Por trás das agulhas

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7 min readJul 20, 2021

A procura por procedimentos estéticos não-cirúrgicos cresceu 390% entre 2015 e 2017 e o Brasil é o país que mais realiza cirurgias plásticas atualmente. Oferta de tratamentos fora do meio médico traz riscos e gera debates.

por Carolini Marques e Mariana Machado

O Brasil é o país que realiza o maior número de cirurgias plásticas, segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS). Na última década, houve um aumento de 141% no número de procedimentos realizados em jovens de 13 a 18 anos e a procura por procedimentos estéticos não-cirúrgicos aumentou em 390% entre 2015 e 2017, de acordo com estudos da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), divulgada em dezembro de 2019.

Esse é um ranking que se torna preocupante quando os pacientes deixam de ser estatística e ganham rosto, nome e idade e revelam-se os métodos utilizados e os resultados não esperados. A dentista Rafaela Cavalcanti, por exemplo, engrossa a lista das pessoas que tiveram problemas: ela procurou um procedimento estético oferecido por não-médicos e acabou perdendo 60% do nariz.

Para Luciano Chaves, ex-presidente da SBCP, o aumento da procura de procedimentos não cirúrgicos pode ser associado às pessoas mais jovens que não procuravam cirurgias e agora recorrem a procedimentos menos invasivos e preventivos, também à redução dos custos desses procedimentos e à maior qualificação e disponibilidade de especialistas que os realizam. A questão agora é descobrir as motivações reais dos jovens que cada vez mais procuram procedimentos estéticos.

Joice Modesto, psicóloga e especialista em Fenomenologia Existencial, explica que a exposição nas redes sociais é um dos principais motivos, intensificado pela chamada “dismorfia do Snapchat”. O termo foi cunhado em 2018 por pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Boston em um estudo chamado “Selfies — Living in the Era of Filtered Photographs” (Selfies — Vivendo na Era das Fotografias com Filtro, em tradução livre). “A dismorfia do Snapchat se enquadra no Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), onde as pessoas encontram defeitos nelas mesmas, que passam despercebidos para outras pessoas e pode até levar a uma fobia social. Esse ideal de beleza buscado acaba sendo mais recorrente no público jovem, por estarem em maior contato com as redes sociais”, aponta Joice. E os dados apontam para este mesmo caminho.

Em 2017, as cirurgias plásticas faciais cresceram 55% em comparação ao ano anterior. Cerca de 33% dos pacientes admitiram que a maior exposição do rosto na internet foi o motivo da procura pela cirurgia, de acordo com uma pesquisa realizada pela Academia Americana de Plástica Facial e Cirurgia Reconstrutiva (AAFPRS).

Pamela Andrade, tatuadora de 23 anos, foi uma das jovens que buscou um procedimento estético para resolver algo que a incomodava. Desde criança, passando por sua adolescência até chegar na era dos “filtros” dos aplicativos, ela sofria com a imagem de seu nariz. Estava decidida a fazer rinoplastia, fez consulta com vários cirurgiões e quase foi até o fim com o procedimento, mas antes disso, conheceu a rinomodelação definitiva por indicação de uma amiga. Depois de pesquisar, Pamela escolheu uma dentista para fazer seu procedimento, já que acompanhava os resultados que ela divulgava “do antes e depois” no seu Instagram.

“No meu caso, foi um procedimento minimamente invasivo. Eu queria fazer a redução da giba nasal e uma incisão foi feita na base do nariz para depois fazer a raspagem do osso. Fiquei encantada. E o melhor de tudo, fui ver o preço, que era literalmente metade do valor de uma rinoplastia”. Casos como o de Pamela são cada vez mais comuns, só que nem todos têm a mesma experiência.

Riscos dos procedimentos estéticos realizados por não médicos

A dentista e estudante de Direito Rafaela Cavalcanti, a paciente que, assim como Pâmela, optou por uma rinomodelação com um dentista, mas perdeu 60% do nariz, se soma a outros casos cada vez mais frequentes entre jovens que se sujeitam a riscos em nome da beleza.

“Eu fiquei desesperada, porque na minha cabeça parecia que eu era a única pessoa que já tinha passado por isso, porque, em 2019, não era uma coisa tão divulgada. Eu achava apenas que tinha dado azar. Se passa essa ideia de procedimentos, principalmente de harmonização, como se fossem minimamente invasivos quando na verdade não são, né?”.

Para recuperar o nariz necrosado, Rafaela teve que fazer oxigenoterapia hiperbárica, modalidade terapêutica na qual o paciente respira oxigênio puro, enquanto é submetido a uma pressão duas a três vezes a pressão atmosférica ao nível do mar, no interior de uma câmara hiperbárica. Na clínica onde fazia o tratamento, ela conheceu Priscilla Aguiar, jornalista, que também teve o nariz necrosado. Hoje, as duas administram a ONG Estética de Risco, dando orientação e apoio às vítimas de complicações de procedimentos relacionados à harmonização orofacial.

As consequências do procedimento na vida de Rafaela foram muito além do nariz. Ela ficou 12 dias internada e está há dois anos sem poder trabalhar. O sonho de cursar Direito em uma universidade pública teve que ser adiado por um ano, sem contar os gastos materiais, que, de acordo com ela, ultrapassam R$70.000,00.

Pamela e Rafaela, apesar dos resultados diferentes, partiram do mesmo ponto: a insatisfação com uma parte do corpo e a procura por um procedimento que atendesse a essa necessidade. Ambas encontraram dentistas, uma profissão que, em sua regulamentação, está aberta à interpretação em torno da prática de procedimentos estéticos.

Em nota oficial, o Conselho Regional de Odontologia de Santa Catarina (CRO-SC) afirma que o cirurgião-dentista tem competência legal para trabalhar com toxina botulínica e preenchedores faciais, sendo que “os cirurgiões-dentistas poderão exercer aquelas atividades elencadas na Lei n. 12.842/13”, dentre elas, por exemplo, “a execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos” (art. 4º, inc. III), desde que não extrapolem o seu espaço anatômico de exercício profissional. Desse modo, interpreta-se que os médicos não possuem exclusividade de atuação na área de face, tratando-se de área de atuação concorrente com os cirurgiões-dentistas.

Em 2019, o Conselho Federal de Odontologia (CFO) reconheceu que a harmonização orofacial poderia ser um objeto de especialização da Odontologia. De acordo com a legislação vigente que regula a Odontologia no Brasil, a Lei 5.081/66 e a Resolução-CFO-198/2019, o cirurgião-dentista pode e tem conhecimentos necessários do rosto para realizar a harmonização orofacial, assim como médicos.

O debate entre médicos e dentistas se situa na área de atuação da segunda categoria. A resolução CFO-176, de 06 de setembro de 2016, explicita que “a área anatômica de atuação clínico-cirúrgica do cirurgião-dentista é superiormente ao osso hióide, até o limite do ponto násio (ossos próprios de nariz) e anteriormente ao tragus, abrangendo estruturas anexas e afins”.

Rafaela Cavalcanti, formada em Odontologia, esclarece que essa é a área de atuação em todas as leis e resoluções, mas que todos os procedimentos praticados pelos dentistas deveriam ter relação com o sistema estomatognático, responsável por nossa mastigação.

Assim como os dentistas, também os biomédicos e enfermeiros lutam pelo direito da prática de procedimentos estéticos. No caso da biomedicina, a Resolução CFBM nº 241, de 29/05/2014, permite a prática de procedimentos estéticos não invasivos, com especialização em estética, explícito no Art 5º: “o biomédico que possuir habilitação em Biomedicina Estética poderá realizar a prescrição de substâncias e outros produtos para fins estéticos incluindo substâncias biológicas (toxina botulínica tipo A), substâncias utilizadas na intradermoterapia (incluindo substâncias eutróficas, venotróficas e lipolíticas), substâncias classificadas como correlatos de uso injetável conforme Anvisa, preenchimentos dérmicos, subcutâneos e supraperiostal (excetuando-se o Polimetilmetacrilato/PMMA), fitoterápicos, nutrientes (vitaminas, minerais, aminoácidos, bioflavonóides, enzimas e lactobacilos), seguindo normatizações da Anvisa”,

A prática de procedimentos estéticos por enfermeiros também tem sua regulamentação, como mostra a resolução do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) nº 626/2020:

De acordo com Resolução do Conselho Federal de Enfermagem, o enfermeiro deve ser habilitado para realizar certos procedimentos na área da estética, tais como: micropigmentação, terapia combinada de ultrassom e micro correntes, vacuoterapia, entre outros. Arte: Juliana Jacinto.

Mesmo com as resoluções, o debate entre médicos e não médicos parece estar longe de acabar. “Tem muita divergência. Essa briga vai continuar assim, se as pessoas que estão lá em cima realmente não tentarem achar a solução real. Porque esse bate-boca aí, não vai levar a nada. E quem pode, quem domina, quem sabe mais da área. A gente, como paciente, está vivendo uma insegurança completa”, desafaba Rafaela. Para aliviar a ansiedade e proporcionar mais segurança aos pacientes, a Sociedade Brasileira de Dermatologia de Minas Gerais (SBD-MG) listou alguns pontos a serem considerados por quem deseja se submeter a procedimentos estéticos.

A Sociedade Brasileira de Dermatologia elaborou uma série de orientações aos pacientes que buscam se submeter a um procedimento estético. Confira na imagem. Arte: Juliana Jacinto.

Complementando as orientações da SBD, a psicóloga Joice Modesto acrescenta que “é recomendável à pessoa, quando ela vai buscar fazer algum tipo de procedimento, que esteja em constante processo de autoconhecimento, para saber se esse procedimento de fato é o que ela procura. Porque existe possibilidade de que essa insatisfação seja temporária”, alerta.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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