Tudo começou em agosto, em Florianópolis, no Brasil

Crônica, por Beatriz Reis

e-mail: titiznanet@gmail.com

Não esperei que fosse o mais bonito romance. Porque não foi. Deixei para trás tanta coisa boa que, na real, já não era assim tão boa. Não fiz planos contrariamente ao habitual. Não delineei estratégias e optei por apenas viver o momento. Peguei a mala de porão, enchi com meia dúzia de roupas — achando que em Florianópolis, capital de Santa Catarina, Região Sul do Brasil, ia esquentar em setembro — e saí de Portugal. Abri a mente. Fugi de paixões. Somei vitórias. Sempre fui independente e autodeterminada, as circunstâncias da vida fizeram-me crescer antes do tempo. Talvez por ser assim não tenha passado pela fase nervótica e saudosista que todos os estudantes passam quando saem de casa. Talvez já estivesse a criar um novo eu.

Chamo-me Beatriz. Portuguesa, com 21 anos, estudante de Ciências da Comunicação na Universidade da Maia, Porto. Aqui no Brasil, frequento, enquanto intercambista, o curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Não sei se estou a escrever enquanto Beatriz do passado, do presente, ou a que está por vir. Aventureira, independente e sempre contente é assim que me descrevem desde pequena. Não tenho medo de arriscar. Já tive. Já passou o tempo da ansiedade antes de entrar na sala de aula ou até de andar de carrossel. Talvez o risco do passado tenha influenciado a garra do presente. E que esta garra se mantenha para o futuro. Gosto de pensar que estou preparada para o desafio. Cada hora suada no trabalho. Cada minuto passado em transportes. Cada reunião no consulado brasileiro em Portugal. Cada amizade, doravante passada, por não haver tempo de dedicação. Cada matéria estudada horas a fio sem retorno na nota. Cada paixão, agora amenizada pela distância, que outrora se sentia obsessiva.

Precisei ir atrás do sonho. Precisei sair da bolha. Do conforto. Desde sempre vivi em Portugal numa linda cidade a que chamamos de “Invicta Cidade do Porto”. As guerras de belezura com a capital, Lisboa, são constantes, mas mais que a belezura, a alma portuense fala por si. Viver no Porto é viver na bolha, habituada a uma vida de trabalho, faculdade, algum tempo para a família e o restante para os amigos. Onde o lazer vem se conquistando ao longo dos anos e a metrópole ganhando, ano após ano, multiculturalidade com o regresso do turismo.

Sair do Porto no passado significava dar o tão esperado “grito do Ipiranga”, no presente significa conquista e tranquilidade. Viver este momento faz me sentir numa vida paralela, em contrapartida, luto contra a saudade e o desapego. O início de uma das mais bonitas fases da minha vida.

A sensação de viver uma vida paralela reconforta. Agora, uma vida perfeita. Onde a paz reina e a felicidade prospera. Só com coisas boas. Ao menos, gosto de relativizar a situação. Não sinto que esteja a viver realmente neste romance perfeito. Existem cenários idílicos que realmente nunca vão ser lindos de morrer. No entanto, a sede de experienciar o novo sem pensar duas vezes… transforma-me num pequeno Tarzan, largado na selva do mundo. Afinal, estaria preparada para viver sozinha no outro lado do oceano?

Sinto-me agora como Fernando Pessoa. O Pessoa heterônimo. Álvaro de Campos, mais especificamente. Um pouco mais moderna, um tanto menos melancólica e com emoção tão ou mais acentuada. A “Mover montanhas, (a) ser outro constantemente”, a colecionar heterônimos, a desgrudar das origens em busca de um novo eu. Agora numa ilha, sem preocupações, sem a caótica agitação urbana, numa cultura diferente, com tempo, procurando o meu lado Alberto Caeiro apaixonado pelo campo e pela simplicidade da vida.

Os Brasileiros… são diferentes. Falam de forma diferente. Compreendem-me de forma diferente. Tem uma gíria fantabulástica e uma energia… contagiante. Eles têm tempo para eles, para os amigos, para estarem de bem com a vida. Vestem cores. Fogem do padrão. Fazem uma gororoba de calma com euforia. Não são sempre sérios. Não são workaholics. Não têm sempre problemas a resolver. E quando têm, relativizam e relaxam. Ou se não o fazem, transmitem-me esse mesmo sentido. Têm uma ginga de cortar a respiração. Dançam para a curtição. Curtem churrasco horas a fio. E a simpatia… Uchi… Essa nem se fala. Ao menos em Florianópolis são assim, porque sei que o Brasil é bem extenso e com regiões bem diferentes entre si.

Dois meses se passaram desde que cá cheguei e não consigo nem pensar como será voltar à vida de Portugal. Voltar à monotonia. À agitação de sempre. Voltar ao porto seguro. À cidade que me viu crescer, e que hoje me observa a voar. Quebrar a onda tranquilona que se vive na Ilha da Magia. Pelo menos, pela experiência que estou vivendo, aos olhos de intercambista, até porque sei que a realidade atual dos brasileiros não tem sido tão tranquila.

Mas foi na Ilha da Magia que encontrei o meu heterônimo do momento. Se o conceito de magia já fazia sentido pela beleza encantadora e as megafotos instagramáveis do Google, hoje sei que se tratam de mitos, superstições e lendas contadas por colonos portugueses, como forma de proteção quando se instalaram na Ilha, imigrados dos Açores, o arquipélago de onde partiram em 1747, em programadas viagens rumo à então Nossa Senhora do Desterro, onde construíram freguesias e onde ergueram a futura Ilha da Magia.

A minha vontade de aprender, de conhecer, de descobrir aumenta de dia para dia. Entre manezinhos, como são chamados os nativos, pescadores, amigos da Lagoa da Conceição, na região central, rodas de choro e jovens com garra, descobrir onde reside a mais pura simplicidade. Mais que viver os momentos, estou a coletar pessoas. Redescobri-me na humildade, na zombaria e na simpatia daqueles que me rodeiam. Acabar as aulas, atravessar o Morro da Lagoa no ônibus 845 sossega-me. Álvaro de Campos talvez ficasse incrédulo com esta minha citação, com a minha euforia pela fuga da cidade e a busca da tranquilidade naquele que agora é o meu Centrinho da Lagoa.

Sai de Portugal em agosto deste ano, sem expectativas, apenas com vontade de mudar. Vim sozinha. Sem amigos. Com uma vontade imensa de abraçar esta nova fase. Surpreendi-me. Conheci, e conheço, todos os dias, pessoas incríveis que conquistam o coração. E ironicamente muitos vieram de Portugal. Entre Portuenses e Mouros, tornamo-nos família, e talvez esta seja a mais pura obra de magia improvável que alguma vez a Ilha da Magia já assistiu. Cada um, uma autêntica personagem, como nos filmes… mas no final das contas é a simbiose perfeita de família (im)perfeita do século XXI. É sentir o conforto de casa no colo dos amigos. Amigos que já são irmãos.

Talvez este seja o romance que um dia vou escrever. Talvez esteja realmente apaixonada por esta nova vida. Ou iludida, ou fascinada também poderá ser uma opção.

Fernando Pessoa dizia que “Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se num autor da própria história”. Sigo o conselho de Pessoa. Quero poder viver a vida, sem que ela me viva a mim. Traçar a minha história, com um pleno início direcionado à heteronímia atual de Beatriz Reis: tudo começou em agosto, em Florianópolis, no Brasil.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC