Tainha em rede
Nova portaria obriga pescadores artesanais a registrar pesca diária em plataforma digital
O dia na praia do Pântano do Sul, em Florianópolis, começa cedo. Durante o período da pesca artesanal da tainha, seu Nilton Severo da Costa, de 79 anos, levanta antes mesmo do sol nascer para acompanhar o arrasto de praia, como faz desde criança. Leva debaixo do braço um caderno, protegido do vento e da água, para anotar tudo. Se tem lanço, anota à mão a quantidade de peixe, o dia e a hora, enquanto divide a produção entre os camaradas de rancho. Com o pôr do sol, seu Nilton volta para casa com o peixe na mão e o caderno cheio de informações. Tudo o que anotou analogicamente, agora precisa ser digitalizado e registrado no computador.
O arrasto de praia é uma atividade tradicional em todo litoral catarinense
Desde a publicação da Portaria SAP/Mapa nº 617, de 8 de março de 2022, que traz o ordenamento, registro e monitoramento da pesca de arrasto em Santa Catarina, seu Nilton e os demais pescadores artesanais de tainha precisam registrar toda a produção do seu trabalho. “No geral, é difícil porque tem que ser diário. Não precisa ser hoje ou amanhã, mas não pode deixar acumular”, ele explica. A partir deste ano e pelos próximos cinco, equivalentes ao período de vigência da licença de pesca, esse processo é obrigatório e completamente digital.
O formulário oficial é disponibilizado no SisTainha, uma plataforma do governo federal administrada pela Secretaria de Aquicultura e Pesca, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SAP/Mapa).
Neste rancho do Pântano do Sul, os pescadores e os donos de canoa estão organizados como uma cooperativa. “Há um rodízio entre todos nós e a produção é dividida com os associados”, explica Seu Nilton, proprietário de uma das embarcações. De acordo com o regulamento da portaria, é o dono que precisa documentar toda a atividade, não necessariamente o pescador. Por esse motivo, também, seu Nilton está sempre na praia acompanhando o dia de trabalho de perto.
Se o mapa de produção não for enviado, a autorização pode ser revogada por pelo menos 30 dias a partir da concessão da licença. Tradicionalmente, a temporada de pesca da tainha dura cerca de 90 dias, entre 1º de maio e 31 de julho. Sendo assim, caso seja detectada alguma irregularidade, o pescador fica proibido de realizar a atividade por pelo menos um terço do período em que a pesca é liberada.
Mas nem todos os proprietários puderam aprender a utilizar a plataforma em tempo hábil. “Recebemos uma orientação de apenas 15 minutos”, comenta seu Nilton sobre o treinamento promovido pela SAP/Mapa aos pescadores artesanais. “Eu diria que foi uma apresentação [da plataforma], não uma aula ou algo do tipo”, critica. Por esse motivo, ele buscou a ajuda da Colônia Z11, associação dos trabalhadores profissionais do setor artesanal da pesca, com sede no Centro de Florianópolis.
“O que nós temos feito nesse primeiro momento é acompanhar o envio das pessoas que têm procurado a nossa ajuda”, informa Amanda Nunes, consultora náutica vinculada à Z11. Apenas pescadores e donos de canoa associados à Colônia puderam receber o auxílio da associação. Logo que o sistema foi implementado, Amanda e a Z11 mobilizaram alguns pescadores para produzir um ofício, encaminhado para o SAP/Mapa, com as principais dificuldades trazidas pelos pescadores.
A condição financeira, o nível de escolaridade geral e o nível de conhecimento de informática aquém do necessário para a produção dos mapas de produção são os pontos centrais do texto. “São pescadores tradicionais, comunidade tradicional, estas exigências não condizem com a realidade dessas pessoas”, aponta o documento. Para conseguir enviar um mapa de produção, o dono da embarcação precisa ter um computador ou um celular e acesso à internet, além do registro de todas as informações técnicas da pesca e do veículo utilizado.
O rancho José Lopes, na praia do Campeche, conta hoje com 30 pescadores e pelo menos cinco canoas
Informações como horário do lanço, latitude e longitude do local onde o cerco foi feito na praia, a quantidade e as espécies dos peixes capturados com a rede, as dimensões da rede utilizada e outros detalhes do lanço são algumas das exigências do documento. “Hoje eu tenho três canoas e todo dia preciso fazer um mapa de produção para cada uma delas. Tem gente que tem seis, oito e que vai ter que fazer um por um também”, comenta seu Claudinei José Lopes, de 53 anos, pescador da praia do Campeche.
Nei, como é mais conhecido, pesca tainha há mais de 25 anos. Aprendeu com o pai ali mesmo pelo Rancho José da Cunha. Hoje, é ele quem coordena e auxilia os camaradas de lanço no cerco da tainha. Mas para responder e enviar o relatório, ele precisa pedir ajuda de fora. “Meu filho que emitiu o mapa de produção de todas as minhas três canoas no mês passado, toda a produção de maio”, explica.
Na praia do Campeche, o mar agitado muitas vezes impede que as canoas sejam levadas ao mar
Mesmo sem capturar nenhum peixe ou até quando não há qualquer atividade com a embarcação, todo dono de canoa precisa realizar um novo registro no site. Caso haja a pesca, o formulário fica mais complexo. “Se eu não pescar, clico no X e morre ali. Mas se eu pescar, preciso dizer que sim [no site] e aí abre aquele textão todo para ser preenchido”, detalha seu Nei, falando rápido o suficiente para caber todas as exigências do documento em um minuto. Além das informações sobre a pesca em si, todos os mapas de produção exigem, no mínimo, documentos de identificação do responsável pela canoa e da própria embarcação, como: nome e RG do barco, além da identificação da Marinha.
Segundo a representante da Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Estado de Santa Catarina, Karinne Hoffmann, essas informações são utilizadas, principalmente, para o monitoramento da captura da espécie. Desde 2013, a tainha é classificada como animal ameaçado de extinção pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Foi realizado treinamento pelo técnico responsável pelo monitoramento dos mapas nas principais colônias e entidades representativas [do estado], mas não atingiu todos os pescadores”, esclarece Karine. No entanto, os pescadores não acharam que foi suficiente.
Cerco ou arrasto
Com o objetivo de preservação da tainha, a portaria também trouxe novas exigências à toda cultura da pesca de arrasto em Santa Catarina. O ato normativo, neste ano, substitui a autorização de pesca lançada anualmente, como costumava acontecer, com todas as especificidades para a liberação da pesca de cerco de praia.
A ausência de um documento específico para essa modalidade gerou confusão; a primeira está no nome. “Quando nós, pescadores, falamos de arrasto de praia, o que vem na nossa mente é a pesca da tainha; que é, na verdade, o cerco de praia”, explica Nei.
Em ambas as técnicas, uma rede é colocada no mar e puxada para a areia. Pescadores, entusiastas e todo mundo que tiver sorte o suficiente para presenciar o acontecimento pode ajudar a puxar também. A diferença é tênue. Enquanto a pesca de arrasto acontece a quase um quilômetro da arrebentação, o cerco de praia, de acordo com o pescador, não vai tão distante “porque a tainha é um tipo de peixe que prefere a beira da praia”, detalha.
Apesar das semelhanças, a liberação do arrasto de praia durante qualquer momento do ano e em qualquer local, pode criar uma ameaça à pesca tradicional de cerco da tainha e à própria preservação da espécie. Segundo Nei, “se um cara vem arrastar durante a temporada da tainha, ele pega os peixes de lá [ponto do mar onde a rede é colocada] até aqui, e acaba capturando tainha também.”
Mas os resultados da pesca deste ano mostram que a nova portaria impactou pouco a produtividade da temporada da tainha em Florianópolis. “A safra tem sido boa, com cerca de 35 toneladas acumuladas só aqui no norte”, comenta seu Valdorim Alcir de Almeida, o Baga. Seu ponto de pesca fica na praia da Ponta das Canas, mas o pescador de 57 anos auxilia todos os três principais ranchos da região norte da ilha. O Tainhômetro comprova a observação do pescador.
A ferramenta desenvolvida pela Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) para contabilizar o andamento da pesca registrou mais de 140 mil tainhas pescadas em todo o município durante a temporada deste ano. O destaque ficou com a praia da Lagoinha do Norte, que contabilizou cerca de 26 mil peixes capturados só ali, seguida pela Barra da Lagoa e a Praia Brava.
Sobre a portaria 617
Publicada no início de março deste ano, a Portaria SAP/Mapa nº 617 atualizou as regras da pesca de arrasto, estabelecendo novas medidas de ordenamento, registro e monitoramento da modalidade. O novo texto determina que a pesca tradicional de arrasto pode acontecer durante todo o ano, em qualquer praia do estado. Ela também libera o uso de embarcações não motorizadas no geral, o que inclui as populares canoas de remo utilizadas pelos pescadores artesanais, mas não se limita à elas.
A atualização das regras da pesca de arrasto geraram comoção na região no início da safra, principalmente por anular a delimitação das zonas de pesca de cada rancho. O possível conflito entre pescadores de diferentes ranchos ou, ainda, entre pescadores e surfistas — que também precisam respeitar os limites das praias para a pesca da tainha — atraíram a atenção da comunidade sobre a tradição catarinense.
A intenção do Ministério não era criar confusão. Em nota, a SAP/Mapa declarou que “a norma foi desenhada para o arrasto de praia em geral, seguindo os moldes do processo de permissionamento atual, devendo obedecer a documentação exigida para qualquer frota e com a validade da autorização de cinco anos.”
Devido aos atrasos na liberação do documento, a Superintendência Federal de Agricultura de Santa Catarina liberou o uso da licença de pesca da tainha do ano anterior. De acordo com os pescadores, a permissão só é efetiva em âmbito estadual. Órgãos de fiscalização federais, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ainda exigem a licença emitida no ano de vigência. Pescadores sem o documento, ficam impossibilitados de realizar a pesca da espécie.
Como o novo processo de autorização da pesca ocorreu integralmente via meios digitais, o envio e a demora para a resposta atrasou a entrega dos documentos. Diferente dos anos anteriores, em 2022, o procedimento foi realizado pela própria SAP/Mapa, com sede em Brasília. “E se um documento tem algum erro, ele precisa ser reenviado, o que atrasa ainda mais”, explicou Amanda Nunes, da Colônia Z11.
Em nota, o SAP/Mapa declara que “a normativa busca retirar essa atividade da invisibilidade, a partir da regularização dos pescadores que tradicionalmente exercem a pesca de arrasto de praia”.
Desde 2011, pescadores se organizaram para conseguir ordenar a modalidade de pesca. “Foram 45 donos de canoa reunidos que conseguiram trazer a discussão pela regulamentação do arrasto de praia para os órgãos federais”, relata Claudinei José Lopes, o Nei. A nova portaria, elaborada desde 2018, contou com a participação da própria comunidade pesqueira do estado, mas ignorou algumas das reivindicações, dentre elas, a liberação do uso de embarcações pequenas, motorizadas, em praias de mar aberto.