Risco de apagão: corte no orçamento ameaça realização do Censo Demográfico

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7 min readApr 21, 2021

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Congresso Nacional retirou R$ 1,76 bilhão dos R$ 2 bilhões destinados à pesquisa, e pode dificultar a elaboração de políticas públicas no futuro, incluindo o combate à pandemia

O Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pode ser adiado pelo segundo ano consecutivo. A pesquisa, que é a principal fonte de dados sobre a população brasileira, teve 96% de sua verba cortada pelo Congresso Nacional durante votação da Lei Orçamentária Anual (LOA), ou seja, dos R$ 2 bilhões que seriam destinados ao instituto, R$ 1,76 bilhão foram retirados. O corte inviabiliza o estudo, de acordo com o IBGE.

A LOA foi aprovada pelo Congresso no último dia 25 de março, e agora aguarda a sanção da Presidência da República para começar a valer. Diante do corte orçamentário, o IBGE solicitou orientações ao Ministério da Economia, pasta à qual a autarquia é subordinada, sobre como proceder para a realização do censo.

Sem a pesquisa, os gestores públicos — prefeitos, governadores, secretários e técnicos –, correm o risco de ficar no escuro. É o que explica o analista de projetos do Setor de Desenvolvimento Econômico da Federação Catarinense de Municípios (Fecam), Carlos Eduardo da Costa. “É um apagão mesmo. É o censo demográfico que revela as principais necessidades de investimentos para Estados e Municípios. É esta pesquisa que baseia o planejamento da gestão pública pelos próximos anos, por isso é tão importante que ele seja realizado. Fora que o censo não é um gasto. Esse dinheiro é um investimento em pesquisa que vai retornar pro poder público, fora a injeção financeira que vão receber os trabalhadores diretos do estudo”.

Desde 1920, o censo é realizado decenalmente, com exceção dos anos de 1930, 1990 (adiado para 1991) e 2020. Em 10 de maio de 1991, o então presidente Fernando Collor sancionou a Lei nº 8.184 que decreta que “a periodicidade dos Censos Demográficos e dos Censos Econômicos, realizados pelo IBGE, será fixada por ato do Poder Executivo, não podendo exceder a dez anos a dos Censos Demográficos e a cinco anos a dos Censos Econômicos”.

A não realização do Censo Demográfico impacta diretamente no valor repassado no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), além de uma série de outras transferências do Governo Federal a estados e municípios, já que a referência utilizada atualmente é a pesquisa realizada em 2010 pelo IBGE. “Graças ao IBGE, nós tivemos os primeiros mapeamentos de todo território, uma noção mais precisa do povo brasileiro nas suas mais diversas nuances, pesquisas de satélite e assim por diante. Sempre foi decisivo para o desenvolvimento brasileiro, e em todos os momentos que se tentou brecar isto, se tentou destruir o trabalho do IBGE que guia as políticas públicas”, opina Lucas dos Santos Ferreira (32), professor de geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis.

O imbróglio ocorre em um momento de acontecimentos controversos, tanto dentro como fora do IBGE. A presidente Susana Cordeiro Guerra pediu demissão no fim de março desse ano e deixou o cargo no dia 9 de abril. Marise Ferreira, formada em direito e servidora de carreira do órgão, assumirá o cargo. As indefinições, em conjunto com o agravamento da pandemia da Covid-19, também fizeram com que fossem suspensas as provas de concursos para mais de 204 mil vagas para candidatos que trabalhariam no Censo 2021. “Quando o censo não é realizado, eu passo a não ter assertividade para gerar políticas públicas. Eu preciso trabalhar com o IBGE para poder guiar a opinião pública para uma direção e guiar também o processo de fabricação das políticas públicas. Sem isso, o debate é transferido para o campo ideológico”, destaca Lucas.

O Deputado Felipe Carreras (PSB-PE) encaminhou à Câmara dos Deputados, no último dia 30 de março, o Projeto de Lei 1101/21 que inclui o adiamento do censo na lista de crimes de responsabilidade e que pode levar ao impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O texto está em análise.

Contato com o povo

Em 2021, seria a quarta vez que o mecânico aposentado Marcos Antônio Borges (53), morador de São José (SC), responderia às perguntas do Censo Demográfico. Marcos até reconhece a importância da pesquisa, mas revela que sente pouca aplicação prática no seu cotidiano. “Eu até vejo que eles usam a informação para planejar o que vão fazer, mas no meu dia a dia eu não percebo isso. Da última vez, 10 anos atrás, perguntaram até quantas geladeiras eu tinha, mas o buraco na frente da minha casa continuou ali. A falta de luz e água no verão também”, comenta.

A sensação de distanciamento em relação à aplicabilidade do censo não é exclusiva do mecânico aposentado. Em 1993, o grupo de rap Racionais MCs já havia feito a mesma reclamação. Em um trecho da música “Homem na Estrada”, que conta a história de um ex-presidiário buscando a reinserção na sociedade, os rappers criticam a falta de ação do poder público nas periferias mesmo com a realização da pesquisa.

Legenda: Música de 1993 traz referência ao censo demográfico | Arte: Bianca Nery

Apesar de um certo distanciamento da população com a aplicação prática da pesquisa, o analista da Fecam revela que as primeiras informações recolhidas pelas pesquisas já têm consequência no cotidiano das pessoas. “A consolidação da população de cada cidade, uma das primeiras questões apuradas, já impacta na vida das pessoas quase que de imediato, porque é nela que se baseia a divisão dos recursos do FPM. Então, se o município tem uma população maior ou menor que o estimado, ele vai receber mais ou menos dinheiro para usar em infraestrutura, educação, saúde, entre outros”, ressalta Carlos.

Se, em anos anteriores, a população sentia que o Censo Demográfico tinha pouco efeito a curto prazo, durante a pandemia da Covid-19 a falta de informações para a elaboração de políticas públicas ficou mais perceptível. Com a suspensão da realização do censo no ano passado, o Poder Público perde a referência para questões importantes, como a de vacinação.

O município de Florianópolis, por exemplo, informou que no mês de março vacinou 20% a mais de pessoas do que a população atual estimada pelo IBGE — o que revela a importância da atualização dos dados. Segundo o chefe do Instituto em Santa Catarina, Roberto Kremer, essa situação poderia ter sido evitada, ou pelo menos amenizada, com as informações corretamente atualizadas.

“É uma região muito conurbada, então, existe uma parcela de pessoas que simplesmente se vacina em um município vizinho porque tem residência lá. Porém, é o censo que traz as informações sobre a idade nominal da população, a idade exata, já que as estimativas são feitas com faixas etárias, então, com isso, poderíamos estipular o número de pessoas vacinadas com mais precisão”, explica.

A urgência da realização do censo também vem à tona por conta da distorção de dados acarretada com a pandemia. Além dos óbitos, que mudam a expectativa de vida e até mesmo a população, dinâmicas de emprego, renda, e escolaridade também foram significativamente alteradas no período, ressaltando ainda mais a importância de uma pesquisa completa como é o censo demográfico.

Censo na Pandemia

No ano passado, o censo foi suspenso devido às inseguranças sanitárias causadas pela pandemia. Para ajudar o Governo Federal, Estados, e Prefeituras no combate à Covid-19, o IBGE lançou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid-19 (PNAD-Covid), recolhendo informações sobre emprego, renda e acesso da população ao Sistema de Saúde.

A PNAD-Covid tem algumas diferenças no método utilizado no censo. Primeiramente, ela é totalmente realizada pelo telefone, enquanto o censo vai até o domicílio das pessoas. Outra diferença é que a PNAD é uma pesquisa amostral, ou seja, ela entrevista apenas uma parcela da população e aplica correções matemáticas para chegar a um resultado.

“Uma pesquisa amostral é diferente de uma pesquisa censitária. A PNAD faz entrevistas em um número limitado de cidades, já que, apesar de muito importante, ela retrata apenas uma fotografia daquele momento. Já o Censo Demográfico é algo mais extenso, que nos fornece mais informações, portanto ele precisa ir a todos os domicílios brasileiros”, comenta Kremer.

Por essas características, o chefe estadual do IBGE em SC defende a importância da realização do Censo em 2021, e diz que é possível garantir a biossegurança dos recenseadores. “Existem vários serviços essenciais que continuam funcionando e circulando pela rua, como Correios, delivery e até funcionários de estacionamentos de vias públicas. Com os devidos protocolos, é possível proteger os recenseadores”, completa.

Rosângela Pereira (45), moradora de Florianópolis, que já havia atuado como recenseadora em 2010, diz que pretendia atuar novamente na função em 2021, mesmo com os riscos da pandemia. Em 2010, Rosângela, que tem ensino fundamental completo, atuava como vendedora de roupas no centro de Florianópolis e viu no censo demográfico uma chance de aumentar a sua renda. “Eu não ganhava muito, tinha comissão e eram tempos difíceis assim. Ainda tinha que me deslocar do Moçambique [bairro] até o Centro, então quando pintou essa oportunidade do censo, que só exigia o ensino fundamental, eu abracei. Cheguei a tirar R $2 mil em um mês na época”.

Os recenseadores contratados pelo IBGE são pagos por produtividade. Em 2021, a remuneração poderia ultrapassar R$ 3 mil para os 181 mil contratados. Além disso, o Instituto também destina vagas para 21 mil agentes censitários, que ajudam a coordenar a coleta de dados.

Atualmente, Rosângela tem uma lanchonete onde trabalha com o marido no Moçambique, mas diz que, mesmo com os riscos da pandemia, irá se candidatar ao cargo novamente se o IBGE abrir a seleção. “Acho que vale a pena. A gente se vira ali na lanchonete, contrata alguém pra cobrir, mas esse dinheiro ia ajudar bastante aqui em casa. E sobre a segurança, a gente até fica com medo né, mas na lanchonete a gente também tem contato com o público, e se cuidando direitinho, usando máscara e álcool em gel, corre menos risco”.

Para tentar garantir a segurança dos trabalhadores, o IBGE solicitou ao Ministério da Saúde a inclusão dos recenseadores entre os grupos prioritários no Plano Nacional de Imunização. Entretanto, com as incertezas sobre a realização da pesquisa e a suspensão do concurso público para chamamento dos trabalhadores, o Ministério ainda não emitiu uma resposta sobre a solicitação.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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