Sobrecarga e exclusão versus Economia e praticidade: as facetas da justiça trabalhista na pandemia
Audiências virtuais contam com as facilidades da internet mas sobrecarregam servidores com novas rotinas e público tem problemas para manter-se conectado
Por Sofia Zluhan
Pela impossibilidade do Poder Judiciário de se ausentar em meio a uma crise de saúde pública, passaram a ser realizadas audiências virtuais na Justiça do Trabalho catarinense, e, com elas, novas práticas foram adicionadas às rotinas de servidores, juízes e advogados. “Quem não viveu, não tem nem noção. Eu cheguei a dizer que era um tsunami que foi arrastando tudo”, relatou a servidora Vanessa Simon sobre a carga de serviço no início das sessões telepresenciais. O repentino acréscimo de atividades fez com que muitos funcionários da Justiça ficassem sobrecarregados com o teletrabalho, além de serem apresentados ao desafio de aprender a utilizar a plataforma de chamadas de vídeo Google Meet em aproximadamente uma semana.
Vanessa, assistente de audiências da 1a Vara do Trabalho de Rio do Sul, fala que nunca trabalhou tão exaustivamente em 22 anos como servidora. “Foi muito estresse quando começaram as audiências telepresenciais porque a carga de trabalho era muito grande, pelo menos pra mim, e tinha muita coisa nova pra aprender”, afirma. Para ela, as sessões exigem muito e conta que “as audiências têm um conflito, tem uma troca de energia. Às vezes positivas, mas geralmente negativas, e isso também te afeta como servidor”. Apesar de estar passando mais horas em frente ao computador, ter sofrido alterações de peso com a mudança na rotina e apresentar insônia, Vanessa ainda prefere o teletrabalho por economizar tempo do deslocamento, de 12 km, do município de Laurentino até o TRT e por poder tratar melhor a sua Lesão por Esforço Repetitivo (LER), já que digita menos com as audiências sendo gravadas. Ela diz que, mesmo antes da pandemia, já cumpria uma jornada mais longa do que deveria. “Desde meu primeiro dia de trabalho, eu não fiz minhas sete horas que fui contratada pra fazer. E olha que eu fiz concurso”, revela Vanessa.
A servidora também afirma que tem dificuldades em separar seu horário de trabalho em casa e relata que, para ajudar a organizar sua rotina, programa o celular para despertar no fim do expediente. “Eu tenho um alarme que toca às sete e meia da noite pra lembrar que preciso sair do computador. Então, sete e meia toca o despertador, só que às vezes, quando eu vejo, já é oito e meia, nove horas”, diz a assistente de audiências. No entanto, mesmo com os obstáculos, Vanessa Simon se esforça para atender todas as demandas do novo modelo. “Nossa ideia é entregar o serviço da melhor forma pro nosso jurisdicionado. Fica parecendo meio brega, mas é basicamente isso que a gente tem que fazer. Eles são nossos ‘clientes’”, conclui.
A juíza da 5a Vara do Trabalho de Florianópolis, Desirre Bollmann, acredita que a grande vantagem das audiências virtuais é a continuidade da presença efetiva do Poder Judiciário trabalhista na vida dos trabalhadores e dos empregadores em Santa Catarina. “A gente está fazendo o possível e o impossível para continuar prestando a jurisdição para as pessoas, para que elas não se sintam deixadas ou abandonadas. Assim, elas podem continuar reclamando seus direitos que a gente dá um jeito de, mesmo na pandemia, conseguir assegurar às pessoas seus direitos”, declara a juíza. Segundo ela, os processos seguem em aproximadamente 70% da velocidade habitual, o que “não é o mesmo ritmo de trabalho normal, mas é bom considerando que estamos numa pandemia e acho muito positivo o fato de estarmos conseguindo”.
Com base em números da Gestão Estratégica do Tribunal, de janeiro a setembro deste ano, foram julgados 70.633 processos em 1º e 2º graus. No mesmo período do ano anterior este número foi de 87.145. A diferença se dá pela suspensão das atividades entre 18 de março e 30 de abril devido ao início da pandemia da Covid-19. A quantidade de audiências realizadas neste ano também sofreu queda pelo mesmo motivo, mas ainda assim, o alto empenho de servidores e juízes resultou em aproximadamente 27 mil audiências por videoconferência pelas 60 varas catarinenses, de 16 de março a 13 de outubro.
Exclusão Digital
As dificuldades técnicas que permeiam a utilização da nova ferramenta são outra barreira que a Justiça do Trabalho vem enfrentando. Para acessar uma sessão telepresencial é necessário que os envolvidos tenham internet com boa velocidade, um computador ou celular, uma realidade que não é a de toda a população. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios de 2018, 31% dos domicílios do sul do Brasil não possuem acesso à internet e o alto custo dos serviços é o principal motivo.
A maior preocupação da juíza da 5a Vara do Trabalho é em relação ao acesso dos autores das ações, afinal “é um trabalhador, às vezes um pedreiro, contador, vendedor que nem sempre tem ‘aquele’ acesso ao computador, celular e à internet, que é uma coisa paga no Brasil. Existe uma exclusão digital muito grande”, argumenta Desirre.
Para o advogado Fernando Fávere, diretor-geral da Fávere Advogados Associados, é necessário que o Judiciário tenha bom senso quanto à realidade do acesso dos trabalhadores à internet. “Vou dar um exemplo que aconteceu comigo: o cidadão tinha um telefone pré-pago com quinze ou vinte reais de crédito e precisava ficar conectado [no Google Meet] para sua audiência virtual. Ele estava na casa dele e eu no escritório”, conta. A espera durou quase duas horas e nesse meio tempo acabaram os créditos pré-pagos de seu cliente e ele não teve mais acesso. “Então, a audiência foi feita sem o trabalhador. Eu expliquei isso pro juiz, ele entendeu e a gente seguiu o processo. O Judiciário precisa ter bom senso”, conclui o advogado.
No entanto, mesmo com as barreiras do mundo digital, há um grande interesse das pessoas em participarem das sessões virtuais, como explica a juíza Desirre. “Os trabalhadores com melhores condições econômicas e que podem esperar mais, às vezes preferem adiar o processo”, e completa afirmando que “as pessoas que estão com mais necessidades financeiras imediatas e que acham que têm condições de acessar a audiência, querem fazer telepresenciais para pelo menos conversar e ver se não conseguem resolver o problema por um acordo”.
O jovem garçom Pablo Moisés, 23 anos, foi um dos trabalhadores que pôde fazer sessão a distância e ficou satisfeito com o novo modelo. “Da minha parte foi tudo tranquilo. Tanto com relação à internet, que foi de boa, e o celular também”, relata. “Melhor do que toda a função de translado, ir até lá e acordar mais cedo. Foi bem melhor”, completa Pablo. O corretor de imóveis Nathan Ruiz Barbosa, 36 anos, também teve uma boa experiência com o novo sistema, mas diz que em sua sala de espera virtual percebeu que um senhor teve dificuldade de acessar o link da chamada de vídeo da audiência. “Ele estava chamando a filha dele para poder conseguir entrar, aí ele voltava pra sala de espera porque caía e o escrivão pedia pra clicar no link de novo. Mas é assim, é questão de educação, até pra gente que trabalha com isso todo dia. Quando eu comecei a fazer também apanhei um pouquinho”.
A juíza Desirree Bollmann relata como essas pequenas falhas técnicas que passam a integrar o dia a dia de quem trabalha na Justiça Trabalhista podem resultar em descontração no ambiente virtual. “Às vezes, a gente brinca dizendo que as audiências telepresenciais parecem sessões espíritas. A gente fica falando ‘Tá ouvindo? Você está aí, doutor? Doutor, responda. Você está presente?’”, fala bem humorada.
Vantagens e desvantagens
Durante as sessões, é comum que o juiz faça perguntas às partes e testemunhas para garantir a confiabilidade das informações que estão sendo apresentadas na discussão. O responsável pela audiência pode pedir para que os envolvidos mantenham câmera e microfone abertos o tempo inteiro, apresentem seus documentos e até mesmo mostrem o local onde estão e se estão sozinhos. Mas apesar dessas medidas, ainda há certa insegurança por parte de advogados quanto às audiências telepresenciais.
A ausência do juiz no mesmo ambiente físico das partes e das testemunhas, somada à limitação do vídeo, pode camuflar sinais de nervosismo de quem presta depoimento como tremores, suor e pernas inquietas. Fávere é um defensor das sessões virtuais e acredita que o Poder Judiciário pode se beneficiar dela mesmo após a pandemia pela economia de tempo e dinheiro envolvido, no entanto, pensa que audiências mais complexas como as de instrução — que envolvem produção de provas –, devem ser realizadas presencialmente. “Quando a gente está instruindo um processo, analisa quem está falando, os movimentos”, e exemplifica, “a gente percebe os gestos, o pé que está balançando, se está nervoso, a gente ‘aperta’ para ver se está mentindo. A falta disso esfria muito a instrução processual”. O advogado gostaria que as audiências mais simples pudessem continuar como telepresencial e conclui que “a parte do tribunal eu não vejo problema de continuar por telepresencial, mas as audiências de instrução a gente tem que ver uma maneira de fazer isso pessoalmente”.
Ajustes econômicos
Antes mesmo da pandemia, estava prevista a entrega de imóveis alugados pelo TRT-SC, pois havia a necessidade de contenção de gastos, já que as restrições orçamentárias impostas desde 2016 agravaram a situação financeira da instituição. Assim, no segundo semestre de 2020, o TRT-SC entregou dois de seus prédios alugados na capital catarinense. O primeiro, restituído em julho, era alugado pelo valor de R$ 3,4 milhões anuais. Pelos últimos sete anos, o imóvel de 15 andares localizado no centro de Florianópolis acomodou gabinetes de 18 desembargadores e algumas unidades de apoio ao Judiciário. A economia total que a instituição terá com a entrega deste edifício é de cerca de R$ 5 milhões anuais — incluindo as despesas que envolvem a ocupação do prédio — o que representa 15% da despesa de custeio prevista para 2020.
O segundo imóvel, este na região continental da cidade, foi entregue em 16 de outubro e armazenava o Arquivo-Geral do Tribunal. Os documentos foram todos transferidos para uma propriedade da União onde funciona o Almoxarifado do TRT. Com a devolução do prédio, a instituição economizará R$ 406,1 mil por ano, somando todos os gastos que envolvidos na utilização do local.
A implementação do processo eletrônico e do trabalho distância também foram determinantes para essa mudança. “O trabalho era exclusivamente presencial, executado majoritariamente com processos físicos, o que tornava os ambientes de trabalho apertados e pouco produtivos. A Justiça do Trabalho mudou, e precisamos acompanhar essa transformação em todos os seus aspectos”, afirma a presidente do TRT de Santa Catarina, desembargadora Lourdes Leiria.
Com a entrega do primeiro edifício, os gabinetes dos desembargadores foram realocados para prédio-sede do TRT-SC em salas com medidas padronizadas que ocupam um quarto do espaço do andar. Devido às mudanças no modelo de trabalho do judiciário, o Tribunal também readequou seu espaço na sede para incluir um ambiente de coworking e deve realizar a instalação de equipamentos a serem utilizados em audiências telepresenciais ou mistas — quando uma parte dos atores do processo participa a distância e a outra parte, presencialmente. “Descobrimos que diversos atos podem ser realizados à distância como reuniões, sessões e diversos tipos de audiência, o que gerará inegável economia de tempo e dinheiro no futuro”, pondera a presidente da instituição.
Retorno presencial
O Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina (TRT-SC) já deu início ao retorno gradual das atividades presenciais, mas ainda não há data definida para a realização das audiências de forma presencial. No entanto, uma decisão do Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pode alterar os planos de retomada. Através de uma proposta do ministro Luiz Fux, o CNJ decidiu que Tribunais de Justiça poderão continuar com sessões de videoconferência mesmo após a fim da pandemia. De acordo com Fux, “os tempos recentes cooperaram para percebermos que os avanços tecnológicos já nos ofereciam bem mais do que imaginávamos. O fato é que a tradição nos fazia resistir ao aproveitamento de todo esse potencial. Durante a pandemia, felizmente a tradição cedeu à inafastabilidade da jurisdição e fomos obrigados a nos adaptar à nova realidade”.
A votação que aconteceu em 22 de setembro deu um prazo de noventa dias para que os próprios tribunais apresentem a plataforma a ser utilizada e regulamentem a atividade. Até 19 de dezembro, portarias dos tribunais serão divulgadas sobre continuidade das videochamadas na Justiça, inclusive na trabalhista.