Primeira biblioteca antirracista de Florianópolis é referência para crianças e jovens

Zero
5 min readOct 16, 2024

--

Centro Cultural Anastácia abriga espaço literário inédito na Capital, com enfoque afrobrasileiro, além de promover ações culturais e artísticas na periferia

Crizan Izauro (crizanizaurojornalismo@gmail.com)

Guardiãs de livros: Agatha Lima e Aline Cipriano são responsáveis por cuidar do espaço literário no Balneário do Estreito, na região continental de Florianópolis. Foto: Crizan Izauro

Entre livros e contos, surgem referências culturais para jovens. Desde novembro de 2023, o Centro Cultural Anastácia (CCA) abriga a Biblioteca João Ferreira de Souza — Seu Teco –, a primeira na Grande Florianópolis com o enfoque na literatura antirracista e afrobrasileira. O acervo com mais de mil obras à disposição da comunidade no bairro Balneário, é fonte de inspiração para os mais de 350 jovens que participam do projeto social de referência para a Capital catarinense.

A biblioteca atua como um espaço e uma ferramenta importante para as turmas do Rito de Passagem, que tem como referência nomes importantes e representativos da história afro-brasileira,fazendo-os pensar na própria imagem e em como se veem no futuro. “Para eles é um ‘portal’ para tirá-los dessa ideia de que a gente [pessoas negras] não tem informação, de que os negros não estão em outros espaços que não o operacional. Nós temos pensadores, temos filósofos, literatos e ilustradores incríveis que publicaram suas obras”, conta Aline Cipriano, de 45 anos, negra e bibliotecária do CCA.

Agatha Lima, mulher negra de 18 anos, fez parte de atividades do Centro Cultural e, hoje, é jovem aprendiz do programa. Ela é responsável pela recepção do espaço e auxilia nas ações do projeto que visa o desenvolvimento de habilidades artísticas e culturais. Ela, que é referência para os mais novos de comunidades carentes, fala que “grande parte dos jovens que fazem o curso [preparatório], gostam tanto de ler, quanto de escrever raps, poemas e músicas. Já fizemos vários tipos de projetos com música, dança e poesia. Eles leem sobre autores como Racionais e Bell Hooks, que já foram inspiração”, aponta.

Além da inspiração para os jovens, para o CCA, a biblioteca é um espaço de resistência. Como primeira biblioteca antirracista e afro-brasileira na Capital de SC, o ambiente fortalece a luta do movimento negro no estado. “Ainda mais para a população negra de Santa Catarina que é tão invisível, onde só é vista a população branca, a biblioteca é um ato de resistência mas também de ancestralidade. A gente viu o quanto que uma biblioteca anti-racista era importante não só pra nós [da direção], mas também para os jovens que ali estão todos os dias e que sofrem diversas formas de discriminação”, afirma Priscilla Freitas, negra e membro da diretoria do CCA.

Contra a violência: emprego

O CCA, que desenvolve um trabalho voltado a jovens periféricos da Grande Florianópolis, tem suas raízes no bairro Monte Serrat: em 1990, após a ocorrência de uma chacina que vitimou oito jovens, dos quais cinco faleceram, um grupo de mães e avós se mobilizou. Surgiu com o intuito de encontrar alternativas para que os filhos e netos não ficassem entregues aos apelos da criminalidade e tivessem ajuda na busca de vagas de trabalho.

Para Priscilla, o trabalho é essencial para a vida profissional dos jovens que, sem oportunidades, encontram no projeto uma forma de se preparar para o mercado de trabalho. “A gente [diretoria] costuma dizer que eles são o desabrochar de uma de uma flor. Eles chegam para nós de um jeito, querendo um emprego e uma oportunidade, às vezes, há tantos jovens querendo estar nesse espaço que acaba tendo até filas de demandas querendo estar conosco”, diz Priscilla.

Além de mudar a visão para o mundo profissional, o CCA é responsável por incentivar a produção artística e cultural. Em diversos projetos, como o “Sextou” e “O que você vê no espelho”, são realizadas atividades de inserção cultural que estimulam os jovens a se expressarem artisticamente.

Lei, herança e legado

A Lei 10.639, de janeiro de 2003, estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das grades curriculares dos Ensinos Fundamental e Médio de escolas públicas e privadas do Brasil. Segundo dados oficiais do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população negra no Brasil ultrapassa 51%. Para Aline, há uma ausência de discussões nas escolas sobre as temáticas literárias ligadas à população negra por um viés racista da sociedade brasileira, limitando a ampliação de repertório cultural aos jovens negros. “Esse apagamento histórico ele reverbera nas escolas, quando a gente tem acesso a livros didáticos que não correspondem a história real dos fatos e isso é o complicador. Então foco do Centro Cultural disponibilizando uma biblioteca antirracista na cidade de Florianópolis, uma cidade extremamente racista, é uma resistência.”, relata.

Não é por acaso que Priscilla faz parte da diretoria, a coordenadora carrega o trabalho pelo CCA como herança familiar. Seu avô foi João Ferreira de Souza, Seu Teco, um dos fundadores do CCA e que foi homenageado com seu nome dado à biblioteca. “Eu costumo dizer que o Centro Cultural é como se eu sou herdeira desse lugar e aprendendo a gestar com todas as adversidades que esse lugar têm. Aí a biblioteca veio, e uma das homenagens para o meu avô foi colocar o nome [dele] na biblioteca como era mais conhecido como seu Teco pela comunidade. Foi uma grande alegria para mim e para minha família”, explica.

Referências negras: Agatha enxerga a biblioteca como fonte para as suas poesias. Foto: Crizan Izauro

Em meio a livros e poemas, a biblioteca também é instrumento para Agatha, que desenvolveu dentro do CCA sua escrita de poesias com inspiração nos livros. “O único [livro] que eu tinha pra me inspirar era o que eu tinha em casa. Eu não tinha como ir em alguma biblioteca, porque as bibliotecas eram muito longe e é difícil pra gente [ como pessoas negras] conseguir ir para uma biblioteca. Então foi em casa que eu achei o meu primeiro livro de poemas, “Últimos Sonetos” do Cruz e Sousa. O resto, foi tudo o que li no CCA”. Com suas produções, Agatha conseguiu se classificar no concurso de poesias e terá um de seus poemas em um livro da Vivara Editora Nacional, com sede no interior da Paraíba. “Conseguir ter uma representatividade negra em lugares como esse é difícil. Com isso, quero trazer esse livro aqui para o Centro Cultural e botar um pedacinho de mim na minha história.”

Serviço:

  • Onde: R. Pref. Tolentino de Carvalho, 01 — Balneario, em Florianópolis (SC)
  • Horário de funcionamento: segunda-feira à sexta-feira das 8h às 17h
  • Website: www.ccea.org.br
  • Contatos: (48) 3224–1151
  • Redes sociais: @centroculturalanastacia

--

--

Zero
Zero

Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

No responses yet