Quarto e escritório, tudo junto e misturado

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9 min readOct 23, 2020

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Necessidade de trabalho em home office faz crescer número de pessoas com Síndrome do Esgotamento Profissional, um Burnout caseiro

Por Daniela Ceccon

Apenas 22,7% dos lares brasileiros têm a estrutura ideal e necessária para realizar o teletrabalho. O número, que representa um pouco mais de um quinto das casas, é de um estudo de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A situação, que antes da pandemia não era levada muito em conta, afinal, os escritórios existiam por um motivo, ganha destaque acentuado em tempos de isolamento social e home office. Há implicações na prática cotidiana de quem depende de uma estrutura suficiente dentro de suas próprias casas para trabalhar.

Faça o teste, dê um “google” aí. Se você pesquisar por “home office no quarto”, ou palavras e frases similares, os resultados passam dos 47 milhões . Dicas para transformar seu quarto em escritório, ideias de decoração, otimização do espaço e projetos que tentam provar que dá para conciliar trabalho e descanso em um mesmo cômodo. Em princípio, a ideia não é ruim, e com as novas realidades de trabalho virtual devido à pandemia, essa adaptação se tornou inevitável. Mas até que ponto trabalhar sem a estrutura ideal e ter o seu “escritório” no mesmo local onde você se deita à noite para relaxar, é saudável?!

Dentre os muitos ambientes de uma casa, o quarto é considerado um lugar sagrado, uma espécie de “oásis” de descanso, tranquilidade e pausa da rotina. É, no lar, o lugar mais íntimo e, na maioria das vezes, mais individual. Afinal, é nele em que se tem maior privacidade, tanto com relação ao campo físico, quanto ao emocional e, para alguns, ao energético. Como se fosse a área do aconchego. Ou seja, no quarto, nada de estresse!

Só que de repente, como uma avalanche, aparece o coronavírus, arrastando tudo pelo caminho e reconfigurando conceitos que até então nunca eram questionados. Nossa vida em sociedade muda, nossas relações se alteram, distâncias físicas são necessárias e a vida como um todo se transforma. Até mesmo trabalhar, o ato mais comum de uma rotina adulta, não é mais a mesma coisa. Com o distanciamento social e o home office, nossa casa se torna nosso lar, nosso escritório e nossa bolha física social.

O trabalho em casa foi adotado por pelo menos por 46% das empresas brasileiras desde março, no início da pandemia. Os dados são citados em reportagem do portal Agência Brasil e fazem parte de um estudo da Fundação Instituto de Administração (FIA). A pesquisa foi realizada em abril, com 139 pequenas, médias e grandes empresas de todo o país, e traduz uma mudança no comportamento e na rotina de milhões pessoas.

Até porque o mundo não parou, e o trabalho precisou continuar — mesmo que de uma nova maneira.

O BURNOUT CASEIRO

Fazendo as contas, com o adicional do home office, passamos cada vez mais tempo online e, claro, sem sair de casa. A internet, as redes sociais e as plataformas digitais — no quarto ou na sala –, tornaram-se nossa fonte de lazer como também nosso espaço de trabalho, invadindo nossos universos de relaxamento. Uma rotina exaustiva, repetitiva e de certa forma, solitária, que altera a nossa forma de ver o local de trabalho, e ao mesmo tempo, de entender nossa casa como um espaço de descanso. A separação entre a vida profissional e a vida íntima tornou-se muito mais tênue.

“Eu acordava todo dia cinco minutos antes do meu horário de trabalho, colocava uma roupa e já sentava na escrivaninha. E aí começava a trabalhar. Às vezes, eu chegava a almoçar no quarto, em frente ao computador”, afirma Jean Cé, de 24 anos, que se formou em Economia pela UFSC, dias antes do início da quarentena.

“Eu trabalhava até tarde, tomava um banho, e voltava para lá. Meu dia era basicamente resumido a ficar ali dentro”.

Muita gente se identifica com a fala de Jean, que trabalhou por meses dentro do próprio quarto e viu sua rotina mudar drasticamente. O interessante é que ele também conseguiu um emprego aos “45 do segundo tempo”, e foi ao escritório apenas uma vez antes de tudo fechar.

“Comecei já trabalhando de casa. Nunca tinha feito home office. Foi difícil conhecer pouca gente pessoalmente, não sentir o dia a dia da empresa. Mas fui levando, no começo até achei melhor (não ter que ir até a empresa todo dia)”. Em sua nova função, ele realizava reuniões de venda e consultoria pelo telefone por quase 10 horas diárias. Tudo isso sem estar ao menos no mesmo ambiente de seu cliente, nem ter contato com os seus mentores. “Tudo acontecia online, de dentro do meu quarto.“

A rotina era tão nova, que o aprendizado e a motivação do começo ofuscaram os problemas do novo modelo de trabalho. Mas foi quando Jean sentiu na pele a situação, que o alerta acendeu de vez, “eu percebi que ia dormir ao lado da minha mesa, e acordava dentro do meu próprio escritório”, relata.

Ele não era o único. Conversou com amigos, colegas, e percebeu que a situação não era tão tranquila quanto parecia. O nível de cansaço seguiu aumentando e a produção começou a cair. “Cheguei a ficar estressado ao ponto de querer quebrar algo, de me sentir improdutivo e preso naquele ambiente”, afirma.

Segundo a psicóloga e palestrante terapêutica Neiva Santi, Jean provavelmente estava em um nível de esgotamento pessoal. O estresse, ansiedade e o cansaço extremo são resultado dessa mistura nova — e perigosa. “Trabalhar no mesmo local que deveria ser de descanso é muito complicado, porque o cérebro da gente leva tempo para se adaptar a essa nova rotina”, afirma Neiva. Para ela, se a situação não é bem administrada, pode ser bastante prejudicial ao corpo e à mente.

“O cérebro não entende se aquele local, que antes era de sossego e descanso, deve agora ser um local produtivo.”

E, então, entra em cena um transtorno muito comum e atual que tira o sono, literalmente, de muita gente: a síndrome do Burnout.

No podcast acima, você entende melhor quais são os sinais e as origens do Burnout!

Mas como saber se estamos “queimando”? O psicólogo Yuri Busin, Mestre e Doutor em Neurociência Cognitiva, listou os sinais de alerta em 10 estados do burnout.

Conteúdo: Yuri Busin | Edição e diagramação: Daniela Ceccon

Ainda segundo a psicóloga Neiva, perceber a situação e procurar ajuda é sempre o melhor caminho. “Sabemos que muita gente realmente não tem a opção de trabalhar no escritório, ou em um local mais adequado na casa. Mas precisamos saber também que o esgotamento é uma coisa séria”. Ficar atento ao esgotamento e nos demais sintomas pode ser a chave para perceber se algo está errado, afinal “não é unanimidade. Muita gente se dá bem com essa dinâmica, mas é preciso cuidado e consciência. E claro, sempre buscar ajuda caso se sentir ‘queimando’”, reitera.

HOME OFFICE VEIO PARA FICAR?

Segundo Neiva, home office no quarto, nem pensar! Pelo menos se a situação permitir: “quanto mais separarmos esses dois conceitos, melhor.”

O problema é que muitas vezes essa opção não existe. Para Jean, foi assim. Além da falta de um cômodo específico para utilizar como escritório, ele passou os primeiros meses da pandemia na casa dos pais, dividindo o local com outras três pessoas também trabalhando em casa. “Eu não tinha outra opção, até porque o resto da casa não era silencioso o suficiente, e no fim das contas, meu quarto era o mais adequado”.

Essa também é a realidade de diversos brasileiros, e que deve ser levada em conta, pois nem todo mundo tem um quarto só seu, quanto mais um escritório dentro de casa; poucos têm a estrutura necessária de computadores e conexão com boa qualidade; uma parte significativa de pessoas não podem de fato fazer essa escolha.

Na prática, o caso de Jean não é o único, não é novidade e está longe de ser o último. Ao que tudo indica, a dinâmica do home office veio para ficar, conforme aponta a pesquisa do Ipea em conjunto com IBGE já citada. Ela afirma que “as perspectivas da retomada das atividades econômicas após a pandemia devem levar em conta as novas modalidades de trabalho que emergiram e foram marcantes no período de isolamento e que, muito provavelmente, serão mais utilizadas”.

Ou seja, é preciso pensar em um mundo com práticas de teletrabalho em vários campos profissionais.

QUARTOS INTELIGENTES, MENTES SÃS (MENS SANA IN SANO LOCUM)

Rebeca, 23 anos, é analista financeira em uma startup de Florianópolis. Não acreditava que a pandemia viria para ficar um pouco mais. Nem que teria que trabalhar de casa por tanto tempo. Foi surpreendida. “Logo no começo, nos mandaram para casa por alguns dias. Não fomos preparados, e muita gente nem pegou equipamento por ser algo temporário”, conta acrescentando que, embora nunca tivesse feito o home office, a adaptação foi tranquila. “Só estranhei o fato de não ter contato direto com as pessoas, não ter aquelas interações, as amizades que fizeram falta. Pegou bastante.”

Trabalhando do seu quarto, Rebeca confessa dá aquela escapadinha para a cama e continua o trabalho debaixo das cobertas — de vez em quando.

Mas a diferença é que ela soube e teve o apoio necessário para se adaptar. A empresa de Rebeca conseguiu dar uma resposta rápida aos novos mecanismos de trabalho, e proporcionou toda a estrutura necessária para o home office de seus funcionários. “Recebi cadeira, notebook, duas telas, mouse, enfim. Tudo o que eu usava antes no escritório e que precisei para me acostumar nessa nova rotina.” Essas seriam as palavras-chave: adaptação e apoio.

Rebeca Pastorelli afirma que a estrutura que recebeu da empresa onde trabalha, para montar seu home office, facilitou a adaptação. Foto: arquivo pessoal

A empresa dela deve adotar o home office permanentemente, oferecendo aos empregados a opção do regime misto — alguns dias de casa, outros presenciais. Rebeca não esconde que gostou da ideia. “No começo foi ruim, mas consegui me adaptar. Agora até gosto, e por ter a estrutura que preciso, por ter criado essa disciplina, acho válido.”

No fim das contas, são duas versões de uma mesma realidade: a de quem se acostumou, e a de quem vem enfrentando problemas com essa dinâmica, que veio mesmo para ficar. Mas é preciso conciliar tudo isso, para manter a mente sã, diminuir os níveis de estresse e apagar a “chama” do Burnout. “Disciplina facilita a adaptação”, alerta Neiva. Segundo ela, saber separar conceitos, e colocar isso na prática, auxilia nosso cérebro no processo de compreensão das novas dinâmicas. O ideal é trabalhar onde a gente se sentir melhor, e isso vai de cada um.

Dicas para evitar a Síndrome de Esgotamento Profissional em casa

A psicóloga Neiva, aponta cinco atitudes para que o home office não se torne um problema maior, a ponto de comprometer o desempenho profissional, nem o lazer e o descanso pessoal.

  1. Se só tem tu, vai tu mesmo: “Primeiro de tudo, prepare o seu ambiente”. A ideia é tornar o local onde vamos trabalhar, o mais preparado possível. Se for seu quarto, deixe a estrutura fixa, mas longe da cama. Encontre um local arejado para montar sua mesa, e busque colocar alguma planta ou decorações que possam trazer um certo “relaxamento”.
  2. Cama é lugar de dormir: nada de trabalhar debaixo das cobertas. “Se você trabalhar onde dorme, vai confundir as duas coisas e não fazer nenhuma da forma correta”, afirma Neiva.
  3. Fique confortável: tente adaptar ao máximo o seu local de trabalho com móveis confortáveis e adequados. Além disso, evite ficar o tempo todo sentado.
  4. Crie uma rotina: “se você fizer isso, vai melhorar muito. Tenha claro qual a sua hora de trabalhar, de descansar, de fazer uma atividade física, de relaxar e de curtir a família, ou falar com os amigos. Você precisa separar mesmo o trabalho do lazer, ainda mais de casa”.
  5. Coloque pequenas ações em prática, todos os dias: “o Burnout, o trabalho no quarto, o estresse do home office, enfim… é tudo muito comum e sério. Precisamos nos adaptar, porque quem conseguir fazer isso, vai sair dessa pandemia muito mais forte”, finaliza ela.

Por fim, na hora de dormir não esqueça: feche o notebook e apague a luz. Modo descansar ativado.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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