‘Rebite’ do escritório

Em busca de melhora desempenho e de ganhos financeiros, jovens banalizam uso de drogas estimulantes como se estivessem tomando um café

Zero
8 min readSep 8, 2021

O uso de substâncias químicas estimulantes para melhorar a produtividade e a concentração, o isolamento da pandemia e o hábito de ¾ dos brasileiros por se automedicar (segundo números do Conselho Federal de Farmácia em 2019) fizeram com que houvesse um “desvio de função” de drogas indicadas em tratamentos psiquiátricos. “É evidente que há um significativo uso indiscriminado de fármacos e banalização do uso medicamentoso no Brasil. Bastaria perguntar a um amigo(a) ou pessoa próxima se teriam algo para uma dor de cabeça, indisposição estomacal, enxaqueca ou qualquer outro incômodo, e logo virá uma réplica com alguma oferta de remédio”, analisa Kleber Marinho, psicólogo analítico e responsável pela Clínica de Psicologia e Psiquiatria Integrada (PPI).

Nesse sentido, o uso de anfetaminas por trabalhadores do mercado financeiro, da saúde e por “concurseiros” não é novidade. Contudo, ignoram-se os efeitos colaterais — que podem ser devastadores. “Eu tinha muitos amigos do mercado financeiro que tomavam. Comecei o mestrado e tinha alguns acadêmicos que tomavam, e no Direito tem muito ‘concurseiro’ que toma para ir fazer concurso. Era normal, estava no ar. Era como tomar uma cerveja quando se está trabalhando demais”, relata Giovani dos Santos Ravagnani, doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e chefe jurídico de uma empresa de fretamento de ônibus por aplicativo. Um amigo pessoal dele, porém, que ocupa alto cargo em um banco de investimentos, abusou desse tipo de substância e atualmente sofre de leucopenia, uma redução de glóbulos brancos no sangue, relacionada a infecções, desnutrição, geração de doenças autoimunes e na medula óssea. A leucopenia é comum entre pacientes que fazem uso de medicamentos e tratamentos de câncer, como, por exemplo, quimioterapia e radioterapia.

Ter ao menos dois anos de sólida atuação, perfil comercial, excelente comunicação, alta capacidade e, no fim, uma dica: “se você é workaholic, toma Vevanse [dimesilato de lisdexanfetamina], adora startups, adora tecnologia, ganhará uma estrelinha”. Essa foi a lista de requisições de uma vaga em um meio de divulgação de empregos.

O anúncio dessa vaga deixa explícito o comportamento recorrente no mundo corporativo: a banalização no uso de substâncias e fármacos como impulsionadores da produtividade. Entre as drogas alopáticas, o dimesilato de lisdexanfetamina tem sido a substância mais comum nos últimos anos.

De acordo com a bula, o medicamento é recomendado para o tratamento de pacientes diagnosticados com Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), ressaltando que “deve ser usado como parte de um programa total de tratamento do TDAH, que pode incluir aconselhamento ou outras terapias”. Além disso, é recomendado ainda em casos de Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA) em adultos.

Quando usado fora do propósito inicial, a medicação dá a impressão para a pessoa que a ingeriu de ela estar adquirindo mais capacidade de retenção de conhecimento, maior produtividade e atenção. O medicamento é um tipo de anfetamina, um estimulante que ocasiona efeitos no sistema nervoso central, conforme alertado na bula, incluindo “episódios psicóticos, superestimulação, inquietação, tontura, insônia, euforia, dificuldade na realização de movimentos intencionais, disforia (tristeza), depressão, tremor, dor de cabeça, piora de tiques motores e fônicos e síndrome de Tourette, convulsões, acidente vascular cerebral (derrame)”.

Em uma busca no Twitter, uma parte considerável dos resultados recentes é composto de relatos de pessoas que usam a substância como quem toma uma xícara de café preto ao amanhecer: “Estudando psiquiatria e acabando com a saúde mental à base de Venvanse e pouco sono”; “Minha cabeça definitivamente não funciona sem o Venvanse. Agora tô ‘bitolada’ que vou depender disso pelo resto da minha vida”; “Vou tomar um banho antes de ir pro hospital de novo pra ver se animo um pouco. Tô quase trocando este Venvanse por 70 mg viu?”.

Nuvem de palavras com base na busca da palavra “Venvanse” no Twitter

Essas declarações não demonstram uma busca maior por produtividade, mas evidenciam um hábito dos brasileiros que consiste em se automedicar sem pensar nos riscos da ingestão de determinadas substâncias. O Conselho Federal de Farmácia (2019) aponta que o hábito é cultural e comum, chegando a atingir mais de três quartos da população, ou o equivalente a cerca de 160 milhões de pessoas.

“Quando relatamos algum sintoma ou presença de doença diagnosticada, uma dor ou indisposição no atual momento, não será nenhuma surpresa receber indicações, sugestões e tratamentos de terceiros que passaram ou souberam de situação análoga e, assim rapidamente tiram da manga uma possível ótima e testada solução para o problema apresentado”, completa o psicólogo Kleber Marino.

O dimesilato de lisdexanfetamina é um sal diretamente produzido da anfetamina, sendo um remédio da categoria dos psicoestimulantes, considerado mais potente que outros análogos, como Ritalina e Concerta, explica o psicólogo. Para ele, o maior alvo do fármaco são jovens de classe média e média-alta, em parte por causa do preço dos medicamentos — podendo custar mais de R$ 400,00 a caixa com 30mg –, em parte pelo perfil profissional dos usuários. O contexto da pandemia também “escalonou o uso das drogas lícitas e ilícitas no geral”. O especialista atesta que, de modo geral, há uma alta na demanda por medicamentos análogos, também por causa dos problemas psicológicos que vieram com a pandemia.

“Não tenho conhecimento de nenhuma pesquisa ou dado que tenha tratado especificamente do uso do Venvanse durante a pandemia, mas posso assegurar que tivemos um grande aumento de busca e aquisição de medicamentos com princípios ativos voltados ao tratamento de patologias de saúde mental desencadeadas pela pandemia, como, por exemplo, ansiedade devido ao isolamento, alterações do cotidiano e problemas financeiros. Assim, calmantes, antidepressivos, ansiolíticos e anfetaminas fizeram parte desse cenário”, relata.

Contudo, antes das casas ficarem fechadas por conta do distanciamento social imposto pela pandemia, a utilização desses medicamentos já era relativamente popular entre profissionais do mundo corporativo, e outros públicos, como o dos “concurseiros” — conhecidos por se dedicarem horas a fio nos estudos para concursos públicos, em busca de uma vaga com remuneração alta e estabilidade.

O advogado Giovani atesta que se aproximou da ingestão, mas não rompeu o lacre da cartela de comprimidos. “Minha vida estava no limite do estresse, da produtividade, da entrega. Trabalhava em escritório, com critério de remuneração com base em horas, como um taxímetro. Quanto mais eu trabalho, mais eu ganho. Então, esses estímulos significavam mais dinheiro no bolso no fim do dia. Isso pesava bastante, e quando você é mais novo, você pensa só no dinheiro e no imediato”, afirma. Giovani relata que muitas pessoas ao redor dele usavam esses medicamentos. Apesar de ter contato com ofertas, Giovani explica que declinou e percebeu que não era o caminho correto.

Trabalho³ = Anfetamina

O prolongamento da pandemia piorou as relações de trabalho. A exigência por alta produtividade levou ao aumento de 7,3 para 9,2 horas extras por semana, sem remuneração, de 2020 para 2021, segundo o 15º Índice feito pela Robert Half. Essa pressão fez aumentar a pressão pela utilização de substâncias químicas potencializadoras de produtividade — ainda que fora das regras médicas.

A escalada da utilização de fármacos e análogos está diretamente vinculada a um aumento exponencial da carga de trabalho. Um exemplo emblemático se deu no início deste ano, em maio, quando um grupo de funcionários do Goldman Sachs, nos Estados Unidos, pediu redução de horas trabalhadas. O problema, porém, não era de duas ou três horas extras a mais no escritório, ou de reunião alongadas. Na ocasião, os analistas juniores reivindicaram redução da carga de trabalho, através de uma carta à direção do banco, solicitando uma jornada de 80 horas semanais. Apesar de ser o dobro do que se considera “normal”, a média entre os funcionários era de 98 horas por semana, ou seja, 19 horas e 36 minutos por dia, de segunda à sexta-feira.

“Um ano após o início da [pandemia da] Covid-19, as pessoas estão bastante sobrecarregadas e é por isso que estamos ouvindo suas preocupações e tomando medidas para resolver o problema”, tentou justificar o banco, por meio de uma nota pública.

Numa escala de zero a dez, a nota atribuída ao bem-estar foi de 2,8. Antes de ingressarem no banco, era de 8,8. O segmento do Sachs é conhecido pela alta taxa de burnout — fenômeno de esgotamento que é clinicamente caracterizado como síndrome e oriundo, na maioria dos casos, de rotinas excessivamente exaustivas.

Segundo a International Stress Management Association (Isma, que significa Associação Internacional de Prevenção ao Estresse) no Brasil, os profissionais do setor financeiro ficam em terceiro lugar no ranking de incidência dessa síndrome, ficando atrás dos trabalhadores em segurança, na primeira posição, e de controladores de voo e motoristas de ônibus urbano, empatados, na segunda.

Desabastecimento

Empregado como um “desvio de função”, o Venvanse chegou a ter um desabastecimento no início da pandemia. Ainda em março de 2020, o laboratório responsável pela produção da droga foi afetado. Em nota, a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) solicitou, à época, que “todos comprem a medicação de acordo com a necessidade individual’’. Estocar medicação não é um ato de solidariedade e pode prejudicar as previsões de reabastecimento para todas as pessoas que precisam em todo Brasil”.

A Ritalina, medicamento análogo e semelhante ao Venvanse, encontra-se em alta nos últimos semestres, sendo também uma substância popular para os mesmos fins.

Na ocasião, outros medicamentos também enfrentaram mudanças na sua escala de produção industrial em decorrência da pandemia. A ruptura de estoque de medicamentos e produtos para a saúde foi relatada por 87% dos profissionais, independentemente do porte da unidade e do tipo de serviço assistencial oferecido, segundo a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto — USP (Universidade de São Paulo).

Fama entre alunos de Medicina

Estudos apontam uma alta taxa de utilização do medicamento entre estudantes de medicina. Em um artigo de acadêmicos do Centro Universitário FTC (UniFTC, antiga Faculdade de Tecnologia e Ciências) e da Universidade Salvador (Unifacs), intitulado “Prevalência e características do uso de fármacos psicoestimulantes para fins de neuroaprimoramento cognitivo entre estudantes de Medicina”, os pesquisadores encontram um dado relevante e que corrobora a alta da utilização como forma de aumentar a produtividade sem orientação: 79,5% dos que responderam à pesquisa afirmam ter obtido a medicação sem prescrição.

“As principais motivações que levaram ao uso dos fármacos supracitados foram a necessidade de ‘aumentar a atenção/concentração’ (69,2%) e o ‘período de provas e trabalhos’ (66,7%). Todos os indivíduos que receberam estímulos de terceiros (10,3%) iniciaram o uso na vigência do curso de Medicina”, conforme o estudo.

Nas últimas páginas do documento, a constatação da pesquisa cita o que é relatado pela maioria das pessoas que usaram estimulantes indevidamente — “excessiva auto cobrança por melhores resultados”. A conclusão reforça a ideia de Giovani, que agora trabalha em uma companhia que incentiva todos os funcionários a praticarem exercícios físicos todos os dias e manterem uma vida saudável. Ele cita que no início de sua carreira, sempre viu a divulgação desses relatos como uma “verdade sufocada”, e agora, que está melhor estabelecido profissionalmente, sente-se mais confortável para falar sobre o tema de saúde mental — que ainda considera algo banalizado no mundo corporativo.

A maioria dos estudantes entrevistados atesta recorrer aos medicamentos em momentos de maior tensão e ansiedade.

“Em muitos lugares em que eu trabalhei, a pressão por produtividade batia na ‘risca’ do assédio moral, e o controle [do excesso] de jornada foi ignorado na maioria das circunstâncias. Mas, acho que o controle de jornada é algo que temos que repensar. Pra mim, isso é algo que ficou para trás com maior flexibilidade [das horas trabalhadas]. Vivo melhor em um ambiente flexível, e acho que temos um pool [conjunto] de empresas que abarca tudo isso hoje em dia — e ainda bem”, comenta.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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