vou dizer que a universidade é um lugar de “acadêmico”? E uma mulher negra acadêmica, qual é o problema?
Eu segui um pouco este pensamento, porque cresci na periferia do Natal, sempre tive acesso a escolas públicas e sou beneficiário das cotas. A diáspora de vir do Nordeste pra cá, até hoje me sinto deslocado culturalmente. Às vezes não me encaixo aqui. Na universidade é bom, tem pessoas com uma linha de pensamento parecida com a minha e que tiveram uma criação e um contexto social parecido com o meu, mas eu sinto que por parte dos docentes não teve essa transformação ainda. A gente tem poucos professores negros no curso.
Lá [na UFPE] também. Eu sou a única. A gente está vivendo a história. A gente está vivendo a transformação. Não acho que vai mudar da noite pro dia. Mas acho que a gente pode produzir a transformação e produzir incômodo também nessas pessoas. Tem que produzir o incômodo, mas eu não acho que seja através do silenciamento. Não mesmo. Tem uma coisa que a Carla Akotirene [pesquisadora e autora sobre feminismo negro no Brasil] escreve que eu gosto muito. Ela tem um livro que é gratuito para baixar. Não tenho ele físico, baixei no site da própria editora, que se chama Interseccionalidade. É um livro que eu falo muito n’A pauta [é uma arma de combate, o livro], em que ela fala assim: a gente não pode usar, por exemplo, a ideia de lugar de fala como se fosse uma ideia de silenciamento do outro, porque quem faz isso é a epistemologia branca, e a gente não vai fazer a mesma coisa. O pensamento negro, o pensamento africano, é tentacular, colaborativo. Ele é muito sofisticado. Ele não faz “isso” ou “aquilo”; “preto” e “branco”. Ele é sofisticado demais pra isso. Essas binariedades são próprias da racionalidade moderna, iluminista, do universal e particular. Isso não é próprio da gente, então não vamos cair nessa. Eu acho muito sofisticado. A gente está numa sociedade que produz vários outros graus de diferença e hierarquizações. Vários. As questões [de direitos] trabalhistas que se colocam hoje, o trabalho plataformizado, as imigrações. A gente tem novas hierarquizações hoje, novas e várias. Ela chama atenção pra isso, e pra mim isso é importante. Então, somos todos aliados? Eu não sou boba. Não somos todos aliados, sabe? Mas eu pessoalmente entendo que não é através do silenciamento que a gente prospera intelectualmente, humanamente. Eu escuto, estou aberta, mas eu sei onde meu terreiro está. O Ijuim [Professor Jorge Ijuim, da UFSC] falou, eu faço críticas ao trabalho dele, ao trabalho de Medina [Profa. Cremilda Medina, da USP], mas eu entendo que são trabalhos de pessoas que estão olhando que o jornalismo é lugar de desumanização. Quero entender… Eles estavam procurando isso. Quando eu leio, eu concordo com um bocado de coisa e digo: “mas falta aqui uma perspectiva racial”. Eu acho que é isso. Não estava no horizonte deles, já não eram questões que estavam sendo discutidas na universidade, socialmente. Eu sou produto desse outro tempo, né? Então, entenda o que estou querendo dizer, eu acho que a gente precisa entender que a universidade está passando por isso, por essa efervescência. Queria eu ser estudante nesse momento.
Tem uma coisa que eu vejo dos estudantes: um dilema de ter que ir pro mercado e se frustrar com o que o mercado está fazendo. O mercado do jornalismo. Qual é a saída para a gente não ser engolido?
É impossível não se frustrar. É impossível. Quantas vezes eu me frustrei! Impossível não se frustrar. Também tem uma coisa geracional que eu vejo pelas pessoas que são minhas alunas, meus alunos, meu filho, de certa maneira, talvez seja um pouco mais velho que tu… Mas existe muito medo de ser frustrado, de quebrar a cara, de errar. É bem geracional em vocês, percebo muito isso. Vocês veem muita perfeição nas telas, e aí vocês acham que [assim é] o mundo… Não é assim! (Risos). Esqueci o nome dela agora, ela foi falar ali comigo e disse “meu sonho é ser jornalista que nem você e ter uma coluna”. Aí eu falei pra ela: “sabe quanto tempo eu demorei pra ter uma coluna?” Que nem acho que seja um lugar… É porque eu gosto de fazer reportagem, mas eu não consigo fazer agora porque eu estou com dez mil trabalhos na universidade. “Mas meu sonho é ser colunista, não sei o quê, não sei o que…”. Foram vinte e cinco anos. Vinte e cinco anos entre cortar novela da TV, trabalhar com plantão, cobrindo assassinato, sabe? A gente não pode idealizar essas questões. Agora eu acho que tem um mercado muito diferente do que eu enfrentei. Quando eu saí do jornal estava em uma transformação forte. Eu saí no dia depois de demitirem onze pessoas, estavam passando por muita coisa. Mas eu também acho que tem hoje muito mais possibilidades, em termos de podcast, financiamento de bolsas para jornalistas, grupos como Amazônia Real, Catarinas… Tem muito mais coletivos de jornalismo do que tinha quando eu estava escrevendo. Tinha mais a coisa dos grandes veículos e pronto. Então tem uma descentralização do jornalismo que eu não vivi e ela acontece hoje. Não estou dizendo que é fácil, mas existe uma heterogeneidade de formas de jornalismo, muito mais do que tinha quando eu estava trabalhando, e existem outros campos que talvez na universidade não se fale muito. Trabalhar como pesquisador, escrita de roteiros, por exemplo. Eu já fiz uma pesquisa para roteiro e fui contratada como jornalista, para um filme de Marcelo Gomes [cineasta do Recife]. E eu adorei fazer esse trabalho. Roteirizar os podcasts, fazer pesquisa para os podcasts, fazer reportagem para podcasts. Eu fiz dois agora para O Joio e o Trigo também, adorei. São coisas que eu não imaginava lá atrás, há quinze anos. Agora a frustração vem. Você vai chegar com a pauta ótima, a pessoa vai dizer “não vai fazer”. A frustração traz um certo cimento também pra você. Você vai aprendendo a lidar com as coisas. Impossível não conviver com a frustração. Seja no amor, na academia, na redação, os pés na bunda são vários (risos).
Na sua obra você usa muitas referências à contemporaneidade, tipo John Lennon, a sensibilidade hacker. Eu queria que você falasse sobre a importância de ler, ouvir, assistir coisas do nosso tempo.
Eu acho que ler, escutar e ouvir coisas de qualquer tempo… Do nosso tempo, mas coisas do século XV [também]. Conhecimento não envelhece. Às vezes acho que a gente abre muito a mão das referências. E referências várias, não tem que ser referências que estão dadas no campo do jornalismo. Eu gosto tanto do campo da arte, é um lugar que me instiga muito a pensar como jornalista. Tem coisas que eles estão conseguindo dizer melhor do que a gente. Como é que eles estão fazendo? A gente publicou o artigo “Arte-jornalismo: representação, subjetividade, contaminação” [na revista Lumina, de Juiz de Fora]. E está no livro! Eu peguei vários artigos e trouxe para esse livro, porque eles estavam todos soltos, aí eu organizei, mudei uma coisas, mas organizei neste livro [A pauta é uma arma de combate] também. Esse é um dos campos que me instiga. A música, pra mim, que é uma coisa que eu também falo muito, foi a minha literatura. Não tinha acesso. Eu tinha uma coisa: “isso, [a literatura] é uma coisa muito branca”. Também faço essa crítica no livro de entender o jornalismo literário. O jornalismo literário é Gay Talese, é não sei o quê. Eu olhava as pessoas, “e aí quem são tuas referências? Gay Talese, [Truman] Capote?”. Eu: “Não! Titãs, que eu ouvia pirralha, Madonna, RuPaul” (risos). Tem coisas ali [em RuPaul’s Drag Race] que eu acho muito interessante em relação à alteridade, aos erros também. Tem muita discussão sobre raça interessante perpassando RuPaul. A questão das belezas, as questões de afilamento, da maquiagem que emagrece. Latrice Royale [participante do RuPaul’s Drag Race], que eu acho incrível. Latrice pra mim é esse fenômeno de botar o pé na porta, e com beleza. Eu acho beleza a resposta incrível. Eu olho essas coisas e trago pra produção também. E não tenho problema com isso. “Isso aqui é melhor, isso aqui é pior, isso aqui é sério, isso aqui…” Isso aqui é informação pra mim, me ajuda a pensar. Pode não ajudar outro, mas me ajuda.
Essa questão do jornalismo como arte, você falou que é um dos cinco requisitos para um jornalismo subjetivo e desumanizado. Como é que a gente consegue pensar o jornalismo e a arte no jornalismo diário? Parece que não tem muito espaço para essas produções.
Acho que depende do gênero que você está praticando. Na notícia diária de fato não tem espaço, porque você vai precisar se reportar de uma maneira muitas vezes dinâmica, rápida. Aquele gênero específico, a Hard News, é pra eu reportar… Claro, não vou deixar de ser assim. “Aqui eu posso ser racista, aqui eu não posso ser racista.” Aquilo que eu falei, reflexividade está em qualquer produção. Agora, pra você exercitar um pouco mais a questão dessas possibilidades criativas no jornalismo, o lugar é reportagem muitas vezes; ou lugar é o podcast, em que você pode utilizar a sonoridade, outras falas, referências. Aí você precisa realmente de um pouco mais de tempo e espaço para essa produção. Pra pensar conceitualmente, como é que vai ser. Se tu depois puder olhar, vê [a coletânea de histórias] A Vida é Nelson. Porque aí eu tive ali um tempo de dizer “como é que eu vou dar conta desse B.O. de escrever sobre esse homem? O que que eu faço?”, e aí fui pesquisar sobre ele. Tem uma matéria que eu esqueci de falar aqui nesse caderno, que Ruy Castro escreveu um livro sobre Nelson Rodrigues [Anjo pornográfico, da Cia. das Letras], e eu dizia “não tenho mais nada pra escrever sobre esse homem!”. Tentei falar com a família, mas não consegui. Aí quando eu estava na pesquisa, descobri que ele morreu e não terminou a peça chamada “O AntiNelson Rodrigues”. Ele morreu sem terminar. Aí eu disse, vou terminar essa peça. Claro, no jornal às vezes eu fazia umas coisas que, como eu tinha ganhado um prêmio, o jornal estava assim: um reconhecimento externo que lhe ajuda. Então eu disse, eu vou usar isso a meu favor. Aí eu escrevi uma peça. Pesquisei a vida dele toda, apurei, chequei, mandei pra outras pessoas, pra pesquisador da vida dele. Estava tudo checado, os ritos jornalísticos estavam cumpridos. E aí eu peguei as informações e escrevi em forma de peça. Em vez de ser em forma de um texto, escrevi assim: “Nelson diz…”; “entra… no palco”. Escrevi uma peça, e aí pedi ajuda de Marcondes Filho, que é dramaturgo. Eu disse, “Marcondes, isso aqui faz sentido dramaturgicamente?”. Aí ele corrigiu umas coisas, deu uns toques, eu refiz e publiquei. Fiz uma peça de teatro, ao invés de fazer uma matéria. Percebe essas correlações do jornalismo com dramaturgia, por exemplo? Deu supercerto. Ficou “meio” doidice, total. Mas rolou. Claro, tive oportunidade naquele momento. Não sei se rolaria em outro jornal, mas uma das piores coisas para que essa possibilidade artística não aconteça é a autocensura. Se você defende e pesquisa aquilo e tem um outro precedente que você mostra que deu certo, apresenta. Eu acho que rola nesses editais, por exemplo, eu acho que são formas interessantes de apresentar projeto. Fazer essas correlações com a arte.
Agora as duas últimas perguntas são mais pro campo da política. Em uma entrevista ao Portal Catarinas você falou que a imprensa brasileira taca fogo no circo e depois vai cobrir o incêndio.
Até esqueço as coisas que eu falo (risos).
Como você relaciona os conceitos de objetividade e neutralidade da mídia tradicional com a ascensão da extrema direita aqui no Brasil?
Tem um pouquinho daquilo que eu estava falando da normalização do Bolsonaro, por exemplo, dessa higienização que eu sempre falo. Quando eu falei isso da primeira vez foi quando eu fiquei muito passada com aquela matéria que era sobre… Fiz até uma coluna sobre isso, “Bolsonaro diz que quem votou em Lula são os mais analfabetos, as cidades com maiores [taxas de] analfabetismo.” E aí quando eu fui pesquisar essa fala dele eu vi que ele estava repercutindo o que o UOL e CNN publicaram. O UOL publicou essa matéria no dia do resultado do primeiro turno, que as cidades que mais votaram em Lula, dez delas tinham altas taxas de analfabetismo. E aí depois vai fazer uma matéria dizendo que Bolsonaro falou num sei o quê…?! Eles incendiaram e sugeriram que Bolsonaro estava sendo xenófobo. É isso que eu falo, deram toda munição, ele repercutiu isso e colocou: “não foi eu que disse”, e botou os prints das matérias. Vê que papelão! Depois essa galera está falando sobre democracia. É isso que eu te falo: eu sei qual é o meu terreiro, eu “tô” ligada. Não vou dizer que a imprensa tem que acabar, mas tem que melhorar, acabar não. E acho que a gente tem que fazer esse tipo de cobrança. Acho que justamente esse tipo de performance de objetividade que é pegar um índice de analfabetismo, por exemplo, e dizer que quem votou em Lula é gente iletrada, é analfabeto. E aí tem uma questão que eu acho bem importante: qual a discussão do jornalismo, quando faz isso, a respeito das pessoas analfabetas? Elas são menos pessoas? O voto delas é menos? Por que trazer isso? Aí começa a fazer lista, tipo, Bolsonaro vence nas dez cidades com mais células nazistas. Faz essa lista!? Quando expõe o classicismo? Isso é classista pra caramba. Vamos discutir, então, essas listas. Vamos pensar, o valor do voto analfabeto é menor? É isso que vocês estão falando? Se a gente não se mobilizar socialmente para discutir essas questões que unem a imprensa, a gente vai ficar só amolando faca, vendo eles amolando a faca e dizendo ‘está OK’. Então é essa questão quando eu falo de tacar fogo no circo. Essa estratégia da imprensa que eu acho que a gente tem que ficar muito ligado.
A última pergunta é: que tipo de jornalismo a gente pode esperar agora que o Bolsonaro perdeu a eleição?
Eu acho que vai ter uma mudança sensível, mas não acho, pelo que eu estou vendo — posso estar errada, e adoraria estar errada –, mas, pelo que eu estou percebendo até agora, continua o [jornalismo] declaratório. É muito recente, mas esse declaratório que está embebido com a falsa objetividade, mas que é muito responsável. Muitas vezes aquelas aspas violentas, racistas, que você só reproduz aquilo, abrindo mão do papel de mediador, do papel de jornalista. O que eu acho é que a sociedade está mais acesa em relação a essas naturalizações do jornalismo. Aquele exemplo que eu falei da questão do mercado, eu achei muito interessante quando eu li a reação das pessoas dizendo “vocês não tem vergonha, não? O que vocês acham?”. Estou falando da fome no Brasil. Eu senti que tem uma mudança ali. Então talvez você tenha uma mudança mais efetiva por causa dessas discussões. E eu acho que muita gente dentro das redações sofreu muito, e isso vai produzir um caldo diferente. Eu não sei se dos donos, mas de alguns de alguns trabalhadores e trabalhadoras das redações. Principalmente as mulheres. Eu sinto uma certa diferença das mulheres já nas coisas que são, como nomeiam ele [Bolsonaro]. Seja de um portal especificamente voltado para as questões feministas, como Catarinas, até essas celebridades de jornalistas da Globo, Natusa Nery, que enquadram ele assim. Acho que tem umas diferenças, mas não sei se vão dar conta, não. Tomara que eu esteja errada.
Já dá pra ver também algumas mudanças, como falar sobre o valor da camisa de Janja (esposa de Lula), o jatinho de Lula…
Quando foi que esse pessoal cobriu as roupas de Michelle Bolsonaro para falar preço? É uma cobertura classista. Porque no fundo está dizendo assim, “ele não fala de pobre?”, ou “ele não era pobre?” É um classismo total. Por isso que eu falo que não dá pra dizer simplesmente que Lula é um cara branco, não. O Lula é um cara branco racializado. O Nordeste é um lugar racializado. As pessoas não olham pra uma pessoa do Nordeste. Isso é uma coisa que eu acho muito interessante, uma amiga minha me falou. Se você botar Haddad e Lula lado a lado, Haddad é meio moreno mesmo, tem a ver com a Líbia, ele tem uma pele parda. Embora não seja lido como pessoa negra. Mas se você botar ele ao lado de Lula, Lula é mais branco do que ele. Mas se você botar [uma pergunta] assim: quem é branco aqui? É quase automático. “Haddad é um cara da USP, Haddad é um cara de São Paulo, Haddad é um cara com formação universitária, com títulos”. Não tenho a menor dúvida. “Lula é o cachaceiro, nordestino, não terminou [os estudos]…” Então é preciso que você faça a leitura racializada das pessoas do Nordeste. A gente tem que olhar o Nordeste como um lugar muito específico nessa construção a respeito da pobreza, do classismo, do racismo no Brasil. Ele continua sendo um cara branco, mas né? A gente não pode deixar que esses elementos de classe e de geografia do Nordeste sejam tirados dele. Ele não sofre uma prisão e tudo isso à toa. Tem muito a ver com isso.