Sociedade da pressa: como áudios e vídeos acelerados tornaram-se regra

O ritmo acelerado da internet vem trazendo altos ganhos para as plataformas e prejuízos para a saúde e cotidiano dos usuários

Zero
8 min readSep 14, 2021

Em 2021, navegar na internet é sinônimo de acelerar. As principais plataformas oferecem funcionalidades para que os usuários possam consumir cada vez mais conteúdo em menos tempo. O processo acontece em diversas mídias: áudios do Whatsapp, podcasts no Spotify e vídeo-aulas no Youtube podem ser vistos até duas vezes mais rápido. Até a plataforma de streaming Netflix, conhecida por conteúdos de entretenimento, aderiu oferecendo recursos para que filmes e séries sejam assistidos em menos tempo, enquanto redes sociais como Tik Tok e Kwai ganharam público global com vídeos de até 30 segundos.

As dinâmicas de aceleração e de conteúdos curtos consolidaram-se como tendências para garantir a audiência na internet atual, onde a cada minuto, 347 mil novos Stories são postados no Instagram, 147 mil fotos são publicadas no Facebook e 41 milhões de mensagens são trocadas no WhatsApp, segundo a empresa de análise de dados Domo.

Para muitas pessoas, acelerar é o único jeito de consumir conteúdos. O médico psiquiatra e professor da Universidade de São Paulo (USP), Guilherme Spadini, aponta que esse comportamento é cada vez mais comum, mas que deve ser tratado com atenção. “O consumo constante de conteúdo sobrecarrega nosso cérebro, uma vez que biologicamente não temos capacidade neural para lidar com tantos estímulos, principalmente visuais, durante muitas horas por dia e sem intervalos”. Entretanto, de acordo com o estudo Digital in Brazil 2021, realizado pela HootSuite, o brasileiro passa, em média, sete horas por dia conectado à internet, sendo o Brasil o terceiro país no mundo que mais utiliza redes sociais, atrás apenas das Filipinas e da Colômbia.

Fonte: Visual Captalist

Segundo Spadini, esse contexto também é responsável por uma série de problemas como a desinformação e a propagação de notícias falsas online. Ao mesmo tempo, a dinâmica das redes sociais influencia a química cerebral, pois cada vez que alguém recebe uma mensagem ou uma curtida em uma foto, o cérebro libera o neurotransmissor dopamina, responsável pela sensação de bem-estar imediato.

De acordo com Spadini, a dopamina tem uma função clara no organismo: garantir a motivação por meio da sensação de recompensa. “Cada vez que completamos uma tarefa, mordemos um pedaço de bolo ou somos estimulados de alguma forma, ela garante a sensação de bem-estar: a recompensa pela atividade agradável. O contrário disso são os hormônios como o cortisol, produzidos em situações de estresse. As redes sociais exploram o circuito cortisol-dopamina.”

Áudios acelerados

Um dos maiores indicadores da rapidez do cotidiano digital foi o anúncio feito pelo Whatsapp em maio de 2021, apresentado a nova funcionalidade de aceleração de áudio do aplicativo, que permite que as mensagens sejam ouvidas até duas vezes mais rápido.

O Whatsapp é o aplicativo de mensagens mais popular no Brasil, e pertence aos mesmos donos de outras grandes plataformas como Facebook, Instagram e Messenger. São cerca de 120 milhões de usuários brasileiros hoje, sendo que 92% destes acessam o aplicativo todos os dias, de acordo com dados divulgados pelo próprio Whatsapp.

Com a pandemia, seu uso se intensificou, já que, além de ser usado para comunicação com a família e amigos, serve também como ferramenta de trabalho e para entretenimento. Um estudo de 2020, realizado pelo Núcleo de Marketing e Consumer Insights da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), constatou que 97% dos entrevistados relataram ter aumentado o tempo gasto no Whatsapp durante o período de isolamento social.

O áudio é de fácil uso para pessoas com dificuldades com escrita ou uso de tecnologias, pois não é preciso digitar, basta pressionar a tela para iniciar e pausar a gravação. Em uma pesquisa realizada pela revista Exame em 2020, 56% dos entrevistados afirmaram gostar ou gostar muito de enviar áudios, enquanto 57% afirmaram gostar muito de recebê-los, no lugar de mensagens de texto.

Para a engenheira civil Joana Filipe, de 27 anos, o recurso de aceleração otimizou o uso do aplicativo.

“No meu trabalho falo com muitos fornecedores, que têm o costume de enviar áudios para expressar melhor alguma situação. Acelerando os áudios consegui ganhar tempo, e resolver algumas necessidades mais rápido”.

A engenheira relata que usa a ferramenta apenas para temas relacionados a trabalho, “quando um amigo me envia um áudio longo faço questão de ouvir no modo normal, pra não perder detalhes”,

Já o gerente administrativo Jean Oliveira, 46 anos, sentiu o impacto do novo recurso para além da vida online. “Me empolguei de início e usei para todas as mensagens de áudio, aí quando vi as conversas ao vivo ou por reunião em ritmo normal, parecem muito entediantes e difíceis de manter a atenção. A impressão é de que a mente se acostumou com a rapidez.”

Precursores da aceleração

Antes do Whatsapp oferecer recursos para conteúdo acelerado, outros serviços já o faziam. O aplicativo seguiu a tendência que parece ser inevitável. No YouTube, por exemplo, é possível encontrar comentários dizendo que determinada música fica “melhor e mais animada” em velocidade 1,75 — ou seja, 75% mais rápida. A Netflix, em julho do ano passado, além da aceleração passou a permitir que usuários “pulem” cenas de séries e filmes, indo direto para as partes mais emocionantes do enredo.

Apesar de não existirem estatísticas abertas sobre o volume de usuários que optam por consumir conteúdo acelerado, a doutoranda e professora de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Anna Bentes aponta que as ações das plataformas indicam uma tendência.

“Cada vez mais as plataformas vêm dando destaque a ferramentas e formatos para conteúdos acelerados, o que demonstra uma tendência, uma vez que essas companhias fazem um monitoramento constante dos usuários, entendendo e criando demandas.”

Atenção como moeda

Estar atento e concentrado é considerado pela Ciência um recurso individual limitado. Ou seja, biologicamente, os seres humanos só conseguem estar atentos a um determinado número de objetos, por um período finito de tempo. As redes sociais funcionam na direção contrária, oferecendo conteúdo infinito para os usuários.

O conceito de “economia da atenção” foi criado pelo psicólogo e ganhador do Nobel Herbert A. Simon, que entendeu que a atenção era o “gargalo do pensamento humano” que limita tanto o que podemos perceber em ambientes estimulantes, quanto o que podemos fazer.

Essa temática vem sendo amplamente debatida desde a década de 1990. Segundo Bentes, é possível relacionar a economia da atenção com a história da mídia e da publicidade. A pesquisadora aponta que “esse modelo econômico pode ser observado desde o século 19, a partir do momento em que as companhias de mídia passaram a ganhar dinheiro não apenas com a venda dos produtos, como assinaturas de jornais e revistas, mas, sim, comercializando a atenção dos leitores direcionada para as propagandas presentes no conteúdo”.

De acordo com um estudo conduzido pela Microsoft e divulgado pela revista Time, as pessoas perdem a concentração após somente oito segundos, em média. É menos tempo do que diversas espécies de peixes precisam para se distrair. Em 2000, o tempo médio de atenção era de 12 segundos. A diminuição do período de atenção ao longo dos anos é um possível sinal dos efeitos da internet no cérebro.

As plataformas disputam a atenção dos usuários, que é monetizada através de anúncios cada vez mais direcionados pela inteligência artificial, que, para isso, analisa um grande volume de dados, a fim de oferecer aos usuários propagandas personalizadas. Esse refinamento agrega valor ao preço dos anúncios, ao entregá-los para usuários com maior potencial de consumo daquele produto ou serviço.

Dessa forma, algumas das principais empresas do mundo, como Facebook e Google, têm na publicidade sua principal fonte de receita. Em 2020, por exemplo, o Facebook gerou mais de US$ 85 bilhões em receita, equivalente a quase 1 trilhão de reais, com aproximadamente 90% deste volume em publicidade.

Damos conta de tudo?

Os conteúdos aceleram, na mesma medida que cresce a cobrança por produtividade, seja no trabalho ou nas tarefas pessoais. De acordo com a pesquisadora Anna, essa dinâmica está relacionada com a produção de subjetividade neoliberal, que faz o indivíduo crer que é responsável pelo seu sucesso ou fracasso, decorrentes da forma como sua atenção foi administrada. As empresas passaram a exigir que seus funcionários estejam no mesmo ritmo da internet, resolvendo uma quantidade maior de tarefas em cada vez menos tempo, além de estarem disponíveis 24 horas por dia para as demandas da empresa. Não é à toa que no mundo corporativo cada vez mais pessoas fazem uso de psicoestimulantes que produzem a ilusão de melhorar a produtividade.

Essa cobrança, no entanto, é perigosa para a saúde dos trabalhadores, que relatam cansaço, ansiedade e outros sintomas ligados à síndrome de Burnout, definida como a condição de esgotamento mental geralmente ocasionada pelo trabalho. Foi o que aconteceu com a contadora Claudia Guimarães, de 33 anos. “Além da cobrança por produtividade no trabalho, entrei num ciclo de autocobrança, em que eu nunca me considerava boa o bastante pra nada. Passei a trabalhar durante a madrugada para adiantar tarefas do dia seguinte.”

Por conta da privação de sono e do estresse, Claudia passou a ter crises de enxaqueca constantes, e precisou ser afastada do trabalho por transtorno de ansiedade generalizada. Ela relata que “uma das recomendações do tratamento foi diminuir drasticamente o uso de celular, evitando o consumo intenso de conteúdos. No começo foi super difícil porque eu queria automaticamente ocupar a cabeça com algo, mesmo sentindo fisicamente o cansaço de estar online o tempo inteiro”.

O processo pelo qual Claudia está passando é conhecido como “detox digital” — desintoxicação digital –, quando alguém para ou restringe bastante o uso da internet e, especialmente, o das redes sociais. O psiquiatra Guilherme Spadini defende que essa é uma forma importante de se reconectar com a vida fora das telas. “Durante o processo de pausa no uso é possível identificar comportamentos como o FOMO, (do inglês fear of missing out, ou seja, medo de estar perdendo algo)”. A condição é definida como o sentimento de angústia que as pessoas sentem por estarem offline e deixando de ver as atualizações publicadas na internet.

É possível desacelerar ?

O psicólogo Guilherme Spadini recomenda, para desacelerar, que o primeiro passo seja fazer uma coisa de cada vez, evitando usar o celular enquanto faz outras atividades, como durante uma conversa ou enquanto assiste a um filme.

Também é importante evitar o uso de celular logo após acordar e antes de ir dormir, permitindo que o corpo adormeça e desperte sem excesso de estímulos. A longo prazo, é importante definir ao menos um dia da semana para deixar o celular de lado, de preferência ficando fora das redes sociais.

Outra abordagem é a do minimalismo digital, que prevê o uso das redes, mas reduzindo danos ao filtrar o que é relevante e o que é excessivo no consumo de conteúdo. As principais práticas nesse sentido são seguir menos pessoas nas redes sociais, além de limitar o tempo usado nesses aplicativo e programar atividades offline, como leitura e atividades físicas.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC