Um mar de areia sobre a praia de Canasvieiras

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10 min readFeb 12, 2020

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Obras prometem triplicar o espaço existente na orla, transportando mais de 350 mil metros cúbicos de areia até o dia 20 de dezembro

Texto por Dana Serafim

O desenho natural da antiga orla de Canasvieiras, no norte de Florianópolis, ainda vive na memória dos moradores nativos, que recordam o caminho livre de areia frente às ondas do mar. A fama do balneário varou fronteiras quando, em meados da década de 1980, a carinhosamente apelidada ‘Canas’ tornou-se um dos cartões postais mais chamativos da capital catarinense, consolidando o mercado imobiliário do norte da Ilha. Como consequência, a especulação levou muita gente a expandir e cercar terrenos, avançando inclusive sobre a faixa de areia e diminuindo a largura da praia, de olho em negócios com turistas, em especial os argentinos que então começaram a chegar em grandes levas.

A disputa entre hermanos e brasileiros em Canasvieiras, nos moldes de um clássico amistoso de futebol, acabou se transferindo para a faixa de areia da praia. Ou melhor, para falta dela.

Seu Domingos Calazans, morador natural de Canasvieiras há mais de 72 anos, conhece essa realidade de perto. “Os moradores e donos de terrenos foram os que avançaram para onde está a cerca hoje. Antes não existia cerca [entre a orla e os edifícios]”, relata. Com passo calmo, seu Domingos anda pela areia da praia e vai contando memórias dos recentes fenômenos que viu acontecer ali. “Olha, a gente não consegue mais passar por aqui com maré cheia, porque a água bate no nível onde estão as cercas. Antigamente, quando a maré crescia e vinham as ressacas, a água ‘comia’ a areia, mas a faixa logo voltava ao tamanho normal. Agora já não é mais assim”, explica.

A saída mais prática encontrada pela prefeitura para corrigir o assoreamento da faixa de areia em ‘Canas’ foi o projeto de alargamento da orla, retirando areia do fundo do mar e transportando para a beira da praia. É o que começou a ser feito em 20 de agosto deste ano, quando o projeto de engordamento da faixa de areia da praia de Canasvieiras finalmente saiu do papel, após o IMA (Instituto do Meio Ambiente) emitir a LAI (Licença Ambiental de Instalação). Com a liberação da licença, o prefeito Gean Loureiro assinou a ordem de serviço para autorizar o início das obras.

Aguardado há pelo menos 30 anos pelos moradores do bairro, a prefeitura de Florianópolis acredita que as reclamações por espaço na areia da praia estão com os dias contados. Antes da liberação da LAI, em agosto, porém, o Instituto do Meio Ambiente apontou que, das 44 condicionantes ambientais do projeto, havia incongruência em 23. De acordo com a assessoria do IMA, foi realizada uma força-tarefa com a prefeitura naquele mês para que fossem cumpridos todos os requisitos ambientais. A intenção era que houvesse a entrega dos documentos ausentes e a prefeitura conseguisse a licença a tempo de o projeto iniciar no prazo previsto. Para o uso do espaço, após as obras, será preciso outra autorização do IMA: uma Licença Ambiental de Operação (LAO), que deve ser solicitada pela prefeitura em até dois anos .

Os trabalhos devem ser executados em 120 dias, com prazo-limite para entrega até 20 de dezembro, ou seja, no começo da alta temporada. A DTA Engenharia, empresa de São Paulo, venceu a licitação que teve outras dez concorrentes habilitadas. A empreiteira paulistana está executando o serviço por R$ 10,5 milhões, sendo que o custo estipulado inicialmente pela prefeitura seria de R$ 16,4 milhões. O engordamento saiu, assim, por R$ 5,9 milhões a menos do que o valor previsto anteriormente pelo município.

A engorda envolve o alargamento da faixa de areia em uma extensão de 2,3 quilômetros da orla, no trecho entre a foz do Rio do Braz até Canajurê — na ponta oeste da praia. “No começo serão alargados 50 metros além do ponto atual e, ao longo de dez anos, essa largura deve ficar em torno de 30 a 35 metros. A gente já considera essa redução por conta do movimento natural da maré, que vai avançando sobre a orla”, afirma o diretor de obras da Capital, o engenheiro Tiago Schmitt. Atualmente, a largura da faixa de areia da praia de Canasvieiras varia de 5 a 10 metros.

Os equipamentos de dragagem operam 24h por dia, e a movimentação de terra na praia ocorre das 6h às 22h. Enquanto isso, a estudante universitária Ana Sophia Sovernigo, já sente as consequências das obras no seu dia a dia. Ela mora a duas quadras da praia e explica que, além da poluição sonora pelos maquinários, o isolamento dos trabalhos também aumentou seu deslocamento até a praia. “Eu moro próximo ao canto esquerdo da costa, no sentido Jurerê, e antes eu chegava lá direto pelo acesso principal. Mas agora, com as obras, eu preciso seguir um outro trajeto, e ando umas quatro quadras a mais para chegar à praia”.

Alguns comerciantes da região também temem a presença das obras com a chegada dos banhistas na alta temporada. “Tudo bem que a faixa de areia vai aumentar, mas ao mesmo tempo vai sujar mais a praia, porque as obras vão estar acontecendo enquanto os turistas estiverem chegando. A areia vai se movimentar e vai trazer toda sujeira para cá. Isso acaba prejudicando nós que somos vendedores e ambulantes nessa época de temporada”, argumenta o comerciante Anderson Petrúcio, 33 anos, que vende bebidas na orla de Canasvieiras.

Um investimento pautado no turismo

Enquanto no meio acadêmico o assunto já é debatido há anos, com estudos ambientais sobre o problema, o executivo municipal não esconde que iniciativas para conter a diminuição das faixas de areia na capital só começaram a ser discutidas em 2018. E o motivador, segundo o diretor de obras da Capital, Tiago Schmitt, “foi apenas o turismo. No ano passado, com a faixa de areia pequena, tivemos um número considerável de turistas que acabou indo embora mais cedo por não conseguir aproveitar a praia”.

O superintendente de turismo de Florianópolis, Vinicius de Lucca Filho, afirmou à reportagem que o empreendimento ambicioso da prefeitura trará retorno a curto prazo. “Com a faixa de areia maior, existe a possibilidade de novas ações culturais e esportivas naquela região, além de uma perspectiva na melhora da locação dos imóveis, e da ocupação hoteleira. A gente estima que, em pelo menos dois ou três anos, o retorno venha tanto do ponto de vista financeiro, quanto para o futuro da cidade”, avalia.

O foco da administração municipal no turismo traz, em contrapartida, receio para o morador da região Edson Rosa, 58 anos, que frequenta Canasvieiras desde os anos em que o balneário era apenas uma vila de pescadores. “Acho que engordamento é uma solução simplista demais, que garantirá a atividade turística por mais alguns anos, mas jamais resgatará os verdadeiros recursos naturais da praia, hoje contaminada pela falta de políticas públicas coerentes”, pondera.

Em outubro de 2018, o poder público recebeu um Estudo Ambiental Simplificado (EAS) que vinha sendo feito pela empresa PROSUL desde abril, orçando a obra de reposição da faixa de areia e apontando os possíveis impactos ambientais. O estudo foi entregue ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) que, em janeiro deste ano, se manifestou positivamente pelo andamento da obra.

O IMA se manifestou por meio de nota alegando que “o empreendimento não vai interferir de maneira direta sobre a flora e não está prevista supressão de vegetação. A obra também não impacta nenhuma Unidade de Conservação. A área encontra-se nas zonas de amortecimento da Reserva Biológica Marinha do Arvoredo e também da ESEC Carijós”. O órgão, entretanto, afirmou que durante a execução da obra não são esperados impactos diretos nesses pontos.

Apesar dessa argumentação do IMA, o Observatório de Áreas Protegidas da UFSC analisa as obras com criticidade. De acordo com o pesquisador Orlando Ferreti, “o simples fato de, por conta do alargamento, atrair mais pessoas para a praia, já gera um impacto direto naquela área. É algo que pode resultar facilmente em uma degradação das condições de vegetação por conta do mau uso e da poluição que se pode causar”.

Mas por que as praias têm cada vez menos areia?

Anos antes da iniciativa da prefeitura de alargamento da praia de Canasvieiras, a professora e doutora em geomorfologia costeira, Janete de Abreu, já pesquisava nos laboratórios da Universidade Federal de Santa Catarina os motivos que estavam levando a faixa de areia a diminuir nas praias de norte a sul de Florianópolis.

O encolhimento das faixas de areia em Florianópolis, segundo Janete, tem ocorrido com maior evidência nos últimos 50 anos. “Na Ilha, as praias não têm grande quantidade de estoque sedimentar imerso, o que se agravou ainda mais com o processo de urbanização nas orlas de praia da região, sobretudo nos anos 70”, afirma.

Periodicamente, explica Janete, a faixa da praia reduz e se recompõe de forma natural. O problema é quando há um avanço de construções na linha costeira, intensificando os processos erosivos, a perda do estoque sedimentar e a redução da faixa de areia. “As ocupações próximas ao mar, como na praia de Canasvieiras, resultam na retirada de parte das dunas e da vegetação de restinga, que servem de barreira natural para o avanço das águas. A partir do momento em que são construídos edifícios, casas e restaurantes nesses espaços, há a transformação de um ambiente que era totalmente móvel para um fixo, com estruturas rígidas. Isso aumenta a reflexão das ondas e o processo de solapamento”, explica a professora.

Desde 2004, está em vigência no Brasil o Projeto de Gestão Integrada da Orla Marítima (Projeto Orla), que estabelece diretrizes para que novas ocupações em áreas não-urbanizadas da orla marinha devam se iniciar a 200 metros, calculados a partir do limite de contato terra/mar. O limite terrestre teria a finalidade de garantir uma zona de amortecimento na costa. “Muitas praias não só de Florianópolis, mas do Brasil, não têm essa zona bem definida, podendo gerar a perda de patrimônio público e privado”, argumenta o oceanógrafo e docente da Coordenadoria Especial de Oceanografia da UFSC, Pedro Pereira.

O aumento da construção civil na costa de Canasvieiras trouxe impactos permanentes, na visão dos frequentadores. “A ocupação turística da orla, desordenada, destruiu o cinturão de restinga e os coimbros de dunas, aterrou riachos, estimulou o despejo de esgoto nos canais de drenagem pluvial, e destruiu mangues”, aponta Edson.

Além da ação do homem, há processos naturais meteorológicos e oceanográficos que também resultam na diminuição da faixa de areia. “Em casos em que os eventos extremos são muito fortes, ou quando há muitas ressacas seguidas, a praia não tem condições de se restabelecer rapidamente, o que provoca uma configuração mais erosiva”, contextualiza a pesquisadora Janete. De acordo com levantamento por ela, as praias catarinenses mais afetadas pela erosão, nas últimas décadas, são a praia da Armação, que nos anos 90 apresentou processos erosivos bastante acentuados; praia dos Ingleses, no setor Sul e Central, com o desaparecimento de trechos; praia de Ponta das Canas; e praia de Canasvieiras. “Em geral, essas praias apresentam setores predominantemente erosivos, outros que são relativamente estáveis, e outros que vão ter uma tendência à deposição de sedimentos e ao alargamento da linha de costa”.

Atualmente, em termos de proteção de faixas costeiras, existem obras de engenharia rígidas como muros de contenção com pedras. Outras estruturas também têm sido usadas para contenção das correntes marítimas, como molhes, quebra-mar, diques, entre outros. A pesquisadora explica, porém, que antigamente muitos projetos de obras costeiras não davam atenção ao equilíbrio morfológico da costa, contribuindo para o aumento de processos erosivos. Por outro lado, as obras de engordamento surgem como alternativa a estruturas rígidas de proteção. “A granulometria do solo retirado desta área fonte também deve ser estudada com cuidado, pois um grão menor em uma faixa de areia média pode alterar as características morfológicas da praia”, explica a pesquisadora.

Em processos de engorda, como o da praia de Canasvieiras, alguns impactos momentâneos ocorrem no ecossistema marinho. O oceanógrafo Pedro explica que “os principais impactos pontuais e negativos ocorrem na jazida, ou seja, no local que vai ceder sedimentos. Nesse período, haverá uma mortalidade pontual de animais que habitam ao fundo, porém vai ser repovoado em questão de meses, pela população de organismos que existem naquele espaço”.

Outra alteração que irá afetar a diversidade marinha da praia, segundo o oceanógrafo Pedro, acontecerá na superfície. “A praia tem todo um ecossistema de animais invertebrados que vivem na faixa de areia. De imediato, quando esse material [da dragagem] é lançado na praia, estes serão os primeiros organismos a serem mortos, porque haverá um soterramento deles”. A médio prazo, esse ambiente é restabelecido, com aumento da área de ocupação dos organismos e do ecossistema antes existente.

Para a pesquisadora Janete, o ideal é planejar uma política de reconfiguração das ocupações costeiras, garantindo que não haja novos imóveis nestes ambientes. “É necessário se pensar, em paralelo às obras de engordamento, na criação de uma zona de amortecimento que evite o impacto da ocupação nos processos erosivos da praia. É preciso trabalhar com manutenção e com qualidade ambiental”, defende.

Próximos passos

De acordo com o diretor de obras da Capital, Tiago Schmitt, o engordamento da praia de Canasvieiras tem prazo de efetividade previsto para 10 anos. Esse é o tempo que, segundo ele, com o movimento da maré, as faixas de areia poderão voltar aos níveis atuais. Sendo assim, daqui a alguns anos, a prefeitura afirma ter intenção de recomeçar os processos de alargamento na praia. Isso exigirá um novo estudo de impacto ambiental e novos custos aos cofres públicos.

Como é feito o engordamento

Com as obras já acontecendo, o deslocamento da areia do fundo do mar para a orla está sendo feito por duas dragas trazidas de São Paulo, uma tubulação flutuante e um trator. As dragas atracam na área de uma jazida natural submersa, localizada a 1.500 metros da costa. Os estudos de impacto apontaram que os sedimentos localizados nesta jazida seriam os que menos danos trariam ao ecossistema, por conter grãos semelhantes, em espessura e cor, aos já existentes na areia da praia do Norte da Ilha.

Após sugar a areia da jazida, a embarcação navegará por cerca de dez minutos até a plataforma flutuante, onde está a tubulação que bombeia a areia até a costa. Ao ser despejado na orla, o material é espalhado por tratores. Até o início de novembro, o deslocamento estava sendo operado por apenas uma draga. A segunda embarcação, com capacidade quatro vezes maior que a primeira, chegou ao litoral nas semanas seguintes para auxiliar na extração. Serão aproximadamente 356 mil metros cúbicos de areia despejados na orla de Canasvieiras.

O acesso à praia neste período de obras fica restrito a setores específicos da orla. O isolamento em determinadas áreas da praia altera na medida em que o alargamento avança. “É o que se costuma falar: um benefício permanente, com transtorno temporário”, diz o superintendente de turismo de Florianópolis, Vinicius de Lucca Filho.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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