Opressões sobre minorias potencializam impactos na saúde mental

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7 min readDec 13, 2023

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Preconceito, desrespeito e discriminação podem causar estresse excessivo, adoecimento e suicídio

Fernanda Lanzarin e Yolanda Cardoso

Pertencer a certas minorias aumenta o risco de vida. O Anuário de Segurança Pública do Brasil de 2022 aponta que 76,5% das mortes violentas no país são de pessoas negras, e uma pesquisa do Grupo Gay da Bahia mostra que houve no mínimo 329 mortes violentas da população LGBTQIA+ em 2019. Porém, antes de chegar ao ponto extremo da morte, membros destas comunidades têm de enfrentar uma série de violências ao longo da vida, o que gera desgaste, estresse e prejudica sua saúde mental.

Esta é a história de Lais*, que convive com o machismo e o racismo desde sua infância, ao longo da década de 1990, poucos anos após a descriminação racial ser reconhecida como crime no Brasil. Como uma mulher negra, ela lembra das primeiras vezes que se viu coagida pelo preconceito: “Eu era uma criança seguida nas lojas”.

A perseguição dentro de estabelecimentos, que Lais passava desde a infância, mesmo sem entender, é vivenciada diariamente por pessoas negras. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva, encomendada pelo Carrefour, revelou que 69% das pessoas negras já foram seguidas por seguranças em lojas no Brasil.

As violências sofridas por Laís não se restringiam à sociedade, mas também ocorriam dentro da sua casa. Única filha menina, ela sentia na pele o machismo vindo do pai e dos irmãos. “Eu era a responsável por tudo estar arrumado em casa. Por mais que tivesse divisões de tarefas, se meus pais chegassem e a parte dos meus irmãos estivesse bagunçada, a culpa não era deles, era minha. Eu apanhei muito em casa a vida inteira”. Ela conta que o pai queria que ficasse “trancada em casa sendo empregada dele”.

Diante das opressões, ela tentava de alguma forma fugir e buscar sua liberdade. Com olhos cheios de lágrimas, conta: “Um dia eu fugi para a casa de uma amiga e ela falou assim: ‘vamos para o meu namorado que lá o seu pai não vai te achar’. Nisso, o irmão do namorado dela estava lá e me estuprou”. Resultante dessa violência, ela engravidou e deu à luz a Sofia*, hoje já adulta.

Os dados do 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que, em 2019, foram registrados 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável — uma média de um estupro a cada 8 minutos. As mulheres continuam sendo as principais vítimas do crime, com 85,7% dos registros.

Ao ingressar na faculdade, Lais enfrentou outras formas de descriminação. “Eu passei duas vezes na Universidade Federal de Santa Catarina [UFSC], a primeira eu tranquei e a segunda vez eu simplesmente abandonei o curso. Mas o fato de eu ter saído do colégio público e entrado direto na faculdade chocava as pessoas. ‘Como uma mulher preta, pobre e de colégio público, passou duas vezes na UFSC?’ Então a gente percebe a forma que as pessoas nos vêem. Isso bagunça totalmente com a cabeça”.

Pesquisa

Uma pesquisa realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), registrou que 51% dos brasileiros declararam já ter presenciado um ato de racismo, o que se confirma no Anuário de Segurança Pública do Brasil: 76,5% das mortes violentas no Brasil são de pessoas negras, chegando a 83% quando as mortes são fruto de intervenção policial.

Os números na comunidade LGBT não são menos preocupantes: dados do Grupo Gay da Bahia mostram que houve no mínimo 329 mortes violentas da população em 2019, sendo 174 homens gays e 32 mulheres lésbicas, e o dossiê mais recente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta que só em 2022, houve ao menos 131 assassinatos de pessoas trans.

O estresse de minorias

Histórias como esta fazem parte da vida de muitos brasileiros, com reflexos na saúde mental. Entre a população jovem, negros têm 45% mais chances de cometerem suicídio, segundo uma pesquisa do Ministério da Saúde em 2018. Os números em outras comunidades não são menos preocupantes: o Diagnóstico LGBT na Pandemia, feito em 2020, aponta que quase 43% da comunidade relatou uma saúde mental pior após a pandemia da Covid-19. Uma segunda edição da pesquisa, feita em 2021, mostra que 55% alegam ter piorado ainda mais em relação ao ano anterior.

“Esse sofrimento está sendo causado por toda uma estrutura. Isso se chama estresse de minorias. São os estresses adicionais que as pessoas sofrem em função do lugar que elas ocupam na sociedade”, explica o doutor em psicologia, Juliano Beck Scott.

Essas experiências, muitas vezes estruturais, são internalizadas pelas vítimas e impactam nas suas visões sobre o mundo e sobre sua identidade. Laís conta que já deixou de acreditar em si mesma. “Sempre vi pessoas comentando que eu sou louca. Teve uma época da minha vida onde eu achei que estava doida mesmo. Eu já acreditei que era maluca”, lamenta.

Esse sentimento de inadequação, mencionado por Lais, de ser vista como “maluca”, faz parte da construção de estereótipos sociais, que vulnerabilizam e colocam as pessoas em um lugar de exclusão, segundo Juliano. O entendimento desses padrões pode ajudar clinicamente no tratamento psicológico. “Então é buscar fazer com que a pessoa entenda que existe esse padrão normativo que nos é imposto. Ou seja, tenho que me encaixar nesse padrão e se não estou nele, eu acabo sendo vulnerabilizado”, explica, “essa estrutura traz muito sofrimento psicológico.”

Essas vivências impactam em toda trajetória da vida de Laís. “Com 16 anos de idade, eu pensava em me matar todo dia e me cortava”. Mesmo após adulta ela ainda lida com esses sentimentos. “Mas minha filha é um doce, eu me mato, o que ia causar na cabeça dela?”

“Auxiliar a pessoa a entender o quanto essa estrutura social interfere na sua subjetividade negativamente, é tentar desconstruir um pouco desses padrões que são impostos. E o grande debate é esse: vamos discutir saúde mental só em setembro? Não dá né?”, comenta Juliano.

Pós setembro amarelo, o que permanece?

“Falar de suicídio e de saúde mental é de problema amplo, multideterminado e multifacetado”, explica a psicóloga e doutoranda em Psicologia Social na UFSC, Thais Rodrigues Dos Santos.

A pesquisa do seu doutorado é sobre racialidade em famílias inter-raciais. Ela explica que um passo muito importante para esse debate é construir uma psicologia clínica como espaço preparado para a escuta dessas violências. “Precisamos justamente de corpos que sejam críticos, e de uma escuta sensível a outras realidades”.

O que ocorre quando uma vítima dessas estruturas se depara com um profissional sem escuta sensível para o tema, é a revitimização. Esse foi o caso da Lais. “A única vez que eu procurei ajuda, não cheguei a ir muito longe.” Ao buscar auxílio psicológico, ela teve suas experiências invalidadas pelo profissional, “eu fiquei de cara com a falta de preparo do psicólogo”. Depois dessa situação desrespeitosa, ela nunca mais buscou ajuda. “Eu não queria mais voltar. Não tive mais nenhum interesse”.

O Serviço de Acolhimento a Vítimas de Violências (SEAVis) da UFSC avalia que essa escuta preparada não vem necessariamente de pessoas dos mesmos grupos minoritários, como no caso da raça. “Temos acompanhado e sido sensíveis em relação a essa demanda, de que sujeitos pretos se sentiriam seguros, mais à vontade e mais escutados com psicólogos pretos, e entendemos que o profissional com outra cor pode atualizar o racismo sofrido. Contudo, testemunhamos na nossa prática, que o fato do profissional da psicologia não ser preto não inviabiliza o trabalho com sujeitos pretos”. Ainda assim, no processo de agendamento do SEAVis, é perguntado ao sujeito se ele gostaria que tivesse um profissional negro presente no acolhimento.

Thais também compartilha dessa opinião. “Não basta, por exemplo, uma pessoa negra estar na clínica. Até porque o público que chega na clínica é de diferentes lugares. Não é só essa identificação em termos raciais que provocará transformações no processo terapêutico”. Para ela, construir uma clínica com escuta sensível às diferentes realidades inclui uma formação capacitada e que valide as múltiplas formas de conhecimentos. “Uma construção de conhecimento que enxerga mais do que uma produção europeia ou estadunidense. Que a gente possa dialogar de uma forma interdisciplinar, entendendo que a psicologia que se diz neutra é uma psicologia que performa a branquitude.”

Onde buscar ajuda

A doutoranda ainda alerta que a clínica não é uma solução para tudo. “É importante a gente não colocar a terapia num lugar de salvação, sabe? Acho que a terapia é uma das ferramentas dentro da rede de apoio.” Anna Carolina Ramos, coordenadora do Serviço de Atendimento Psicosocial da UFSC (SAPSI) complementa afirmando que em situações de ideação o importante é encontrar apoio dentro da sua rede. “Se você pensa em se machucar ou fazer algo que prejudique a tua vida ou integridade física, o melhor é procurar alguém e pedir ajuda. Não precisa ser um profissional de saúde, pode ser uma pessoa próxima em quem você confia que te ajude a dar essa luz.”

Ainda assim, o acompanhamento com psicólogos e outros profissionais se mantém importante. Mesmo com a demanda por serviços nunca tendo fim, há diversos espaços que podem ser buscados por quem precisa de acolhimento e que fazem a prática de uma escuta sensível. Anna indica para quem está em uma situação de sofrimento mental que busque uma unidade básica de saúde. “No geral não tem alguém especializado em acolhimento de saúde mental, mas os profissionais são capacitados para identificar qual é a demanda. Às vezes quando a pessoa está se sentindo mal, pode ser uma questão de saúde mental, mas pode ser que ela esteja com uma vitamina baixa, talvez ela tenha uma questão hormonal,” explicou a psicóloga, “isso causa muitos problemas de humor.”

Outros serviços que podem ser utilizados são os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) e o próprio SAPSI, que lança editais por semestre oferecendo vagas de acolhimento psicológico. Alguns serviços específicos para minorias também são oferecidos em Santa Catarina. A Associação em Defesa dos Direitos Humanos (ADEH) oferece periodicamente diversas formas de acolhimento à população LGBT.

Quando se está em uma crise com ideação suicida, a indicação é ligar para o número 188, do Centro de Valorização da Vida (CVV), onde há voluntários capacitados para realizar uma escuta sensível disponiveis 24 horas por dia. No portal do CVV também são oferecidas opções de conversa por chat, e-mail e atendimento presencial, disponível em diversas cidades de Santa Catarina.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC