Slam: onde toda palavra é dita

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9 min readJul 12, 2022

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Batalha de poesia que surgiu nos anos 1980 ganha espaço pelo teor democrático, representativo e de crítica social

Por Ana Clara Ramos e Marcos Albuquerque

Diante de um público diverso, poetas rimam sobre temas de interesse individual e coletivo em batalha de slam / Foto: Marcos Albuquerque

“Fazer poesia, fazer protesto, fazer arte, fazer luta. É muito mais do que uma competição. É ser ouvido em sua totalidade”. Esse é o significado de slam para Ângelo Perusso, organizador do Slam Estrela d’Alva. Em Florianópolis, o grupo é um dos principais representantes do “esporte da poesia falada”, um expoente local do movimento que é manifestação artística, mas que é também muito mais do que isso.

O slam, que em inglês é uma onomatopeia para o som de palmas, surgiu nos Estados Unidos, no fim da década de 1980. Está presente em vários países, espalhando-se mais recentemente também pelos estados brasileiros. Em Santa Catarina, a batalha de poesias chegou com o Slam Continente, em 2017. Hoje em dia, depois da pandemia da Covid-19, o grupo não voltou às atividades.

Diferente de outras competições, como as de rap, onde os poetas brigam pela melhor rima ao som de música, no slam o poeta não está na roda para derrotar um adversário. Embora exista a estrutura de jurados, regras de tempo e diferentes participantes dividindo o espaço, o que remete à ideia de disputa, nele cada poeta foca na expressão da palavra, sem nenhum acompanhamento musical ou adereço, tentando atingir uma simbiose entre corpo, voz e poesia com o objetivo principal de passar para a próxima etapa para continuar a ser ouvido.

Mesmo não sendo o foco principal do slam, a batalha de poesias faladas premia diferentes vencedores ao redor do mundo. A Copa do Mundo de Slam acontece anualmente na França e, assim como uma competição de outro esporte ou manifestação, os representantes precisam passar por etapas eliminatórias municipal, estadual e nacional. No Brasil, o Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, o Slam-BR, é a batalha anterior para se tornar representante brasileiro no mundial. Em 2017, Luz Ribeiro, poeta, slammer e produtora cultural paulista, foi a vice-campeã da competição na França. A slammer ganhou o título com sua poesia “Menimelímetros”.

[…]

“você que fala becos e vielas

sabe quantos centímetros cabem em um menino?

sabe de quantos metros ele despenca

quando uma bala perdida o encontra?

sabe quantos nãos ele já perdeu a conta?”

[…]

Como é o slam

Em Florianópolis, os grupos de slam contam com intérpretes de Libras para garantir que a poesia seja acessível e compreendida por todos / Foto: Marcos Albuquerque

Para fazer slam, assim como ocorre com a competição, existem algumas regras. Toda poesia dita precisa ser de autoria do participante. Paródias, uso de trechos curtos de obras conhecidas, até podem compor a batida, mas é expressamente proibido plagiar qualquer outro artista. O tempo de declamação não pode passar de três minutos e, enquanto o cronômetro avança, como terceira lei, o poeta precisa garantir que a mensagem seja transmitida apenas pela fala, sem uso de adereços, figurinos ou outros acompanhamentos musicais. “O mais importante é o seu texto, mas a performance vai influenciar na nota, em como o público recebe, em parte pela coesão e o ritmo. [Ao ouvir] o poema, sentir o poema, as pessoas têm outra recepção”, diz Ângelo Perusso, organizador do Slam Estrela D’Alva.

A decisão sobre as melhores poesias e performances fica na mão dos jurados, que são escolhidos de forma aleatória entre o público presente. Depois de selecionados, geralmente os organizadores lembram quais quesitos devem ser avaliados. As notas, que podem ir de 0 a 10, definem quem vai avançar até a terceira etapa da competição. Na inicial, todos os poetas participam. Depois há uma fase intermediária com os melhores colocados e, por fim, vem a decisão do campeão, cuja escolha geralmente se dá entre três finalistas. Antes de cada pessoa declamar sua poesia na competição, um grito específico de cada grupo de batalha de slam é entoado quase em uníssono pela plateia, slammer e jurados. “Ninguém faz um slam sozinho. Ele depende de um público, dessa união de grupo, desse espírito, porque todo mundo tem que estar ali pelo mesmo objetivo, que é fazer poesia, divulgar a arte, viver esse momento”. No grupo de Ângelo, “a poesia salva, Slam Estrela D’Alva”.

Legenda: É tradição nas competições de slam que o público e os poetas envolvidos reajam às notas com duas expressões. Pontuações menores que 10 recebem um “CREDO!”. Já quando a nota máxima é levantada pelo jurado, a reação é de “UOU!” / Foto: Marcos Albuquerque

Um grafite com palavras

Nos espaços urbanos, as intervenções artísticas pintadas em muros, paredes e locais afins esboçam nos ambientes as narrativas da cidade, anseios, peças artísticas e questões que perpassam a realidade. Essa pluralidade de significações, presente no grafite e que ganha forma através de traços e tintas, é também uma das principais características do slam, onde há um forte apelo à função de crítica social, mas com as palavras, a entonação e os gestuais.

Realizado em diferentes espaços públicos, onde corpos distintos, carregados de múltiplas particularidades, podem compartilhar seus sentimentos, medos, ideias e lutas, a palavra dita nas poesias faz com que temas latentes na vida das pessoas ganhem materialidade sonora. Ângelo ainda afirma que “num país como o Brasil, que enfrenta tantas dificuldades e problemas como racismo, machismo, transfobia, homofobia, questões de renda, todos esses temas vêm à tona porque é isso que as pessoas enfrentam”.

Assim como o grafite, o slam se apropria desses espaços de circulação efêmeros para propor uma quebra da dinâmica tradicional do que é arte, do que se entende tradicionalmente como poesia, de quem, onde e como se faz literatura. “O slam faz com que a gente possa perceber que a poesia está em todas, nas tantas maneiras de usar a língua, de usar o corpo. [Mostra] que dá para fazer poesia sem usar a norma padrão. Fazer poesia falando o seu próprio dialeto”.

Pela apropriação e exposição da palavra publicamente, o slam busca tocar em feridas abertas pela sociedade que deixam de ser evidenciadas em outros contextos, retirando o espectador de seu conforto. “Ele toca justamente nos tópicos que ninguém quer olhar, nos tópicos que ninguém quer falar ou quando quer falar, fala de um jeito diferente, em uma linguagem diferente”.

Legenda: Além de acompanhar as batalhas como um espectador, o público do slam se vê representado nas vozes dos poetas que rimam sobre questões que perpassam as vivências de diferentes realidades sociais / Foto: Marcos Albuquerque

Ângelo Perusso, além de organizador do grupo Estrela D’Alva, é também poeta e slammer. “A mira do muro” é uma das muitas poesias que já declarou em batalhas de slam. Ela exterioriza questões que ele mesmo denomina como “esquecidas pela sociedade”. Um trecho:

[…]

E é nesse momento que eu vejo

Que de cima do muro eles pulam

Aqueles que se calaram

Agora, que os cacos de vidro

Que protegem o rico lado

Cortam seus pés

Eles caem entre nós

Nós, que pedimos ajuda

Que fomos a luta

Gritamos, choramos, fizemos

E eles por não escolherem

Esfomearam, mataram, feriram

E agora eu peço decidam

Entre quem acabou com a fome

E quem a trouxe de volta

Em cima do muro tem cacos de vidro

Decidam!

Do nosso lado do muro

Há pratos vazios

Famílias em pranto

Universidade pobre

Há frio, choro, descaso

No outro lado há promessas

De um mundo melhor

Que só são reais

Pra quem colocou os cacos de vidro no muro

E furou seus pés

Por isso eu peço:

Decidam de uma vez

E vejam bem o que vão fazer.

[…]

Estudante de Letras da UFSC e organizador do Slam Estrela d’Alva, Ângelo Perusso abriu última edição de batalha de poesia realizada na universidade com texto autoral, no dia 5 de julho / Foto: Marcos Albuquerque

Slam no Brasil e em Santa Catarina

Aqui no Brasil, o movimento ganhou forma pela primeira vez através da artista Roberta Estrela D’ Alva, com a criação do Zap, Zona Autônoma da Palavra, em São Paulo, no ano de 2008. O primeiro dos grupos brasileiros serviu como inspiração para os que se seguiram.

O slam do qual Ângelo faz parte carrega no nome a história de Roberta, que se encantou com a batalha de palavras durante uma viagem aos Estados Unidos. Aqui em Florianópolis, o Estrela D’alva perpetua a cultura trazida por ela ao lado de mais um grupo — o slam Cruz e Sousa –, com edições que acontecem geralmente uma vez por mês.

O desejo de quem participa das batalhas é que o movimento ganhe mais adeptos na cidade, chegando aos diferentes bairros. “Nós temos dois grupos concentrados na região da Trindade, Carvoeira. Nenhum no Norte, nenhum no Sul. A gente quer levar pelo menos para todas as regiões de Floripa e daí, se Deus quiser, continuar expandindo, porque é um movimento muito legal”.

Em Santa Catarina, o slam está presente em pelo menos outras duas cidades, de forma concentrada na região norte do estado. Em Joinville, o grupo leva o mesmo nome da cidade. Em Balneário, Itajaí, e Navegantes, as poesias ecoam por meio da voz de integrantes do grupo “Para Antonieta”. Os organizadores do grupo presente nas três cidades do Litoral Norte mostram que há várias formas de se fazer slam. “Aqui no Brasil ele ocorre majoritariamente nos espaços públicos, na rua, se aproximando dessa cultura do hip hop mesmo,de fazer enquanto uma manifestação social, de movimentação social. Já nos Estados Unidos e na Europa, ele se dá em bares, em teatros”, cenário criticado pela equipe do Slam Cruz e Sousa. “A opção aqui pela não utilização de espaços privados para realização é uma tentativa de não colocar o slam como algo comercial, mas, sim, algo gratuito, voltado, principalmente, para a comunidade, arte de rua e para todes que tiverem interesse”, ressalta.

Alcançar novos públicos ainda é um desafio em certos terrenos, onde o movimento que nasceu na periferia ainda é visto com maus olhos, semelhante ao que aconteceu com expressões culturais como o samba, o funk, o hip hop. Ainda assim, participantes acreditam que o slam tem potencial para chegar a novos locais e impactar outras realidades, impulsionado, sobretudo, pelo cenário atual do país.

“O nosso contexto nos pede, grita que a gente fale sobre temas diversos. O slam tem que ser olhado como um movimento potente de poesia que acontece todos os dias em algum lugar do país e que toca muitos corações, influencia a vida de muita gente. Uma legítima e poderosa forma de arte, cultura e literatura”, enfatiza Ângelo.

Na universidade, o slam vem ganhando espaço aos poucos, a exemplo do que já aconteceu antes com movimentos poéticos que demoraram a ser aceitos pela Academia, como a poesia concreta dos anos 1950 e a poesia marginal, dos anos 1970. O Slam Estrela D’Alva, através do projeto de extensão do Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) vem realizando edições mensais no hall de entrada do Centro de Comunicação e Expressão da universidade, espaço conhecido como Varandão do CCE. Embora o público das competições de poesias e o interesse cresçam cada vez mais entre os estudantes, a produção literária do slam ainda enfrenta resistências dentro dos currículos acadêmicos oficiais.

“O ser humano é naturalmente poesia”

A equipe organizadora do slam Cruz e Sousa descreve o momento de fazer poesia como “o seu momento”. É onde podem se expressar, usar o corpo e a voz para sentir e falar. “Tem algumas poesias que eu reflito, que eu penso numa temática. Tem poesias que eu só sinto e eu transmito através da minha escrita. Eu elaboro no sentido de brincar com uma palavra, de brincar com uma métrica, de brincar com uma rima, com uma figura de linguagem”.

Ângelo vê o slam como algo especial. Estudante de Letras na UFSC, teve a arte e a cultura como um divisor de águas na sua vida e soube, pela poesia, que a literatura podia ser mais do que um texto, que podia ser bonita. “O que faz o poema estar vivo é o fato de que você está ali falando ele, ele não está escrito no papel. A poesia existe no mundo. Ela é palpável. É a matéria-prima do poema e ela está nas pessoas, em todas elas e está nos filmes, está na vida, está na observação, está nos sentimentos”.

Sem acompanhamento musical ou o uso de adereços, os poetas do slam precisam garantir que suas palavras cheguem ao público da forma desejada através de uma boa performance, combinando voz e corpo / Foto: Marcos Albuquerque

O slam é um espaço onde os sentimos das pessoas vêm à tona. Onde se fala o que quer, ouvem-se rimas variadas, que assumem o papel de representatividade através da arte. Ângelo aponta que “a principal razão do slam ter tido tanto crescimento ao redor do mundo, é porque o ser humano é naturalmente poeta. O ser humano é naturalmente poesia. É ter essa liberdade de ser quem se é”.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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