Sem Censo, pequenos municípios recebem verbas inadequadas ao seu crescimento
Prefeitos catarinenses relatam angústia em relação à falta de dados do IBGE e desatualização da pesquisa mais importante do país. Decisão do STF dá esperanças de que o levantamento, adiado em 2020 e 2021, seja realizado no ano que vem
Por Eduardo Vargas e Gabriel Guimarães
Milhões de reais a menos nos cofres públicos e imprecisão na hora de direcionar os recursos: esse é o drama vivido por gestores municipais para desenvolver as cidades de pequeno porte do interior de Santa Catarina. A 180 km da capital catarinense, Arão Josino (PSD), prefeito de Ascurra, no Vale do Itajaí, é um dos administradores públicos que enfrenta grandes desafios com a ausência dos dados detalhados para gerir e modernizar o município que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima ter 7.978 habitantes, em 2020. “Se eu quero fazer um planejamento de médio e longo prazo do município, preciso entender o quanto estamos crescendo. A falta dessa informação nos deixa inseguros e ausentes no que realmente somos perante ao governo federal. É um impacto direto, os recursos vêm com base nestes números”.
Embora tenha críticas ao IBGE, citando a necessidade de bancos de dados que conversem entre si, o gestor diz que a instituição é a que mais se aproxima da realidade. Da mesma forma, dá o exemplo da revisão do Plano Diretor do município, que deve acontecer em breve, mas não possui respaldo técnico e de dados para decisões mais corretas. “Preciso saber onde eu devo fazer o planejamento de um novo posto de saúde ou de uma nova escola”, relata.
“É no município e no cotidiano da vida humana que os problemas acontecem. É no município e no local em que o cidadão reside e que há falta de merenda, falta de vagas em escolas etc. Assim, é o município que gerencia os problemas do cidadão”, diz Elaine Cristina de Oliveira Menezes, doutora em Sociologia Política e professora de Administração Pública na Universidade Federal do Paraná. Tal proximidade do cidadão com a prefeitura e com os problemas da cidade se fazem sentir com ainda mais força nos municípios menores. É o que conta o prefeito Silvano de Pariz (PSL), de Quilombo, oeste do estado, quem estima ter deixado de investir cerca de R$ 2 milhões na saúde e R$ 7 milhões na educação, por conta da defasagem dos dados. “Desanima, tu enquanto gestor, porque batem na sua porta. O cidadão conhece o prefeito, vai na casa. Por mais que o recurso se concentre em Brasília, ou na capital do estado, as demandas e as necessidades essencialmente batem na porta do prefeito”, lamenta Silvano.
A razão pela qual Quilombo deixou de receber a soma de dinheiro que o prefeito se refere é fonte de inquietação na Federação Catarinense de Municípios (Fecam): o Fundo de Participação Municipal (FPM), essencial para a gestão financeira do município. Isso porque a União repassa mensalmente a todos os municípios uma verba correspondente ao Fundo. Proveniente do montante arrecadado pelo Imposto sobre Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IR) e pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a verba é dividida entre os 5.568 municípios brasileiros, dividindo-os em faixas de acordo com a população e renda per capita. “Ficamos muito preocupados com a notícia da possível ausência do Censo, especialmente para os municípios pequenos. Um município grande consegue mapear-se, um pequeno, não”, explica o Assistente de Projetos da Fecam, Carlos Eduardo Costa.
A primeira das faixas — a que tem o menor valor — corresponde ao coeficiente 0,6 do cálculo do FPM e abrange municípios com até 10.188 habitantes. “Os [municípios] que têm um habitante a mais — com 10.189 — ganham recursos a mais só por essa única pessoa”, uma vez que o coloca na faixa de coeficiente 0,8. Carlos relata que o fato de muitos municípios pequenos dependerem majoritariamente dos recursos do FPM os torna reféns do Censo.
É o que ocorre com o município de Quilombo, onde a prefeitura já aguardava ansiosa pelo recenseamento desde, pelo menos, 2016. Naquele ano, afirma o prefeito Silvano, as estimativas do IBGE sobre a população quilombense passaram a demonstrar erroneamente uma queda nos anos seguintes, o que não corresponde com os dados do município. O IBGE estima que, em 2020, Quilombo tinha 9.829 pessoas, enquanto o prefeito afirma que já passa dos 11 mil habitantes.
Silvano calcula que a cidade deixou de receber por volta de R$ 17 milhões, acreditando que a única forma de resolver essa distorção é através do censo demográfico.
“Prometeram que seria realizado em 2020, então nós ficamos todos felizes. Aí veio a pandemia, usaram isso como desculpa. 2021 não foi diferente. Lá se foram mais dois anos com esse prejuízo”.
O mandatário ressalta que, eventualmente, corre atrás de um parlamentar para uma emenda que pode chegar a R$ 100 mil, o que representa um alívio às finanças. Ele afirma que o valor que o município receberia mensalmente através do FPM, sem a distorção, seria por volta de R$ 265 mil.
O prefeito de Quilombo critica ainda a discrepância provocada pelas faixas definidas para os repasses, dado que o município recebe um montante mensal igual ao menor município do estado, Santiago do Sul, que possui cerca de 1,2 mil habitantes. Ou seja, uma cidade com quase dez vezes menos pessoas recebe os mesmos recursos de Quilombo. A gestão municipal sofre com problemas provocador pelas decisões do governo federal — que adia o recenseamento cada vez mais.
Postergar o censo ampliou os prejuízos
Os adiamentos que preocupam o prefeito devem-se a sucessivos cortes no valor previsto para a pesquisa demográfica — que pela legislação deve ser feita a cada dez anos — na Lei Orçamentária Anual (LOA). “Antes do governo Temer tomar posse, [o valor previsto para o Censo de 2020] era de R$ 3,1 bilhões. Aí veio o governo Temer e cortou o orçamento para R$ 2,3 bilhões”, explica Dione Oliveira, Diretora do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatísticas (Assibge-SN).
Quando veio a pandemia e o governo decidiu adiar o Censo, o Sindicato concordou com a decisão, embora não houvesse muita clareza sobre a utilização dos recursos que não seriam investidos na realização da pesquisa. Mais tarde, houve ainda mais cortes, até chegar ao valor de R$ 53 milhões, inviabilizando completamente o censo em 2021. O clima de incerteza foi amenizado só em maio deste ano, graças à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou que a União adote as medidas administrativas e legislativas necessárias para a realização do censo demográfico em 2022.
“A princípio, o censo está confirmado para o ano que vem. A coleta, em si, está prevista para acontecer nos meses de junho, julho e agosto de 2022”, afirma o Chefe da Unidade Estadual do IBGE em Santa Catarina, Roberto Kern Gomes. Ele lembra que o recenseamento passa longe de ser “apenas contar gente”, uma vez que investiga desde as características do domicílio e acesso a saneamento básico, até informações sobre renda, raça e acesso à educação. “Em todos os países, pode-se dizer que ele é a mais profunda e completa investigação sobre a realidade daquela população”, algo que Roberto afirma ser fundamental para a tomada de decisões de gestão pública.
No apagão, municípios recorrem a outros bancos de dados
Em 2010, Rosangela Sigulin Pelissari fazia parte da equipe que executava o censo em Belmonte, município catarinense na fronteira do Brasil com a Argentina. Nos últimos 11 anos muita coisa mudou na vida dela. Por exemplo, hoje ela é secretária de administração municipal. No entanto, na tomada de decisões administrativas na prefeitura, ela depende de dados que não foram atualizados desde então. “A gente tem dificuldade, porque a gente se baseia nos anos anteriores. Mas, na realidade, agora não temos dados sobre o saneamento básico, por exemplo. O censo é super importante!”.
Para tentar driblar a dificuldade de não ter dados precisos sobre seus habitantes, Belmonte — que segundo estimativa do IBGE tinha 2.709 habitantes, em 2020 — procura informações junto aos cadastros de saúde e vigilância sanitária. Embora esse seja um paliativo, o chefe do IBGE de SC, Roberto alerta que nos dados municipais podem haver distorções. “A única informação precisa acerca da população, a única pesquisa que vai de fato a todos os domicílios dos 5.570 municípios do país é, de fato, o Censo”, alerta.
Por fim, os tribunais
Para corrigir o problema, o prefeito Silvano, de Quilombo, afirma ter entrado com uma ação para receber o reajuste nos repasses. Contudo recebeu um “não” do judiciário, pois a decisão se embasa apenas nos dados do IBGE — que encontram-se desatualizados. “Tentamos uma ação, mas sem êxito. O governo, e nenhum outro órgão, aceitam nada que não os dados do IBGE”. Atualmente, Silvano afirma estar realizando um “estudo jurídico” sobre o caso para que, novamente, possa reivindicar o valor não recebido pelo município nos últimos anos. Por isso, ele acredita que o Censo é uma urgência para que Quilombo possa se desenvolver. “Por mais que se mobilize e faça barulho, se não sair o Censo não tem muita esperança”.