Santa Catarina registra aumento de casos de violência contra a mulher

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10 min readDec 13, 2023

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Relatório divulgado em agosto pela Dive/SC revela mais de 28 mil casos registrados no estado em cinco anos

Aléxia Elias (alexia.elias02@hotmail.com) e Manuella Wallerius (manuellawrower@gmail.com)

Em 2022, a cada dia, 17 mulheres foram vítimas de violência em Santa Catarina. Ao todo, foram notificados 6.285 casos de violência contra mulheres residentes no estado, de acordo com o relatório divulgado em agosto de 2023 pela Diretoria de Vigilância Epidemiológica de Santa Catarina (Dive/SC). Esse número representa um aumento de 18% em relação a 2018, ano em que o estudo começou a ser feito.

Desqualificações verbais, gritos, situações humilhantes diante de familiares, explosões repentinas, quebra de objetos e até mesmo acelerar o carro para causar medo. Tudo isso veio antes da violência física surgir no relacionamento de quase 20 anos de Camila*. O ex-marido, pai de seus três filhos, que foi seu grande amor, começou a ter acessos de raiva que evoluíram de danos emocionais até um empurrão e um tapa. Demorou para que ela percebesse que a situação não iria mudar para melhor. “A convivência em casa já estava prejudicando minha saúde e a formação de nossos filhos. Compreendi que precisava abandonar aquele casamento e solicitar o divórcio, mas não foi uma decisão fácil, precisei receber apoio da família e amigas”, afirma Camila.

Apesar de ter conseguido romper o ciclo de violência e sair do relacionamento abusivo, Camila afirma que nem pôde respirar aliviada, porque logo após o pedido de divórcio, ela acabou sofrendo ameaças e perseguições por parte do ex-marido. Por conta disso, solicitou uma medida protetiva. Além dela, outras 6.868 mulheres tiveram medidas protetivas concedidas em 2020 em Santa Catarina, segundo o 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022, esse número subiu para 19.788, o que representa um aumento de 188,12%.

A pandemia do Covid-19, que teve seu auge em 2020/2021, pode ter sido um dos motivos para agravar esse cenário de acordo com a defensora pública e vice-presidente do Observatório da Violência contra a Mulher de Santa Catarina (OVM/SC), Anne Teive Auras. Ela destaca as situações de vulnerabilidade que o período de isolamento social criou para mulheres e meninas. “Elas passaram a permanecer confinadas com seus agressores e afastadas de qualquer tipo de rede de apoio”, afirma.

No entanto, Anne defende que esse não é o único fator responsável pelo aumento. Discursos de ódio contra as mulheres e minorias sociais em geral, que aumentaram nos últimos anos nas redes sociais e nos palanques políticos, também podem ter influenciado na crescente da violência. “Essa densa malha de discursos que objetificam, julgam e culpabilizam mulheres e meninas, principalmente aquelas que ousam não observar os padrões normativos de feminilidade, maternidade, heterossexualidade, tendem a legitimar atos de violência contra as mulheres, dentro e fora de casa”, destaca a defensora pública.

Ela não é a única que defende essa teoria. A pesquisadora na área de gênero, Teresa Kleba Lisboa, reforça que os discursos feitos por autoridades do país durante o período contemplado pelo relatório da Dive/SC, podem ter influenciado o modelo de masculinidade seguido por homens. “O exemplo é tudo. Se os homens têm essas figuras com atitudes lastimosas como exemplo, então como que a gente vai querer que eles sejam diferentes?”

Também é consenso, entre Teresa e Anne, que o incentivo à liberação de uso de armas de fogo para toda a população é outro fator a ser analisado em relação ao aumento de casos notificados. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina (SSP/SC), as armas de fogo foram o segundo meio mais utilizado para matar mulheres: dos 57 feminicídios registrados em 2022, 14 foram consumados com armas. Mas as mortes não são o único reflexo causado pela facilitação de compra de armamento. A sensação de insegurança, sofrida pelas mulheres dentro de suas próprias casas, aumentou ainda mais, ao saberem que seu agressor tem um objeto letal ao seu alcance. “Se o homem não estiver estruturado emocionalmente, qualquer briguinha boba pode resultar em um tiro na mulher”, reforça Teresa.

Em contraponto, outra possível razão para que as notificações tenham aumentado foi a maior disseminação de conhecimento sobre o tema, que vem fazendo com que as mulheres se sintam motivadas para romper o silêncio e pedir ajuda. É o que defende a delegada Patrícia Zimmermann, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (DPCAMIS) de Santa Catarina. “Conforme as campanhas de divulgação de conscientização têm aumentado, a qualidade do atendimento tem melhorado, o número de ‘Salas Lilás’ e delegacias de proteção à mulher, à criança e ao adolescente cresce, esses números realmente tendem a aumentar”, disse.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em 2019, que ouviu 2084 pessoas em mais de 130 municípios do Brasil, indica que 52% das mulheres que sofreram alguma agressão em 2018 ficaram caladas. Esses dados corroboram com a teoria de que a subnotificação de casos ainda é significativamente grande, mas está aos poucos diminuindo.

A defensora Anne destaca que as recentes alterações na Lei Maria da Penha, como o auxílio aluguel para vítimas em situação de violência, também são um importante marco na garantia dos direitos das mulheres. “Agora, não há mais dúvidas de que a lei se aplica a todos os casos em que há violência contra a mulher nos espaços doméstico, familiar ou em relação íntima de afeto. Antes, alguns tribunais e juízes exigiam prova de vulnerabilidade ou submissão da mulher para garantir a aplicação da lei”, aponta.

Para a Organização das Nações Unidas (ONU), a Lei Maria da Penha é uma das legislações mais avançadas do mundo, já que traz medidas de prevenção, proteção e assistência às mulheres e punição aos agressores. A Organização define que a violência contra a mulher se encaixa como qualquer ato de violência de gênero, sem se limitar ao ambiente doméstico e à agressão física.

Primeiros sinais

A delegada Patrícia Zimmermann explica que a identificação das diferentes formas de violência logo no início é essencial para que a denúncia aconteça rapidamente. “Nós trabalhamos para identificar os crimes antecedentes, que são a lesão corporal e a violência psicológica, por exemplo. Assim, a gente consegue atingir a mulher na violência inicial, antes que se torne um feminicídio”, ressalta.

Reclamações sobre o tamanho da roupa, sobre o contato com colegas de trabalho, sobre a ida a certos lugares e espaços… O ciúme que, no início, parece ingênuo ou sem importância e que, aos poucos, progride para brigas constantes e o isolamento do parceiro do convívio social, é um dos indícios que o relacionamento não vai bem e que precisa de intervenção.

Dessa forma, a melhora no atendimento inicial às vítimas está sendo um dos focos da Polícia Civil neste momento, com mecanismos de proteção como grupos reflexivos para que as mulheres se sintam seguras para realizar as denúncias. “Não há feminicídio sem uma violência anterior. Quando a gente olha para as estatísticas de assassinatos, ainda é muito pouco o número de mulheres que registra uma ocorrência anteriormente, porque a gente consegue evitar quando é denunciado”, destaca Patrícia.

Desde 2015, todo assassinato que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima é considerado feminicídio, de acordo com a Lei nº 13.104/2015. Em Santa Catarina, foram registrados 212 feminicídios desde 2020, sendo 43 cometidos em 2023, segundo o Observatório de Violência contra a Mulher (OVM/SC). No total, 8 em cada dez vítimas não tinham registrado boletim de ocorrência antes do crime.

Vítimas e racialização

Em Santa Catarina, onde 80% da população se autodeclara como branca, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a maioria das vítimas era branca, com idades entre 40 e 44 anos. Porém, essa não é a realidade do restante do país. O 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que, em 2022, seis em cada dez mulheres mortas vítimas de feminicídio eram negras.

A professora de ensino quilombola, mestranda em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), Luciana de Freitas Silveira, destaca que o entendimento da violência contra as mulheres precisa ser analisado historicamente, visto o contexto de violação ao corpo da mulher negra. “Ainda há essa ideia de que a mulher negra tem que servir, enquanto aquela que é mão de obra, aquela que serve para parir os futuros escravizados, ou para atender os apelos sexuais dos patrões. E hoje a gente pode pensar nas domésticas que dormem nas casas e que são violentadas pelos patrões”, lembra.

Para ela, a violência, de modo generalizado, só poderá ser superada com os estudos de raça e etnia. “Não tem como a gente desassociar a questão da violência contra a mulher negra, pensando na violência em todos os campos, se a gente não pensar que essa violência é uma construção da sociedade racista ou da sociedade brasileira que é pautada no racismo”, analisa Luciana.

Ao todo, 1.437 mulheres foram mortas no Brasil em razão do seu gênero em 2022, de acordo com o relatório “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em março de 2023, o que representa um aumento de 6,1% em relação ao ano anterior. No mesmo documento, também fica explicito o crescimento da violência contra as mulheres no geral: foram 613.529 registros de ameaças e e 24.382 boletins de ocorrência por violência psicológica.

Alienação parental

O boletim de ocorrência e o afastamento do agressor são grandes passos para que a violência não evolua com maiores gravidades. Entretanto, a vítima de violência, seja ela física, psicológica, moral ou financeira, muitas vezes ainda passa por várias dificuldades após a desvinculação, principalmente quando há filhos frutos da relação. Foi assim com Camila, que teve a Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/2010) utilizada como forma de retaliação pelo ex-marido.

Ao terminar o relacionamento, os dois filhos mais velhos expressaram o desejo de não conviver mais com o pai, pelos traumas que vivenciaram em companhia do genitor. Camila explica que, depois disso, além de precisar conviver com as ameaças feitas pelo agressor, ainda precisou enfrentar intimidações e constrangimentos feitos pelo juiz responsável pelo processo. “A Vara da Família acolheu a denúncia [feita pelo ex-marido] e não consultou e nem considerou as ações e os antecedentes existentes na Vara Criminal. O juízo chegou a utilizar a chamada ‘terapia da ameaça’, o que me gerou um grande estresse”, lembra.

Mesmo após os profissionais do Serviço Social e da Psicologia terem atestado que o afastamento dos filhos foi apenas resultado do comportamento do genitor e não por influência da vítima, o processo continua ativo na justiça. “Esse processo é usado para me desqualificar como pessoa e influencia nos pleitos de outros processos, referentes a bens e revisão de alimentos”, aponta Camila.

Representatividade na política

De acordo com a pesquisadora Teresa Kleba Lisboa, a falta de representação política pode ser um fator importante que determina a falta de iniciativas pensadas para a proteção das mulheres. Atualmente, na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc) são apenas três deputadas. “As políticas públicas não conseguem ser implementadas porque elas são feitas por homens, pensadas por homens, e propostas por homens. A gente precisa de políticas públicas que venham ao encontro das nossas demandas e necessidades, mas nós não votamos em mulheres”, disse. Mas para que os direitos das mulheres catarinenses avancem nesse sentido, é necessário que as mulheres em espaço de poder “lutem pelos direitos das mulheres e se identifiquem com as questões do feminismo e com as demandas e necessidades das mulheres”, completa.

Faz pouco mais de 90 anos que o Código Eleitoral passou a assegurar às mulheres o direito ao voto. Hoje, as mulheres representam 52,49% do eleitorado brasileiro. Apesar disso, de acordo com dados de um estudo realizado em 2021 pela União Interparlamentar, o Brasil ocupa apenas a 142° posição de participação de mulheres na política, ocupando 16% nas Câmaras de Vereadores, 12,1% nas prefeituras, 15% na Câmara de Deputados, 11,54% no senado federal e 15,56% Deputadas Estaduais.

BRASIL: Mais de 30% das mulheres com 16 anos ou mais já foram vítimas de violência física ou sexual em que o agressor era parceiro íntimo, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Datafolha. (Foto: Freepik)

É preciso denunciar

Para a defensora pública Anne Teive Auras, o mais importante é enfatizar que o silêncio não protege as mulheres. “Romper o silêncio, buscando ajuda em sua rede de apoio, é um passo muito importante para sair do ciclo da violência. A rede de apoio pode ser a família, uma amiga, uma colega de trabalho, uma pessoa de confiança na escola ou no trabalho: o importante é quebrar o isolamento em que muitas mulheres e meninas se encontram. Quando sabemos que há vida, acolhimento e proteção fora do ambiente violento, nos sentimos mais seguras para abandoná-lo”, afirma.

E para que essas mulheres possam romper o silêncio, é necessário que saibam por onde começar. Além do número 190, da Polícia Militar, que pode ser acionado em casos de emergência e do número 180, da Central de Atendimento à Mulher, para realização de denúncias anônimas e orientação para as vítimas, também existem outros lugares em que a mulher em situação de violência pode buscar ajuda.

É possível encontrar atendimento psicossocial junto aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras e Creas) do Município. As unidades básicas de saúde devem ser acionadas pelas mulheres ou meninas em situação de violência, principalmente se essa violência for sexual, pois a vítima de violência sexual tem direito a atendimento imediato e multidisciplinar. Para registrar uma ocorrência policial e dar início a um procedimento para responsabilização do agressor, a delegacia de polícia é o lugar correto, especialmente as delegacias da mulher. Além disso, orientações jurídicas podem ser obtidas nas Defensorias Públicas ou com advogadas e advogados particulares.

*Nome fictício

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC