Quilombolas vivem há 40 anos expulsos de suas terras na capital

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15 min readJun 18, 2019

Por Eduardo Iarek e Jéssica Antunes

Todo dia é a mesma coisa: sem as pílulas, o sono não vem. Deitada sozinha na cama de casal, Dona Jucélia, aos 61 anos, continua a imaginar sua tataravó amarrada no tronco durante a escravidão. Ela já perdeu a esperança de conseguir viver nas terras que um dia pertenceram à sua família. Enquanto pensa no destino de sua comunidade, observa a insistente goteira pingando no lençol: vem do encanamento do andar de cima, que fica à mostra, sinal de que seu filho acabou de tomar banho. A construção improvisada é uma das casas empilhadas à margem da rodovia que liga a Barra da Lagoa ao Rio Vermelho, no norte de Florianópolis.

Jucélia Beatriz Vidal é moradora do quilombo Vidal Martins, que carrega o nome de seu bisavô. Ela vive num terreno de 400 m² junto a outras 15 famílias desde que os quilombolas foram expulsos de seu antigo território para a criação do Parque Estadual do Rio Vermelho, na década de 1960.

Avó de sete netos, Dona Jucélia gosta de cozinhar para as crianças. “Elas chegam da escola com fome, eu boto o prato pra um que vai sentar na cama, boto o prato pra outro que vai sentar do outro lado, cada uma vai comer em um canto porque não cabe”, lamenta. A casa de um só cômodo e a mesinha de pernas bambas a impedem de realizar seu sonho: ter um banquete em família. Ela sente vergonha do próprio lar. “Assim que chega gente, eu pulo pra rua, não recebo ninguém na minha casa.”

Alternativas: Quando criança, Dona Jucélia conta que fazia bonecas com folhas de bananeira como as que aparecem na foto. Nunca teve luxo, mas usava a imaginação para aproveitar a infância. (Foto: Jéssica Antunes)

Aos domingos, seu divertimento é fazer renda. Ela não tem amigos pelo bairro. Durante a juventude até tentava ir aos bailes, mas só podia ficar olhando do lado de fora. A festa era reservada para os brancos. “Não tem nada de bom na minha vida. Se isso é pecado, Deus que me perdoe”, diz com lágrima nos olhos.

Não é de hoje que os Vidal Martins carregam tristeza no olhar. Essa história começa com o tráfico de escravos na Ilha de Santa Catarina em meados do século XVIII. A tataravó de Dona Jucélia, conhecida como Joanna crioula, nasceu em 1830 e adotou os sobrenomes “Martins” e “Oliveira” de seus proprietários. Aos 20 anos, a mulher escravizada casou com Manoel do Espírito Santo, mas só foi libertada após a morte do último dono, Padre Pulcheria Oliveira, em 1867.

Nas terras de Joanna, ali entre lagoa, rio e mar, viveram seus descendentes. Até que, nos anos 60, um homem bem apessoado chegou na região, à serviço da Secretaria de Agricultura do Estado, convencendo toda a gente de que era preciso conter o avanço das dunas da Praia Grande, atual Moçambique. Era Henrique Berenhauser, idealizador e responsável pela implantação de uma Estação Florestal.

Berenhauser, conforme conta Seu Odílio, irmão de Jucélia, dizia que a restinga daquelas terras não conseguiria segurar a areia contra os ventos e aos poucos tomaria conta das plantações, casas e da própria Lagoa da Conceição. Para conter as dunas, era preciso transformar toda a paisagem. A área funcionaria como um grande laboratório a céu aberto para testar qual vegetação se adaptaria melhor à orla marítima do estado.

Em 12 anos, foram plantados 700 hectares de pinus e eucaliptos, inclusive nas terras onde vivia a família Vidal Martins. Para dar conta do serviço e sem grandes custos, o Estado mobilizou uma equipe de detentos da extinta Colônia Penal de Canasvieiras. Além deles, quem também trabalhou, mas como empregado, foi o jovem quilombola Odílio Isidro Vidal, morador do local, que com o tempo ficaria conhecido por Seu Odílio.

Resistência: “A gente sabia que era descendente de escravo, tinha a história no navio que naufragou, mas não sabia que tinha direitos, então a gente ficava isolado.”, reflete o quilombola. (Foto: Jéssica Antunes)

As mãos calejadas e os passos lentos de quem se aposentou por invalidez revelam uma trajetória sofrida. O senhor magro de 65 anos, de barba e cabelo grisalho, conta que trabalhou por anos ao lado dos presos. Ninguém sabia direito a história de cada um, mas imaginava-se muito.

Naquela época, o povoado mais próximo de onde morava a família Vidal era a freguesia do Rio Vermelho, a aproximadamente quatro quilômetros. Isidro Boaventura Vidal e Beatriz Geraldina Vidal foram pais de 11 filhos, incluindo Odílio e Jucélia. As mulheres da casa ficavam sozinhas quando Isidro e Odílio saíam para trabalhar com Berenhauser e, por conta de rumores e preconceitos ditos sobre os presos, sentiam-se desprotegidas.

Pouco tempo depois, a família Vidal Martins deixaria as terras herdadas da tataravó, a escrava liberta Joanna. O motivo foi a apropriação progressiva da área pelo Estado, numa série de eventos que ainda estão sendo investigados.

A instalação do Parque Estadual do Rio Vermelho e as ações do Instituto da Reforma Agrária de Santa Catarina (Irasc), extinto em 1977, estão entre os fatos que levaram à retirada dos quilombolas dali. O Irasc foi um órgão criado pelo governador Celso Ramos com o objetivo de identificar e distribuir terras devolutas no estado. Naquela época, os interesses fundiários já sinalizavam o potencial de exploração imobiliária naquela região.

Atualmente, por suspeita de fraude nas concessões, o Ministério Público Federal investiga os títulos de terra emitidos na época. Os documentos anexados ao processo evidenciam que nos 15 anos de atuação o programa aumentou o patrimônio de pessoas ligadas à especulação imobiliária. Entre os 980 lotes distribuídos pelo Irasc em Florianópolis estavam terrenos onde antigamente viviam os quilombolas.

O destino da comunidade foi o pequeno terreno onde vivem até hoje, passados 40 anos. O novo lote não veio por indenização, mas pelo suor de seu Isidro, o pai de família que precisava se afastar por seis meses, para trabalhar com pesca no Rio Grande do Sul. A morte chegou antes que ele conseguisse parar com os deslocamentos a trabalho e fosse morar lá com a mulher e os filhos.

Ali no número 9.543 à beira da rodovia João Gualberto Soares, seus filhos acabaram crescendo e construindo suas próprias famílias. Seu Odílio e Dona Jucélia tomaram para si a responsabilidade de transmitir as memórias e as lembranças dos quilombolas a seus descendentes. No dia a dia, Helena Jucélia Vidal de Oliveira e Shirlen Vidal de Oliveira costumam vestir os trajes típicos da cultura afro-brasileira. Filhas de Dona Jucélia, as duas se reconheceram enquanto quilombolas e decidiram também exigir seus direitos. A expulsão dos Vidal Martins das terras que eram de seus antepassados precisaria ser reparada.

Progresso: se antes o caminho até a Freguesia do Rio Vermelho era feito a pé, hoje em dia uma rodovia corta o terreno onde moram. Fabiana segura forte os braços do filho Israel: espoleta, ele gosta mesmo é de atravessar correndo. (Foto: Jéssica Antunes)

Espera sem fim

Helena e Shirlen cresceram sentindo na pele que a situação dos quilombolas estava permeada de injustiças e desmandos, então decidiram pesquisar mais a fundo a sua própria história. Depois de rodar por cartórios, bibliotecas, universidades, Ministério Público e Câmara Municipal, encarando espera e burocracia, o trabalho das irmãs finalmente rendeu frutos para a luta da família. O quilombo Vidal Martins recebeu certificação da Fundação Palmares em outubro de 2013 e, logo em seguida, deu-se início a um processo de regularização de território junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Naquele momento, surgiu a esperança de reparar a injustiça histórica e reconquistar o território da comunidade.

Em novembro de 2014, um ano depois da certificação do quilombo, um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre o Incra e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) foi firmado para a realização de estudos históricos, ambientais, socioeconômicos e culturais da comunidade Vidal Martins. É com base nesses estudos que o Incra publica o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), primeiro passo no trâmite da regularização fundiária.

Ficou estipulado um prazo inicial de dois anos para a conclusão dos trabalhos da parceria Incra e UFSC. No entanto, o laudo entregue pela universidade em 2016 foi considerado incompleto pelo Incra, que apontou 27 questionamentos sobre o estudo. Além das divergências metodológicas no trabalho técnico-antropológico, o relatório não foi finalizado em função de impasses envolvendo a interpretação de competências para o registro topográfico.

“O Incra aponta que caberia à equipe da UFSC fazer o mapa do território a ser titulado. Nós descrevemos no relatório qual é a área que está sendo solicitada pela comunidade, que apresentamos a partir de duas perspectivas: a área pesquisada e a área solicitada. Mas isso não é suficiente. Acreditamos que só teria sido possível chegar ao mapa final do território mediante alcançadas as condições prévias de esclarecimento das questões apontadas na primeira versão do Relatório e que o Incra sequer considerou que seria seu papel enfrentar”, argumenta Ilka Boaventura Leite, professora do Departamento de Antropologia da UFSC e uma das responsáveis pelo relatório.

Segundo ela, o trabalho realizado pela equipe da universidade identificou situações de regularização de terras públicas, envolvendo inclusive o antigo Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (Irasc), títulos ilegais, negociatas com autoridades públicas, entre outros. Ela afirma ainda que “para elucidar esses aspectos é necessário o estudo das cadeias dominiais, tarefa de responsabilidade do órgão fundiário, não da universidade”. Esse trabalho específico consiste em levantar a relação dos proprietários de determinado imóvel rural, desde a titulação original pelo Poder Público até o último dono (atual proprietário), para evitar que o Incra indenize uma eventual desapropriação a quem não é efetivamente dono da área.

Por sua vez, o instituto afirma que “acerca da elaboração do relatório antropológico da comunidade remanescente de quilombo Vidal Martins, o Incra/SC reitera que trabalha para cumprir o acordo judicial já homologado, a fim de complementar o material elaborado pela universidade e concluir o trabalho em prazo determinado judicialmente”. Para isso, também já conta com apoio de técnico indicado pela universidade para a elaboração dos mapas.

A Defensoria Pública da União abriu uma reclamação pré-processual contra o Incra pela demora na conclusão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). No dia 25 de março deste ano, uma reunião de conciliação foi realizada na Justiça Federal com a presença da comunidade para resolver os problemas do atraso. O novo prazo estabelecido para a conclusão do relatório pelo Incra, e não mais pela UFSC, ficou para 30 de agosto de 2019. “A comunidade tá cansada, não aguenta mais esperar”, reclama Shirlen, que se tornou importante liderança da comunidade quilombola.

Ao longo dos cinco anos de impasses burocráticos, enquanto autoridades e técnicos discutiam sobre quem era responsável pelo quê, a vida dos quilombolas seguiu adiante. A comunidade foi crescendo e as precariedades aumentaram com o tempo. Vitória, filha de Dona Jucélia, era pré-adolescente quando os trabalhos antropológicos começaram. Durante o período de realização das pesquisas junto ao quilombo, deu tempo de crescer, da barriga brotar e de nascer Brayan. Ela precisava de um lar para criar o bebê. Preocupada com a situação, Shirlen decidiu ceder a própria morada para ela e alugar outra no bairro dos Ingleses.

Durante os cinco anos de espera pelo relatório, a comunidade Vidal Martins, que já tinha cinco crianças, registrou o nascimento de mais cinco. Ana Clara, Elen, Quênnia, Rafaela, Gustavo, Brayan, Guilherme, Emanuel, Marcos e Israel são as crianças que brincam pelo estreito chão batido ao lado das casas do quilombo. O contraste entre os limites impostos às crianças ali e a liberdade de correrem soltas se revela toda vez que vão ao Parque do Rio Vermelho. “Quando elas estão no parque parecem passarinhos, largou estão querendo voar”, diz Fabiana, mãe de Israel, referindo-se à alegria dos pequenos em brincar no espaço que um dia foi da comunidade e hoje é uma reivindicação.

Desde que foram expulsos, os Vidal Martins quase não frequentavam o Parque Estadual do Rio Vermelho até 2018. Atualmente, três turmas de oito alunos estudam lá dentro, na sala da educação ambiental. Os cursos fazem parte da Educação de Jovens e Adultos — EJA Quilombola, garantidos por Lei desde 2012. A estudante Shirlen explica que, para eles, estudar dentro do parque foi uma conquista depois de muita negociação com a Prefeitura de Florianópolis. “Há cinco anos a gente tava lá sem expectativa de nada, sem saber de quilombo, nem dos nossos direitos, e de repente a nossa vida faz boom!”, reflete sobre a conscientização de sua luta.

Sempre que alguém pergunta para Helena os motivos de estudar em uma sala dentro do parque, ela explica a relação direta de sua comunidade com a terra. “Para nós, estudar aqui é uma questão de reconhecimento. A gente se sente em casa, conquistamos um espaço dentro do território que é nosso. Poderíamos estar em outra escola, mas não. Estamos aqui! A escola é um começo para muitas outras conquistas”. O que os quilombolas buscam é reescrever a história de Florianópolis, incluindo-se nela.

“No sul do país, o projeto de desestruturação cultural dessas comunidades foi muito forte. Se investiu em construir uma imagem de Santa Catarina como um estado europeu”, afirma a antropóloga Raquel Mombelli. A cultura manezinha é geralmente relacionada à renda de bilro e ao boi-de-mamão, símbolos tipicamente açorianos. No entanto, em 1810 a Ilha de Santa Catarina tinha 12.471 habitantes, sendo 3.313 escravos, correspondendo a 26,56% da população, conforme Ianni e Cardoso*. Foram as mãos negras que construíram os grandes prédios do centro da capital.

Mais do que participar da construção civil, os negros tinham sua própria cultura, mesmo que muitos costumes tenham se perdido no tempo. É o caso de Dona Jucélia, que hoje não adere às religiões de matriz africana. “Nós não ‘pegamos’ isso de terreiro, porque os nossos antepassados foram escravos de padre. Eles vieram com a crença deles, mas aqui o padre tirava. Se desde pequenos nós tivéssemos sido criados assim, tenho certeza que a gente seria, mas somos evangélicos.”

A antropóloga Raquel explica que a reprodução de um só discurso dentro de uma cultura produz efeitos negativos com relação aos demais. “Se você no passado cultuasse qualquer coisa de matriz religiosa africana, como é que você seria percebido numa comunidade em meio à Lagoa da Conceição, onde o discurso do manezinho açoriano era e continua sendo hegemônico?”

Histórias de terreiro Seu Odílio não sabe, mas carrega na memória a figura do tio João Ventura, um negro contador de causos que guardava em casa mais de 50 santos de barro. Na época de menino, andavam juntos pelos caminhos da região. De repente, o tio puxava uma música gingando como na capoeira. Seu Odílio consegue até lembrar da letra: “nós somos caboclos da ‘Ruana’, ó Santo Antônio, ó meu senhor, meu salvador… ‘Zé Carulina’ com leite de cipó, meu Santo Antônio”.

Seu Odílio nunca entendeu o significado de Aruanda. “Eu queria era saber o que é essa tal “ruãna, luanda, ruanda!”. A palavra é presente em religiões afro-brasileiras e se refere a um lugar no plano espiritual. É onde vivem as entidades superiores como o Caboclo de Aruanda da música, e os Orixás, Guias e Pretos Velhos. Umas das histórias que tio Ventura contava remete à presença da capoeira nas redondezas. Se hoje em dia é preciso um curso para aprender a lutar, naquele tempo, bastava ir até a beira do Rio Vermelho em noite de São João. Pontualmente à meia noite, apareceria ali o melhor dos professores. “Vinha um negrinho e perguntava se o camarada queria ser ligeiro. Se aceitasse, diz que saía dali que era um relâmpago! Levava tombo, mas no dia seguinte se precisar brigava com três ou quatro”, relembra.

Na época em que a comunidade tinha terras para plantar, eles cultivavam milho, batata doce, aipim, chuchu. Não se usava dinheiro - trocar alimento no Norte da Ilha era a forma de garantir a subsistência. Mas com o passar das gerações, os costumes vão mudando. “Se disser pra minha filha ir lá no alto do Rio Vermelho trocar peixe por farinha que nem eu fazia, nem morta que ela vai fazer isso. As coisas vão evoluindo e se tu para, fica pra trás.”

O caminho que os quilombolas Vidal Martins percorriam até o alto do Rio Vermelho hoje virou rodovia, e com ela veio a urbanização. Se antes viviam praticamente isolados, agora o local onde moram foi cercado por casas. O único acesso que restou do quilombo para a Lagoa da Conceição foi um corredor estreito. Dona Jucélia lembra que inicialmente o terreno ia até a Lagoa, mas precisaram dividi-lo quando a família passava fome. Venderam o trecho à beira da Lagoa e ficaram com o outro lado da rodovia. Já que a pesca é fundamental para a comunidade, a condição foi manter este acesso entre dois terrenos fechados por muros de 3 metros de altura.

A cinco minutos de carro da morada dos Vidal Martins, na área antigamente conhecida como Travessão, se ergueu um paredão branco quase a perder de vista. Entre os 700 metros de comprimento estão distribuídos alguns portões. “Aquilo ali tudo é tipo um condomínio, é tudo lote. Ali é difícil encontrar os nativos, todos venderam e ficaram só na beiradinha do asfalto”, lembra Seu Odílio. O terreno ainda está vazio, mas não por muito tempo. O metro quadrado no bairro vizinho, o já valorizado Ingleses, custa quase quatro mil reais, sendo o 16º bairro mais caro da cidade, segundo levantamento da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de Santa Catarina (Fecomércio).

O quilombo Vidal Martins dá mesmo a impressão de ter parado no tempo se comparado com as construções supervalorizadas que o rodeiam. A morada de Dona Jucélia continua com os mesmos problemas de infiltração e falta de saneamento. Os casebres crescem verticalmente. Ao lado, mansões fechadas por muros altos continuam chegando no bairro e a especulação imobiliária está cada vez mais próxima dos Vidal Martins. Enquanto o tempo passa, a luta da comunidade persiste. Parece estar cada vez mais difícil.

Presos à realidade: o terreno dos quilombolas fica espremido entre as casas e a estradinha de chão batido que dá na rodovia. Gramado para correr, só do lado de lá da estrada. (Foto: Jéssica Antunes)

Futuro incerto

Em situações similares à família Vidal Martins, outras 1.715 comunidades quilombolas brasileiras estão esperando por suas terras. Porém, desde o início do ano, o governo federal não avançou na titulação dos territórios. “O que eles nos alegam é que estariam analisando novamente todos os processos, uma coisa que nos choca muito. Isso é totalmente ilegal, completamente fora do que determina a Constituição”, aponta a procuradora Analúcia Hartmann.

Por aqui o MPF/SC entrou com ação judicial para obrigar o Incra a seguir com os processos de regularização fundiária. Existe ação civil pública em defesa das comunidades quilombolas de Florianópolis, Paulo Lopes e Santo Amaro de Imperatriz, as três estão com processo parado na confecção do RTID. Em sua defesa, o Superintendente do Incra em Santa Catarina, Nilton Tadeu Garcia, aponta a falta de mão de obra como uma das dificuldades do trabalho. Cinco pessoas do setor responsável pela confecção dos relatórios quilombolas se aposentaram recentemente e não há previsão de concurso público para substituir esses funcionários. Todo o trabalho do setor é feito atualmente por Marcelo Spaolonse, único antropólogo do Incra/SC.

O investimento para as ações do órgão vem diminuindo. A dotação orçamentária específica para a realização dos trabalhos de titulação teve início em 2010, com um total de R$ 6,2 milhões. Em 2017, o valor reduziu 78%, ficando em R$ 1,3 milhão. Com o novo governo ainda não há definições. A administração empossada pelo presidente da República promete uma reestruturação do Incra até o 2º semestre de 2019. Enquanto isso, não se fala de orçamento. “A gente liga para Brasília e a informação que temos é que tem um grupo de trabalho que está escrevendo o novo regimento do Incra, uma nova estrutura”, afirma Nilton.

O presidente do Incra, o general Jesus Correa, mandou um memorando que diminuiu em 25% as despesas contratuais das superintendências estaduais. “Estamos vendo o que nós vamos fechar — vamos ter que mandar terceirizados embora ou vigilante, fechar garagem — não estou dizendo que vamos fazer isso, mas discutimos”, diz o Superintendente do Incra, tentando lidar com os cortes.

Regularização dos territórios quilombolas em Santa Catarina

Em Santa Catarina há 16 comunidades remanescentes de quilombolas. Só uma conseguiu a titulação das terras, ainda que parcial, depois de 15 anos de processo: a Invernada dos Negros. A comunidade de São Roque aguarda desde agosto de 2018 uma publicação do Executivo Federal para desapro-priações. Outras três estão com estudos antropológicos prontos, mas aguardam análises finais do Incra para publicação do relatório; duas tiveram problemas nos estudos antropológicos e estão estagnadas; três não têm mobilização suficiente para sustentar os estudos; e três delas não tem certificado da Fundação Palmares. Algumas áreas estão sobre unidades de conservação, como Vidal Martins, Tabuleiro e São Roque. Veja os locais e o andamento dos processos de regulamentação dos quilombos catarinenses.

(Infográfico: Daniela Müller)

Etapas da regulamentação fundiária

| Autodefinição quilombola: emissão do Certificado de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares.

| Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID): elaboração de estudos cartográficos, antropo-lógicos, históricos, socioeconômicos e identificação da área reivindicada.

3ª | Publicação do RTID: divulgação do relatório e possibilidade de contestação, análise e apresentação de recursos.

| Portaria de reconhecimento: publicação nos Diários Oficiais da União e do Estado identificando a área e os limites territoriais.

| Decreto de desapropriação: declaração da área como de interesse social pela Presidência da República, autorizando a desapropriação e indenização de imóveis.

| Retirada dos outros ocupantes: notificação e retirada de cidadãos ou empresas que estejam no território quilombola.

| Titulação da terra: emissão pelo Incra do título de propriedade coletiva da terra à comunidade, que nunca poderá ser vendida.

| Território Regulamentado: tramitação completa, mesmo com titulação parcial.

Gostou? Saiba mais lendo os livros que consultamos durante a apuração:

  • História diversa: africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina, de Beatriz Gallotti Mamigonian e Joseane Z. Vidal (Org.);
  • Direitos quilombolas & dever do Estado em 25 anos da Constituição Federal de 1988, de Osvaldo Martins de Oliveira (Org.);
  • Negros no Sul do Brasil Invisibilidade e Territorialidade, de Ilka Boaventura Leite (Org);
  • Cor e mobilidade social em Florianópolis – aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil Meridional, de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC