Sem atender demanda de ciclistas, ampliação da Rodovia SC-401 não prevê ciclovia separada do trânsito
Estrutura descumpre diretriz do Contran; Prefeitura de Florianópolis promete novos estudos, mas sem prazo definido
Luiza Casali (luizabortoluzzicasali@gmail.com)
O projeto de ampliação da Rodovia SC-401, anunciado pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) em 2024, não segue as orientações do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) para que ciclovias em vias de trânsito rápido sejam fisicamente separadas do tráfego de veículos. A obra previa um acostamento de 2,5 m para pedestres e ciclistas, que, na entrada do bairro Ratones, seria convertido em ciclovia exclusiva ou compartilhada. O trecho de 2 km em implementação vai do Posto da Polícia Militar Rodoviária ao viaduto de acesso a Jurerê, com destino às praias do Norte da Capital.
Segundo o secretário adjunto da Secretaria Municipal de Transportes e Infraestrutura (SMTI), Ricardo Junckes, o projeto será reavaliado para definir a implementação da ciclovia. “Nesse momento, a concepção da estrutura prevista no acostamento não se mostrou segura, então, foi decidido por fazer somente a terceira pista”. Não há previsão de quando será elaborado um novo projeto.
Iniciada em agosto, a obra tem previsão de terminar até o final de 2024. O valor do contrato com a empresa Fórmula Pavimentação Urbana Ltda é de R$ 4,79 milhões, segundo o Portal da Transparência.
A reforma ocorre em um momento de insegurança para os ciclistas da região. Neste ano, a Associação Mobilidade por Bicicleta e Modos Sustentáveis (Amobici) registrou 30 ocorrências de trânsito envolvendo bicicletas na Grande Florianópolis, sendo quatro no trecho em obras. Vinicius Leyser da Rosa, diretor geral da Amobici, acredita que o número real de casos é maior. “A maioria não vira boletim de ocorrência, muito menos notícia. As pessoas não registram porque nem sempre sentem que é necessário ou que vai fazer alguma diferença”.
A Amobici pede por uma ciclovia adequada na Rodovia SC-401, especialmente por ser um trecho sem alternativas de trajeto. A associação chama a estrutura prevista no projeto de “ciclocoisa”, termo que a diretora administrativa, Juliana Diehl, explica: “É quando a gente não sabe o que é, não entra em nenhuma categoria ou é muito ruim”. Nele, o acostamento seria separado da via de trânsito rápido apenas por tachões [tartarugas], o que não impediria atropelamentos. Em um trecho, ele terminaria em frente a um posto de combustível, obrigando o usuário a entrar na área do posto ou pedalar junto à pista. Mais adiante, na entrada do bairro Ratones, seria implementada ciclovia exclusiva ou compartilhada com pedestres, mas as cores usadas na representação não permitem diferenciar onde seria adotada cada estrutura.
Marina Mandelli, ciclista integrante do coletivo Guerrilla e da Amobici, sugere o uso de barreiras de concreto para separar a ciclovia, como as usadas entre pistas de sentido contrário na rodovia. “A separação física que impede o carro de invadir é o que realmente dá segurança para nós. Temos uma janela de oportunidade: ou a gente mostra para a população o quanto é importante que a ciclovia seja feita, mesmo pra quem anda de carro, ou a gente vai perder a chance”.
Tipos de estruturas cicloviárias:
De acordo com a Prefeitura Municipal de Florianópolis, Rede de Planejamento e Inteligência Urbana.
Ciclovias
É o espaço em nível ou desnível com relação à pista, separado por elemento físico segregador, como canteiro, área verde e outros previstos na legislação. Também se aplica em espaços isolados, como áreas não edificáveis, faixas de domínio, parques e outros logradouros públicos. Pode estar disposta nas laterais das pistas, canteiros centrais e calçadas.
Ciclofaixas
Parte da pista de rolamento destinada à circulação exclusiva de ciclos, delimitada por sinalização específica. Parte da pista, calçada ou canteiro central destinado à circulação exclusiva de ciclos delimitada por sinalização viária, podendo ter piso diferenciado e ser implantada no mesmo nível da pista de rolamento, da calçada ou do canteiro.
Ciclorrota
Vias sinalizadas que compõem o sistema ciclável da cidade interligando pontos de interesse, ciclovias e ciclofaixas, de forma a indicar o compartilhamento do espaço viário entre veículos motorizados e bicicletas, melhorando as condições de segurança na circulação.
Espaço Compartilhado
Espaço da via pública destinado prioritariamente aos pedestres onde os ciclistas compartilham a mesma área de circulação, desde que haja espaço suficiente, o fluxo de pedestres seja baixo e a rota esteja devidamente sinalizada.
Projeto em debate
A Comissão Municipal de Mobilidade Urbana por Bicicleta (Pró-Bici), que atua como ponte entre a sociedade civil e a PMF, enfrenta desafios para que as demandas dos ciclistas sejam atendidas nas obras. Uma de suas funções é avaliar e opinar sobre estruturas do sistema cicloviário. O projeto da rodovia estadual foi apresentado em reunião da Comissão em maio, com a obra já em licitação, apesar de membros terem solicitado acesso desde março.
Antes da apresentação, alguns representantes haviam se reunido com a Secretaria Municipal de Transportes e Infraestrutura (SMTI) para indicar que a estrutura proposta não era adequada ao trecho. “É uma via de alto fluxo, com velocidade alta (80 Km/h), sem fiscalização eletrônica de velocidade permanente e há recorrência de acidentes graves com ciclistas e pedestres”, explica Thales Augusto Pereira Nunes, engenheiro da Secretaria de Planejamento e Inteligência Urbana (SMPIU) e um dos coordenadores da Pró-Bici.
A coordenação é compartilhada entre Thales e Valci Brasil, representante da SMTI. Com o afastamento de Valci para concorrer ao cargo de vereador, a Comissão ficou um trimestre sem se reunir. Em setembro, com as obras em andamento há um mês, a Pró-Bici discutiu o projeto e enviou um parecer com sugestões de melhorias. Também houve duas reuniões com engenheiros fiscais da obra e, mais recentemente, com os próprios Secretários da SMTI e da SMPIU.
Para Juliana Diehl, também integrante da Pró-Bici, a apresentação e a discussão deveriam ter acontecido antes. “Isso ajuda a criar um contexto de confirmação de que não houve escuta”. Segundo o secretário adjunto da SMTI, Ricardo Junckes, as sugestões da Comissão serão consideradas na reelaboração do projeto, que não tem previsão de data para acontecer.
Obras estaduais
O trecho de 2 Km em implementação ficou a cargo da Prefeitura, que assumiu essa parte do empreendimento viário, enquanto o Governo do Estado de Santa Catarina deve realizar obras entre os bairros João Paulo e Cacupé, em um segmento anterior de 6,59 Km, no sentido centro-bairro. Por dia, passam cerca de 80 mil veículos na rodovia estadual, que tem a maior média de tráfego do estado. Parte do Programa Estrada Boa, a obra está com o edital de licitação aberto até 18 de dezembro e deve custar R$ 73 milhões.
Embora tenha sido anunciada a implementação de “rua marginal esquerda com passeio e ciclovia nas duas direções com extensão de 2,48 km”, o projeto prevê apenas ciclofaixa. O termo “ciclovia” é mencionado em um dos relatórios, mas não se confirma nos demais documentos. Em um deles, afirma-se que “não há separação física entre pista e ciclofaixa”.
O projeto também possui três trechos sem alternativas para os ciclistas entrarem nos bairros. É o caso dos acessos à Rodovia João Paulo, perto do 21º Batalhão de Polícia Militar; à Estrada Haroldo Soares Glavan, que leva ao Cacupé; e ao Caminho dos Açores, em direção à Santo Antônio de Lisboa.
Para Juliana, da Pró-Bici, “como Florianópolis é cortada por rodovias estaduais, não dá para falar da comissão sem falar na Secretaria Estadual”. A Secretaria de Estado da Infraestrutura e Mobilidade (SIE) chegou a indicar dois representantes para o grupo, mas ambos já saíram. A Pró-Bici fez dois pedidos de reunião desde outubro e está aguardando uma resposta. A assessoria da Secretaria está disposta a dar entrevista sobre o assunto, mas até o momento do fechamento não houve retorno.
Em nível estadual, o deputado Marquito (PSOL) elaborou um Projeto de Lei (PL) que propõe o Programa Morte Zero de Ciclistas, além de um sistema público de gestão de dados sobre a infraestrutura cicloviária em rodovias estaduais e as ocorrências de trânsito envolvendo bicicletas. O PL está em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc).
Malha cicloviária
A qualidade das ciclovias e a relação com o uso da bicicleta em Florianópolis foi analisada pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Ambiente Urbano & Saúde, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na dissertação de 2022, o mestre Alfredo Messenger identificou, em Florianópolis, 38 eixos de ciclovias com 54 quilômetros de extensão no total, ficando de fora 12 segmentos com menos de 200 metros. Quase 90% dos eixos foram considerados suficientes ou bons.
Os resultados mostram que, embora a rede de ciclovias seja adequada, a distribuição e a conexão entre as vias variam por região. O Sul tem a maior cobertura (18 km), enquanto o continente conta com apenas três eixos (2,7 km). Alfredo aponta que “as piores estruturas estão no Norte da Ilha”.
Pedro Trautmann (25) percebe as diferenças ao atravessar o Continente e a Ilha. “O Norte é pior que a BR-101, só estando lá para perceber como é terrível, mas sou obrigado a passar. Parece que não foi pensado em nada para ciclista”.
Nos últimos anos, a malha cicloviária aumentou. Segundo dados da Prefeitura, de junho de 2023, há 57,12 Km de ciclovias, além de ciclofaixas, ciclorrotas e passeios compartilhados, totalizando 224,78 Km. Contudo, a frustração do pesquisador Alfredo continua. “Tentei levar os dados da pesquisa para o poder público, secretaria, vereadores, mas sem retorno. Não há plano estratégico para colocar ciclovia onde se precisa”.
Mulheres que pedalam
O estudo de 2022 da UFSC revelou que a maioria dos ciclistas eram homens adultos. Além disso, concluiu que ciclovias de melhor qualidade atraem mais usuários e que há mais chance de mulheres as utilizarem. “Se a cidade pretende que mulheres e idosos frequentem e façam atividades físicas, deve ter a intenção de melhorar as ciclovias”, reforça Alfredo.
Nos lugares com ciclofaixas e ciclorrotas sinalizadas, há motoristas que não respeitam a distância de 1,5 metro entre o veículo e a bicicleta. “Acho difícil pedalar onde não tem ciclovia, dá muito medo”, afirma Júlia Santos Schuelter (23), que usa bicicletas elétricas compartilhadas. Para Giovanna Karla Mangoni (22), o tachão ou tartaruga usado nas ciclofaixas não resolve porque os carros conseguem parar em cima. “Nas ciclovias separadas [por canteiros ou calçadas] é totalmente diferente”.
Giovanna pedalou uma vez na Rodovia SC-401 e nunca mais voltou ao local. “Isso já diz bastante coisa. Tem horas que você não sabe se fica no acostamento ou na pista, principalmente quando atravessa algumas entradas onde um carro pode vir rápido para entrar”.